Como um rio que passa e fica
“Oh! Eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh’alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n’amplidão dos mares.”
Castro Alves
“Vocês vão mesmo pescar hoje?”, perguntou Alice que não gostava de peixe e não era formada em biologia como nós. Tiago desligou o rádio enquanto Suellen amarrava os cabelos num coque no alto da cabeça. Júlio sorria e tomava pequenas doses de destilado. Eu, que não gostava de preparativos, mas gosto de Alice, respondi: “Vem com a gente ver o garanhão suado do rio, lamber o dorso quente e arrepiado da terra”. Todos riram, inclusive ela. Virei uma dose de conhaque duplo, acenei para a turma e fui preparar a mochila.
Duas casas e um terreno baldio me separavam de Alice quase todas as noites. Havia também os seus gatos: gordos, peludos e ciumentos. Enquanto mexia nos anzóis pensei neles. Senti um tremor quando uma cauda amarelada roçou de leve meu calcanhar. Alice veio logo atrás. Abriu o portão e sorrindo timidamente falou: “Sinto, mas não posso ir. O Grow está passando mal. Tenho que levá-lo ao veterinário”.
Olhei para ela por entre latas de isca e balancei a cabeça querendo dizer tudo bem. Alice adivinhou meu pensamento e disse que nos falaríamos assim que eu voltasse. Estalando os dedos e os lábios pis pis pis saiu levando o gato gordo com ela. Eu fiquei olhando para o gato, para Alice e depois para o sol até escurecer as vistas.
Com óculos escuros, por causa do sol e da excessiva poeira, rodamos cinquenta quilômetros atravessando extensas plantações de cana-de-açúcar, soja e milho até chegar aos confins do município, onde enormes fazendas faziam fronteira com o grande rio. Como tínhamos amigos em comum na região, eles solicitaram ao seu patrão uma permissão para que pudéssemos pescar na propriedade. O título de biólogo ajudava bastante, pois acreditavam que além de pescar, iríamos localizar ou catalogar espécimes. Por isso, toda vez que chegávamos ao local tínhamos um bom barco à espera.
Assim que descemos da velha caminhonete cabine dupla tiramos as tralhas e caixas da carroceria. Os amigos e amigas foram cumprimentar o capataz seu conhecido. Eu fiquei preparando as iscas, os anzóis e - quando ouvi o aprazível canto do sabiá - esqueci de preparar meus olhos para a imensidão da beleza do rio diante de mim. Como descrever o canto dos pássaros? Onomatopeias, dirão eles...Onomatopeia: palavra feia para designar coisas lindas quando se trata da Natureza.
Tudo pronto e o barco atravessa o rio como uma pessoa atravessa a vida, oscilando. Às vezes para lá, às vezes para cá esse barco vai à deriva e indo percorre não só o rio, mas a paisagem marginal. Também é atravessado pela água que molha o casco. Das margens chega o alvoroço da mata com seus galhos, suas árvores seculares e o perfume das flores - cada vez mais escasso - assoprados pelo vento.
Nosso barco segue. Segue acompanhando a água. Nós estamos nele assim como estamos na vida: balançando perigosamente. Seguimos içando as linhas, fisgando os peixes, mexendo nos embornais e retirando algo para beber. É bom molhar a garganta e as mãos na água corrente. São dois inequívocos sinais de que a vida segue. Vai e esvai.
Olhando a vasta extensão do rio e das matas ciliares fui invadido por um pensamento abissal e disse aos amigos que sentia, naquele momento, uma indescritível vontade de ficar ali para sempre, de se tornar um recluso, de viver no mato e no rio como o personagem do conto “A terceira margem do rio”. Disse-lhes ainda que gostaria de ser um solitário até para pescar. Eles olharam para mim e riram de balançar o barco. Depois, tentando me dissuadir de tal ideia alegaram que a pescaria não é um ato solitário e que só um selvagem, um primitivo poderia pescar ou caçar sozinho porque nós, na atualidade, fazemos tudo em grupo. Explicaram também que para nós - humanos modernos - o que importa não é o ato em si, mas a nossa união em torno do ato. No íntimo eu concordava com eles, mas em público - e diante do barulho do público - eu me obrigava a discordar deles.
