Parte III
 
 
 
 

24
 
 
 
17 anos depois.
 
Era um dia como outro qualquer, mas parecia que havia algo ruim no ar, que uma coisa má estava para acontecer.
 
Na mansão da família Godoy, a governanta estava preocupada com os preparativos do café da manhã por ser o primeiro dia de aula das crianças – que já não eram mais crianças, na verdade, Junior tinha 18 e Laura 16 – e deveriam estar às sete horas na faculdade. A mesa do café estava posta desde seis horas da manhã e os dois já estavam sentados, porém estava faltando alguém... Junior não hesitou e logo perguntou:
 
- Joseline, será que o pai não vai descer para tomar café com a gente?
 
- Talvez ele tenha esquecido que hoje começa as aulas de vocês e ainda esteja na piscina.
 
Joseline saiu a procurá-lo, mas não o encontrou na piscina nem no orquidário e parecia que ele havia tomado chá de sumiço, só o encontrou no quarto ainda estirado na cama. Joseline não pensou duas vezes e saiu gritando pelos corredores da mansão:
 
- Socorro! Socorro! – O Sr. Fernandes está morto!
 
Não demorou muito todos estavam no quarto do Dr. Fernandes: filhos, cozinheira, motorista, jardineiro e segurança, todos ofegantes... O motorista se aproximou da cama e sentiu o pulso do advogado percebendo que estava tudo normal.
 
- O doutor está apenas dormindo - disse o motorista.
 
Todos ficaram felizes, mas ao mesmo tempo preocupados, pois já passava das seis e ele ainda estava dormindo e não acordara sequer com aquela gritaria. Um homem que tinha por hábito levantar todos os dias às cinco da manhã, não era possível que estivesse dormindo tão pesadamente. Alguma coisa estava errada!
 
- É melhor acordá-lo - disse Junior.
 
Joseline, ainda assustada, disse:
 
- Eu creio que o melhor a fazer é deixá-lo dormindo.
 
- Não! Nós temos que acordá-lo para ver se está bem, Joseline.
 
Junior aproximou-se da cama com um pouco de receio e colocando as mãos sobre o peito do pai, sacudiu-o, dizendo:
 
- Pai! Acorde, pai.
 
Fernandes acordou assustado, esfregou os olhos, pois só via vultos mas, em seguida, olhou novamente e ao perceber que dentro do seu quarto estavam seu filho, a filha Laura e mais todos os funcionários, levantou-se rapidamente da cama e perguntou.
 
- O que está acontecendo aqui, meu filho?
 
- Pai, estamos só preocupados com você, pois passou das seis e meia e você ainda está na cama... isto não é normal, principalmente vindo do senhor.
 
- O que! Já são seis e meia?
 
- Sim e hoje é o primeiro dia da Laura na faculdade, você se esqueceu?
 
- Não, filho, eu não esqueci, não.
 
- Está bem, pai, mas eu tenho que ir agora senão chegarei atrasado para a minha primeira aula.
 
Fernandes beijou os filhos, pediu ao motorista que os levasse para a faculdade e que não se preocupasse em vir buscá-lo porque ele iria dirigindo ou chamaria um táxi.
 
Todos saíram do quarto e foram cuidar dos seus afazeres. Fernandes pegou o porta-retratos sobre o criado mudo com a foto de Weruska, passou a mão sobre a foto, depois a beijou e disse alto como se estivesse conversando com ela:
 
- Ah! Minha querida, se você pudesse ver como os nossos filhos cresceram!  O Junior já está cursando o segundo ano de medicina e Laura, que é um orgulho de filha, terá hoje o seu primeiro dia na faculdade de advocacia. Se você pudesse estar aqui para compartilharmos este momento! Sinto ainda tanto a sua falta e estes dezesseis anos sem você não têm sido fáceis... por que você se foi tão cedo? Terá sido culpa minha por não ter passado mais tempo com você dando-lhe o devido valor?
 
Por um belo momento, ele imaginou que a esposa realmente estivesse ali, mas depois percebeu que tudo não passava do forte desejo de compartilhar com ela sua alegria e, devolvendo o pequeno quadro ao criado, ele foi para o banheiro arrumar-se.
 
Fernandes ainda usava sua aliança de casamento. Desde que Marilyn terminara o relacionamento extraconjugal que tinham, fato seguido pela morte inesperada de Weruska, ele não tinha tido mais nenhum outro relacionamento amoroso. Ficara com uma espécie de trauma achando que, de alguma forma misteriosa, o triângulo amoroso que tinha vivido teria apressado a morte da esposa. E, para ele, somente duas mulheres interessavam na vida: uma estava morta e Marilyn estava agora casada com um produtor italiano de vinhos. Por esses motivos, ele dedicara os últimos anos a cuidar dos filhos e dos negócios.
 
Já vestido, Fernandes pegou sua pasta e o notebook descendo para tomar seu café e, chegando à sala de refeições, ele se deparou com Joseline à sua espera. Havia uma mesa farta para um café da manhã delicioso. Fernandes sentou-se e logo Estela veio para servir seu patrão.
 
