23
 
 
 
 
O sábado amanhecera muito frio e tal qual estava o coração de Fernandes. Desde o dia que enterrara a esposa, ele não havia mais saído de casa, não fora ao escritório nem ligara para saber como andavam as coisas por lá. Todos os processos sob seus cuidados estavam estacionados e relegados a um cantinho de sua memória. Ele não se alimentava direito comendo apenas uma coisinha aqui e outra ali, já não nadava todas as manhãs como era de seu costume e quase se poderia dizer que estava vegetando.
 
Com a barba sem fazer por cinco dias, ele agora ficava de pijama o dia todo numa rotina que o fazia ir e vir entre a biblioteca e a beira da piscina, sempre lendo Crime e Castigo de Fiódor Dostoiéviski. Fernandes parecia o próprio Raskólnikov, - confuso em seu arrepentimento pelos crimes de furto e pelos assasinatos cometidos, sempre temeroso de ser descoberto pelas autoridades –. Claro que não era o caso de Fernandes, um advogado enlutado, pois ele apenas se via sem chão e trancado num novo mundo criado por ele mesmo.
 
Ele não estava conseguindo levar a sua vida sem a amada mulher. Sentia-se culpado por não ter sido um marido mais presente, sempre colocando seus interesses físicos e profissionais em primeiro lugar. Ele não conseguia assimilar o motivo pelo qual aquilo fora acontecer justamente quando ele resolvera dedicar-se muito mais à sua familia e sem a interferência de uma terceira pessoa entre eles. Seria um castigo de Deus? - ele se perguntava em seu pensamento todas as horas, dia e noite, mas não havia agora quem lhe explicasse mais nada. Era com Weruska que ele conversava sobre muitas coisas e especialmente sobre a espiritualidade, pois ela era uma pessoa que tinha uma fé bonita e atuante. O que sentia era que tudo lhe fora dado num dia e, no outro, aquele tudo já não existia mais. Seu pensamento estava tão longe, tão absorto em sua dor que, sentado na espreguiçadeira, ele não viu que Marilyn estava a seu lado e chamando por ele.
 
- Fernandes! Fernandes! Fernandes! – chamou Marilyn uma terceira vez, tocando-lhe no ombro – Tudo bem com você?
 
Fechando o livro, ele olhou para ela parecendo que  não a estava vendo de fato e como se nem tivesse ouvido a sua voz.
 
- Tudo bem com você? – perguntou ela mais uma vez.
 
- Sim. – disse ele como se estivesse vendo um fantasma – você aqui?
 
- Sim, eu passei para ver como você estava e vejo que não está nada bem!
 
Marilyn sentou na outra espreguiçadeira ao lado e ficou a olhar para a bela piscina. Ambos ficaram calados um bom tempo e sem olhar um para o outro e, assim, o silêncio que pairava entre eles era tão denso que podia ser cortado por uma faca.
 
- Eu estou contente por você ter vindo me ver, mas não é o momento mais propício...
 
- Eu sei... eu sei.... – disse Marilyn cortando a frase dele - Eu pensei muito antes de vir... Ontem, eu liguei no escritório para falar com você, mas a secretária me disse que você não havia aparecido des... desde então. Eu ponderei e cheguei à conclusão que eu tinha que vir ver você antes...

Ela fez uma pausa proposital para ver como ele reagiria.
 
- Antes de?
 
- É que eu pedi o divórcio ao David.
 
- Por que?
 
- Não dava mais para as coisas ficarem como estavam...
 
- Você já sabe o que vai fazer da vida?
 
- Inicialmente, irei passar uns dias na Itália, na casa de uma tia distante... não planejei nada mas tudo o que eu preciso neste momento é sair de cena, sumir daqui por um bom tempo.
 
- Entendo...
 
A difícil conversa entre os dois foi interrompida pela chegada da governanta.
 
- Perdoe-me por interromper, doutor, mas tem uma senhora Rosângela lá na entrada querendo muito falar com o senhor.

Fernandes olhou para Marilyn sem nada dizer e ela deu de ombros como quem quisesse dizer “finja que eu nem estou aqui.”
 
- Traga a senhora até aqui.
 
- Sim, senhor.
 