É bom que se diga que Júlio, o mais tímido de nós, concordava comigo nesse caso. Nessa hora eu citava exemplos e Júlio - balançando a cabeça em concordância - ouvia atentamente. Eu argumentava que as abelhas, os peixes e as formigas mesmo vivendo em grupos tinham um instinto de individualidade expresso no seu senso de dever, de cada um fazer a sua parte, ou no seu instinto de preservação no caso dos peixes, pois nunca se registrou que nenhum peixe jamais salvou o outro do anzol. Os amigos diziam que álcool em demasia e carência estavam fazendo mal ao meu cérebro. Eles riam desbragadamente e afirmavam que os peixes, principalmente, saíam da proteção grupal para ganhar a liberdade mortal nas mãos humanas.
Dando goles sonoros em suas cervejas, diziam: “Tente não apenas ler seus livros, mas também viver a vida. Veja, Hemingway pode ser um exemplo. Ele lia e vivia e vivia mais do que lia”. Olhando para o horizonte e simulando sabedoria eu falava: “E vocês? Tentem também não apenas ler seus livros. Tentem defender a vida sobre a qual vocês estudam. Sejam melhores biólogos. Ademais, meus amigos, Hemingway morreu com uma bala na cabeça”. Eles, já impacientes, retrucavam: “E você como pretende morrer?”.
Passávamos meia hora ou mais sem nos falar. Entretanto, nem tudo é tão ruim assim. Quando se está pescando uma das exigências é o silêncio. E em se tratando de silêncio - essa palavra sagrada para mim - a natureza é rica dele. Os cicios, os pios, os grunhidos, o balançar dos galhos e o farfalhar das folhas não são barulhos, são milagres.
E seguimos preparando novas iscas, fisgando no vácuo, olhando uns para os outros e sorrindo aqueles sorrisos alcoolizados. O reflexo do sol na água esquentando o nosso peito e perturbando nossa vista. Desse modo, e alegremente, partimos para a margem mais próxima. Júlio ia preparar uma trempe, Suellen e Tiago iam armar a barraca. Eu recolheria gravetos e folhas secas para acender o fogo. E assim se passou mais uma hora.
Quando o sol estava para lá do meio do céu e os amigos fugiam dele como quem foge de uma dívida, eu caminhava tranquilamente até um bosque de ipês e, recostado em um tronco, absorvia a energia da flora do cerrado. Tudo estava em paz na Natureza, mas dentro de mim um vulcão em chamas chamado paixão não me deixava respirar livremente. O perfume que chegava das caliandras e do distante flamboyant adentrava em meu corpo como ar puro e saía dele como saudade. Toda a beleza tinha para mim um nome: Alice. E eu murmurava esse nome, falava para mim mesmo, tinha vontade de gritar e gritei. Em alto e bom som. O eco sobressaltou os amigos e fez estacar o rebanho bovino que se aproximava do ipezal. Todos me fitaram; gado e gente sorrindo e ruminando.
Por fim, quando estávamos cheios de nós mesmos e nossos samburás repletos de pintados, pacus e curimbatás, enchíamos nossas sacolas com frutinhas das margens do rio: ingás, gabirobas e pitombas as quais comeríamos todas na viagem de volta. Eu ia recolhendo as frutas e sonhando enquanto os peixes ficavam inertes sob o sol. Os maiores seriam devorados em alguns dias. Os menores seriam esquecidos no fundo de algum freezer. Eu levaria dois ou três e comeria apenas um. Os outros seriam cortados em cubinhos e postos em pratos de papelão e deixados sobre o muro de casa. No outro dia cedo, segunda-feira, os pratinhos estariam limpos e lambidos e junto deles alguns gatos esticando e balançando seus longos rabos amarelos e pretos, sorrindo e desfilando sua indiferença sobre os muros alheios. Nisso tudo eu pensava antes de voltarmos.
O sol se escondendo atrás dos ipês floridos e o capataz desfilando com seu cavalo baio próximo à caminhonete eram dois claros indícios de que havia chegado a hora de partir. E assim, depois de recolher a barraca, a trempe e as tralhas, apertamos a mão do nosso anfitrião. Ele, retirando o chapéu, permaneceu de pé ao lado do paciente animal enquanto nós subimos na D20 e partimos cortando a escuridão da noite com os velhos faróis amarelos empoeirados.
Pelo caminho fui pensando que ao chegar contaríamos a nossa bucólica aventura para Alice. Eu falaria do rio, dos ipês e das flores e perguntaria a respeito da saúde do Grow. E Alice riria e ficaria feliz, tão feliz que no outro dia cedo ela iria até a minha casa buscar seus gatos que passeavam satisfeitos sobre o muro.