O Mistério do Bule Branco
Ao pedir ao homem que julgara ser seu amor enquanto lhe restasse um sopro de vida, para comprar um bule branco, Carolina não poderia imaginar que esse sortilégio aprofundaria seus tormentos em redemoinho, morada de seres infernais.
Ela nasceu sob o signo da desordem. Meiga, desvairada, ingênua, espiritualizada, pusilânime, eufórica, depressiva... Nunca soube o que era limite. Num estalar de dedos poderia ir do céu ao inferno. Ela era assim, naturalmente atormentada por sentimentos opostos, e, quando tudo de ruim parecia ter acontecido em seus dias árduos, outros piores viriam com a entrega do bule branco.
João Batista era um homem cobiçado por muitas mulheres. Moreno alto, cabelos castanhos, porte atlético, educado, olhos e sorrisos encantadores. Mas voltemos à Carolina.
Há três anos e meio separada, Carolina tinha como companhia o filho único. Um jovem talentoso, porém egoísta e ambicioso ao extremo. Vivia em função de ganhar dinheiro e construir patrimônio material. Desde que galgara alguns degraus na pirâmide social, esquecera os amigos dos tempos das vacas magras e só se relacionava com alguém de igual ou de maior poder aquisitivo. Ser é ter, costumava dizer. Exemplos não faltavam:
- Mãe, para vencer na vida é necessário ter um bom endereço, um carro de luxo e relacionar-se com pessoas influentes. Tem de pensar grande. Você já viu algum milionário na cadeia? A mãe escutava, mas era impossível ouvir ou colocar em prática os exemplos do filho. Vivia em outro mundo. Revelou sua paixão por João Batista.
- Olha aqui, mãe, nesta altura da vida, melhor seria ficar sossegada em seu canto. Mas se arranjar namorado pode ir se preparando para sair da minha casa. Que seja alguém de posse, e eu duvido que você saiba discernir. Pobre, bastou o traste do meu pai, que não deixou ao menos uma agulha de herança para nós.
- Não fale assim do seu pai! Pobre, mas honesto. Bem ou mal, criou você.
- Nunca dependi dele pra nada. Aliás, nem o considero pai. Tudo que consegui foi com meu esforço.
- Não seja injusto, filho. Embora ele tenha me traído com as minhas melhores amigas, tínhamos teto, comida...
- Casa e comida, isto era uma obrigação. Não devo nada a ele.
- Está bem, não vamos discutir. Queria que você conhecesse Batista.
- Não quero conhecer ninguém. Não basta ter de aturá-la?
- Por que fala assim com sua mãe?
- Falo o que eu quiser, a boca e a casa são minhas...
A conversa não prosseguiu. Guilherme beijou a testa da mãe e saiu, enquanto ela atendia ao telefone. Era João Batista, dizendo que iria levar-lhe o bule branco prometido, mas coasse um café, para estrear o presente, dificílimo de encontrar, disse do outro lado da linha.
Uma hora depois João Batista estacionou o carro em frente ao prédio do bairro classe média, para aquele que seria o primeiro de uma série de encontros tumultuados.
- Precisava rasgar o papel desta forma, amor? - inquiriu João.
- O que me interessa é o conteúdo, ah, papel, vai pra reciclagem. Venha, vou fazer um cafezinho da hora.
Enquanto Carolina preparava o café, João Batista esquadrinhava o ambiente. Depois de percorrer os aposentos abraçou-a por trás, beijando-lhe a nuca.
- Carol, que cheiro gostoso! disse enquanto percorria a língua pelo pescoço da amada.
- O café ou eu, querido? - respondeu Carolina com languidez.
- O que você acha, gostosa? Depois de provar este café cheiroso, quero provar o odor que exala da sua pele, tesão!
E fizeram amor a tarde inteira. Antes de ir embora, João quis tomar outro cafezinho à mesa adornada pelo bule branco. Carolina não perdeu a oportunidade de agradar o seu amor. Sorriu, espreguiçando-se. Beijou o amante e foi para a cozinha.
Degustou o cafezinho com um sorriso manso à Carolina, embevecida, subindo às nuvens. Como o romantismo deixa as mulheres tontas, pensava. A mulher não se cansava de elogiar o bule e sorrir com ternura ao amado. E como toda pessoa frágil pediu conselhos ao seu amor:
- João, meu querido, gostaria muito que conhecesse meu filho Guilherme. Não me sinto bem te recebendo sem que ele saiba. É um bom filho, tem cuidado de mim com desvelo, o que você acha? - João ouvia fingindo atenção.
- Ora meu amor, também gostaria muito de conhecer seu filho, abraçá-lo, afinal será, se já não é meu enteado.
- E você será o segundo padrasto dele, respondeu sorrindo.
Despediram-se com promessas de dias felizes.
A chegar em casa, Guilherme apanhou alguns preservativos na gaveta de seu criado-mudo.
- Mãe, o que significa isto? - intimou-a a dar explicações.
- Não sei! Por que está gritando comigo? Uai, não são suas? - respondeu com sincera inocência ao ver os preservativos na mão do filho.
- Fossem minhas não estaria perguntando - respondeu com os olhos esbugalhados.
- Por acaso, mãe, continuou irritado - você está trazendo homens para a minha casa?
- Não, filho! Bem, João Batista esteve aqui, mas... Não pode concluir:
- Piranha, esbravejou o filho, atirando os preservativos na cara da mãe que desmaiou.