A governanta levou Rosângela até parte do caminho e depois voltou ao seu serviço. Caminhando suavemente, ela pisou no gramado que levava à área da piscina, usando uma calça jeans, bota de couro baixa e uma blusa na cor salmão colada ao corpo ressaltando seus seios volumosos e por cima dela, uma jaqueta de couro marrom-claro, combinando com a bolsa e com largo cinto. Fernandes se levantou para recebê-la, mas ao vê-lo ainda naqueles trajes de dormir e de barba por fazer, ela franziu o rosto com desgosto. Sem sequer dizer-lhes um “bom dia” foi logo dizendo:
 
- O que foi que aconteceu com você, meu querido, cadê aquele homem garboso e sempre bem vestido?
 
- Bom dia para você também, Rosângela! - disse Fernandes, sem se dignar a responder à alfinetada interrogativa dela.

Ela o abraçou, Fernandes sentiu aroma adocicado do perfume que exalava do corpo dela. Percebendo a indelicadeza de sua parte, ela disse:
 
- Perdoe-me pelo comentário infeliz, você tem seus motivos para estar assim desolado e, por um momento, eu até me esqueci do terrível ocorrido.
 
- Não tem problema. Deixe que eu a apresente: Marilyn, esta é Rosângela Gaspar.
 
- Sim, acho que já nos conhecemos no... bem... já fomos apresentadas antes.
 
- Muito bem, sente-se Rosângela – disse ele indicado outra espreguiçadeira para ela.
 
Ela se sentou no lugar indicado e Fernandes voltou ao seu lugar, sentado entre dois belos tipos femininos, uma morena e uma loura. Ele olhou para Rosângela, que lhe sorriu amavelmente. Ela estava muito bem, desde que o marido morrera passara a cuidar mais de si mesma praticando esportes e dando uma turbinada nos seios, sempre tentando esquecer os problemas da vida.
 
- A que devo o prazer de sua visita, Rosângela? – disse Fernandes quebrando o silêncio.
 
- Eu fui ao seu escritório, mas como fui informada que você estava em casa e como meu assunto é urgente, decidi unir o útil ao agradável aproveitando para ver como você estava e para falar de negócios, se não se importar.
 
- Com licença – disse Marilyn se levantando.
 
- Não, Marilyn, pode ficar, pois o que tenho para falar com o Fe... quer dizer, com o Dr. Fernandes não é segredo, fique por favor.
 
- Está bem.
 
Marilyn voltou a se sentar.
 
- Sim, Rosângela, prossiga!
 
- Ontem o seguro transferiu o valor da apólice de seguro deixada pelo Júlio para minha conta e agora só ficou pendente o inventário.
 
- Os papéis já estão todos prontos, só falta marcar um dia para lermos o testamento para os familiares.
 
- Pois bem, agora que sou uma mulher livre, graças a Deus e a você, eu quero, eu preciso fazer uma viagem! Sair um pouco de São Paulo, tentar esquecer tudo que passei nestes últimos três anos.
 
- Eu entendo como você se sente... Você pretende ir para onde?
 
- Pretendo passar uns quinze dias em Salvador e, quem sabe, chegar até Porto de Galinhas.
 
- Pode ir sossegada e, quando você voltar, nós marcaremos a leitura do testamento.  Vá viver a vida aproveitando que agora você é livre para ir e vir.
 
- Obrigado Fernandes, você tem sido como um anjo enviado por Deus para me ajudar.
 
- Fico grato pelo ‘anjo’, mas lembre-se que ele lhe cobra pelos serviços prestados, pois milagre de graça só mesmo Jesus fez e faz.
 
- Eu sei, já que posso viajar sossegada, eu vou indo, pois tenho que resolver algumas coisas antes de viajar. Ah, eu não sabia o que trazer para você, então trouxe uma caixa de Alfajor. Eles são saborosos e fazem muito sucesso nas boas padarias, espero que você os aprecie.
 
- Pode deixar, depois irei prová-los.
 
Rosângela se despediu de Fernandes e de Marilyn e foi embora. Enquanto ela saía, uma das empregadas trouxe uma bandeja com copos e uma jarra de suco, serviu Fernandes e Marilyn e se foi deixando a bandeja sobre a mesa próxima a eles.
 