- Doutor, o senhor deseja suco de laranja, de melão ou café com leite?
 
- Eu só vou querer um café puro.
 
- Não está se sentindo bem, doutor?
 
- Para dizer a verdade, não, mas também estou com um pouco de pressa.
 
O café foi servido. Fernandes tomou-o rapidamente e, ao sair da mesa, ele disse à governanta:
 
- Joseline chame um táxi para mim e peça para vir depressa, pois tenho muitas coisas a fazer.
 
- Não será preciso doutor, o motorista já chegou.
 
- Ótimo, então me acompanhe até a biblioteca, pois quero lhe dar algumas ordens particulares.
 
Joseline fez um gesto de concordância e o seguiu em silêncio.
 
Fernandes abriu a gaveta de uma pequena mesa onde costumava estudar seus casos mais complicados, tirou da gaveta uma pasta azul e colocou-a nas mãos de Joseline, dizendo:
 
- Joseline, amanhã o Júnior irá pegar sua carta de motorista definitiva, eu encomendei para ele uma pick-up, uma parecida com aquela que o amigo dele tem.
 
- Sei quem é... é aquele garoto meio maluco...se chama Juan ou algo parecido.
 
- Sim, é este mesmo e é um bom rapaz. Só que eu encomendei uma preta com o para-choque maior. O nome da concessionária é Car Master. O funcionário que virá entregar é o Getúlio, o cheque está aí nesta pasta e o recibo também. Assim que ele chegar, peça para ele colocar o automóvel atrás do salão de festa para que o Junior não o veja antes de eu chegar e que também assine o recibo.
 
- Está bem, doutor.
 
Fernandes pegou suas coisas e saiu em direção à frente da casa quando ouviu a voz de Joseline que o chamava.
 
- Dr. Fernandes! Dr. Fernandes! Por favor, espere, eu preciso pedir um favor.
 
- Pode falar. O que deseja?
 
- Doutor, desculpe por incomodar o senhor, trata-se de um assunto particular: é que a enteada de uma amiga irá se casar no próximo sábado e eu fui convidada. Acontece que é lá em Araraquara, por isso eu teria que me ausentar na sexta-feira e só poderei retornar no domingo à noite. Posso ir?
 
- Sim, Joseline, pode ir sossegada... e, por coincidência, eu também fui convidado para ir a um casamento lá em Araraquara. Se você quiser, eu te darei uma carona até lá.
 
- Perdoe-me a impertinência, mas será no casamento de Michela Dolce que o senhor irá também?
 
- Sim, é o casamento da filha do Sr. Giuseppe Dolce.
 
- Nossa, que coisa! Vamos ao mesmo casamento, doutor! Quem me convidou foi a Sra. Marylin, esposa do Sr. Giuseppe.
 
Surpreso, Fernandes franziu o cenho ao constatar que sua governanta era tão amiga de Marylin a ponto de ser convidada para um casamento elegante e perguntou:
 
- De onde você conhece a Sra. Marilyn?
 
- Ah! Eu já a conheço faz uns dezoito anos ou até mais... eu fui empregada dela por uns três anos quando ela ainda era casada com Dr. David. Mas quando eles se separaram, no fim de 1996, ela foi para a Itália e ele me dispensou. A agência onde eu estava cadastrada informou-me da vaga que o senhor estava oferecendo para baby-sitter e eu aceitei, então eles me mandaram para cá.
 
-Que mundo pequeno! Quem diria que você já foi empregada de Marilyn.
 
- Estava na minha carta de referência, o senhor não se lembra?
 
- Não, e se vi, não associei o nome à pessoa mas isso não vem mais ao caso. Ficamos assim, então: eu te dou uma carona, mas irei somente na sexta-feira à noite, está bom para você?
 
- Está ótimo, doutor! Muito obrigada... bom serviço.
 
Fernandes seguiu em direção à porta pensando na incrível coincidência de haver em seu quadro de colaboradores uma ex-empregador de Marilyn. Abrindo a porta, ele se deparou com uma linda manhã ensolarada. Certo que havia algumas nuvens perdidas aqui e ali no imenso azul do céu, mas isto era normal na grande cidade de São Paulo devido à poluição do ar. Ainda assim, Fernandes gostou do que viu e seguiu para o carro.
 
Rodolfo abriu a porta do automóvel, Fernandes entrou e logo o carro estava deslizando em direção ao portão da mansão. Já na rua, Rodolfo perguntou:
 
- Há algum caminho especial que o doutor queira que eu faça?
 
- Sim, Rodolfo, antes de ir para o escritório, eu gostaria de dar uma passada rápida no cemitério.
 
- No cemitério? É alguma data especial, doutor?
 
- Não. Apenas estou com vontade de ir até lá, especialmente depois de um sonho esquisito que tive com a Weruska essa noite, fiquei com uma sensação estranha... assim como se algo de ruim fosse acontecer.
 
- Entendi, doutor. Eu só perguntei mesmo por que, se não me falha a memória, faz bem uns quinze anos que o doutor não vai até o mausoléu.

 
Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 31/05/2019
Reeditado em 30/07/2019
Código do texto: T6661522
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