Ao vê-la tombada, Guilherme passou álcool nos pulsos dela, jogou um jato d'água em seu rosto para despertá-la. Estes desmaios de Carolina eram comuns quando discutiam. O filho tinha ciência e paciência nesses eventos. E muito carinho. Abraçava e a beijava com ternura:
- Ó mãezinha querida, perdoe-me. Abriu a blusa e desceu o vestido, para facilitar a sua respiração. Massageou os peitos com gel de arnica. Carolina tinha a pele branca e macia. Apesar de seus mais de quarenta anos, seus seios eram firmes como o de uma garota de quinze. Rosto liso, sem rugas. Um corpo de fazer inveja a muitas mocinhas. Sem estrias, sem celulites. Pele alva, as coxas bem torneadas. Nos desmaios o ritual era o mesmo: Guilherme demonstrava todo seu afeto, prometendo-lhe, com palavras e gestos, nunca abandoná-la. E acontecia de adormecer ao seu lado. E ao acordarem, mãe e filho passavam momentos de harmonia e cumplicidade. Abraçavam-se, contavam casos e assistiam a filmes, com as mãos entrelaçadas. Nestas horas evitavam temas polêmicos. Nada poderia quebrar estes instantes de encantamento.
Guilherme tinha um ciúme doentio da mãe. Filho adotivo, pois o pai biológico se separou de Carolina quando ele tinha quatro anos, dizia que seu verdadeiro pai era o padrasto. Contudo, este verdadeiro pai não conseguiu estabelecer uma relação paterna harmoniosa com o filho. O ciúme se manifestara ao primeiro contato, quando Guilherme chutara-lhe as pernas. Inciava-se ali um triângulo amoroso, que entre outros conflitos, levaria o casal a se separar anos depois.
Mas deixemos o passado e voltemos aos dias atuais. Carolina tentava entender a presença dos preservativos. Só pode mesmo ter sido João Batista, mas por quê? Não usamos camisinha... Podia ser também a faxineira. Guilherme não estava inventando, conjeturou. João Batista... não, só pode ser Gina. Se for ela... estará transando com meu filho? Desgraçada! Melhor esquecer... Enrolou um baseado e depois de dar uns "tapas", foi dormir.
João Batista estava feliz com o namoro. Disposto a levar a sério o relacionamento. Estava cansado de aventuras amorosas. Carolina era uma mulher bonita, interessante. Tinha uns arroubos, que o deixavam confuso. Ela demorou em consentir que ele a visitasse em casa. Com a entrega do bule branco, os rumos da relação mudariam completamente. Semanas depois haveria o encontro dos três. Ah, como às vezes as pessoas são inocentes...
- Então, filho, este é João Batista do Nascimento, meu namorado, apresentou-o apreensiva. Em seguida, sentaram-se em volta da mesa para saborearem o café.
João tentou comunicar-se com Guilherme. Falou de música, filmes, futebol,profissões, mas o rapaz, permaneceu em um silêncio sepulcral, para em seguida levantar-se, sem ao menos pedir licença. Carolina tentou justificar:
- Repara não, ele é de pouca conversa...
Os dias passavam e Guilherme não dava sinais de mudança. Sempre carrancudo. Pegou o presente das mãos de João e o colocou sobre a mesa, sem abrir, sem agradecer.
- O que há com seu filho, Carol? Faço o máximo para me aproximar. Dei-lhe um presente de aniversário e ele nem ao menos agradeceu. Seu filho não gosta de mim!
- Gosta, sim, João, ele sempre foi assim. Liga não.
- Fazer o que, né não?
Carolina quis comemorar um ano de namoro. Preparou um jantar, mas Guilherme chegou tarde, entrou sem cumprimentar e foi direto ao quarto. Retornou em seguida com o presente ainda embrulhado e o devolveu a João Batista, dizendo com rispidez:
- Eu não quero este presente, não quero nada se você, seu folgado. É um favor que me faz não aparecer mais aqui.
Carolina intercedeu: - Que é isto meu filho!
Guilherme retrucou: - Cala sua boca, vadia!
A cena foi constrangedora. O leitor pode imaginar. João se retirou e só viria a saber do que aconteceu naquela noite anos depois de ter rompido com Carolina. O bule branco o acompanha como testemunha das cenas que aconteceram entre mãe e filho, durante o período de namoro e que ele não fora testemunha ocular. Olha o bule sobre a mesa de sua solitária cozinha e percebe que a vida de Carolina seguirá atormentada pelo redemoinho em que habita a inconstância. O bule branco revela o sofrimento de Carolina:
A vida é uma enigma meu caro João. Entender os corações e mentes exige esforço, paciência e compaixão. Ainda assim ficará a dúvida. Naquela noite, depois que você saiu eles discutiram violentamente. Carolina desmaiou e foi levada às pressas ao pronto socorro. Ao retornar, restabelecida, os dois passaram a noite conversando e até sorriram. Arrisco afirmar que ela nunca foi feliz. Talvez tenha vivido alguns momentos de felicidade, para em seguida voltar à sua realidade de uma tristeza ainda maior. Não se trata aqui de julgar e condenar, pois somos todos inocentes. Há entre mãe e filho um amor difícil de explicar. E entre a ordem e a desordem daqueles corações há uma parede intransponível... Eu vi, vi cenas que o condicionamento cultural a que estamos submetidos não entenderia. Vamos fazer o seguinte: brindemos a vida, esta vida enigmaticamente bela. Mais que a certeza, João, é a dúvida que nos impulsiona...