Fernandes tomou um generoso gole do suco e por um longo tempo ele ficou a olhar fixamente para o copo. Embora ele não notasse, Marilyn o estava observando. Olhando para ele, ela ficou imaginando como seria ser a senhora Godoy. Ela conhecia um lado intenso de Fernandes que a arrepiava só em nele pensar e achava que se o tempo oferecesse a eles uma nova chance, eles poderiam ser felizes. Ela poderia ser feliz como sempre sonhara, pois, apesar de ser um advogado arrojado quando defendia uma causa, ele também era um homem amoroso e preocupado com o bem-estar dos seus. Involuntariamente, Marilyn suspirou tão fundo que até Fernandes percebeu.
 
- Dou dez dólares por seus pensamentos – disse ele olhando para ela.
 
- Tão pouco assim? – disse ela franzindo o rosto.
 
- Este foi só um lance aleatório. Jogue os dados, quem sabe você possa tirar um número maior.
 
Marilyn esboçou um tímido sorriso, mas o recolheu ao ver a tristeza estampada nos olhos de Fernandes.
 
- Você a amou muito, não é mesmo?
 
- Do meu jeito, sim. Creio que ela foi uma estrela que passou em minha vida e que agora se apagou... se foi...
 
Ele pausou e ela ficou em silêncio esperando que prosseguisse.
 
- Você acha que eu possa estar sendo punido? – perguntou ele.
 
Marilyn sentiu seu corpo tremer, pois, apesar de ter sido ela a pôr um ponto final na relação, Fernandes tinha sido uma das melhores coisas que havia acontecido a ela em toda sua vida. Como ela não respondesse à indagação, Fernandes a olhou e viu os pequenos cristais que lhe vincavam o rosto estragando a maquilagem
 
- Desculpe-me, como sou invencível!
 
- Não se desculpe. É que ouvir você falar assim faz com que eu também me sinta culpada de certa forma... porque eu sinto o mesmo em relação a você... Antes de conhecer você, eu não era feliz, não tinha motivos para ser feliz. Eu era um joguete com o qual David gostava de brincar e, romanticamente falando, ele só trouxe nuvens escuras para os meus dias. Então, como um raio de luz, você cruzou o meu caminho numa noite de lua... foi só um olhar e eu soube que escreveríamos uma história juntos.
 
- Ufa! Você me pegou de jeito... Sou grato por você me dizer tudo isso e, de uma forma estranha, isso alivia um pouco a dor que sinto. Mas...
 
Quando ele disse este, “mas...”, Marilyn foi para mais junto dele e pegando em sua mão, ela disse:
 
- Fernandes... agora eu sei que eu não deveria ter vindo aqui, não hoje. Mas já que estou aqui...
 
Ela abaixou os olhos e as lágrimas escorreram por sua face. Fernandes tocou com o indicador no queixo dela, erguendo- lhe o rosto devagar e, com as costas dos dedos, enxugou- lhe as lágrimas.          
 
- Marilyn, - disse ele, num tom calmo e conformado – tudo que vivemos foi belo, foi especial... Mas agora não podemos mais reaver o que passou, seria até imoral, desrespeitoso da minha parte para com a memória de Weruska e também da sua parte para com o David... Ele certamente não entenderia... poderia até prejudicá-la muito na separação, na partilha dos bens do casal.  Eu... eu gosto muito de você pois, apesar das circunstâncias, eu não posso negar este fato, porém vamos dar tempo ao tempo, se tiver mesmo que ser, um dia será.
 
- Eu concordo com você e vou seguir minha vida como planejado, quem sabe um dia nossos caminhos se cruzarão outra vez. Mas posso te pedir um favor?
 
- É claro que pode!
 
- Sei que você deve estar sofrendo muito, mas não deixa de viver, não, você ainda é jovem, tem duas crianças lindas e que dependem de você. Seja forte! Você promete?
 
- Eu somente prometo que vou tentar.

Marilyn levou o indicador aos lábios, deu um beijo e o levou aos lábios de Fernandes, depois foi embora. Ele ficou ali, olhando-a partir, sem nenhuma reação.

 
 
Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 28/05/2019
Reeditado em 31/05/2019
Código do texto: T6658496
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