A Viúva E O Delegado

Numa sala escura e fria, Selma respondia aflita ao interrogatório do delegado Nonato.
― Eu já lhe disse, Doutor. O Zé escorregou no banheiro, eu tentei abrir a porta, mas não consegui. Bati, bati, bati e nada.
― E como então?
― O quê?
― Como a senhora conseguiu entrar?
― Eu? Eu não entrei!
― Mas a senhora me disse que viu seu marido lá, caído, nu, com a água que jorrava do chuveiro ainda aberto conduzindo o sangue para o ralo.
― Ah, sim. Eu vi mesmo. Que cena triste, Doutor! Que cena!
― Mas como a senhora viu se não conseguiu abrir a porta?
― Meu filho...
― Seu filho abriu a porta?
― Não!
Irritou-se:
― Então que diabos tem seu filho?
― Meu filho também me fez essa pergunta. O Delegado Nonato que fumava um cigarro paraguaio, aproximou-se daquela senhora quase idosa num vestido maltratado, e com os dentes cerrados continuou:
― Eu te dou um soco! Ouviu bem? Um soco!
― Mas por que isso agora, Doutor! Vai bater numa idosa? O senhor teria coragem?
Refletiu um pouco sobre o absurdo de ameaçar uma senhora quase idosa e depois continuou:
― A senhora trate de me responder o que te pergunto sem bancar a engraçadinha!
Olhando para as unhas com certo cinismo, rebateu:
― Eu tenho respondido a tudo que o senhor tem me perguntado, agora, preciso saber se posso contar o que aconteceu ou se tenho que falar o que o senhor quer ouvir.
Irritou-se outra vez:
― Mas que velha filha da puta a senhora é! Escuta aqui! Eu quero ouvir a verdade, só isso, a verdade!
― A verdade é que o Zé escorregou no banheiro, foi tomar banho descalço, eu avisei.
― Escuta aqui. Não é verdade que a senhora ameaçou o seu marido, José, na frente da vizinhança inteira, no mesmo dia da morte dele?
Respondeu como se falasse o óbvio:
― Mas é claro. Nessa altura do campeonato, um homem velho daquele se engraçando com a vizinha nova! Ah, tenha dó!
― Se “engraçando”? Como isso?
― O senhor não é muito bom das ideias não é mesmo?
Espumou de raiva, depois respirou fundo forçando manter a calma:
― A senhora quis dizer que o seu marido estava flertando com essa tal vizinha?
― Isso, isso! A moça é bonita sim, mas eu na idade dela era muito mais, e outra, ela não sabe rebolar, fica vulgar. Eu não, eu quebrava a cintura com classe, com elegância. Veja.
Levantou-se com dificuldade e foi ensaiando um rebolado, mas foi advertida por Nonato:
― Pelo amor Deus, sente-se aí que eu ainda não acabei! Eu quero que a senhora me responda as perguntas e não que rebole.
Sentou-se decepcionada:
― Posso? ― apontando para o maço de cigarros paraguaios de Nonato.
― Pode! ― entregou-lhe um cigarro e o acendedor.
― Vou ser bem claro com a senhora, Dona Selma! Tenho testemunhos de vizinhos que a senhora teria armado tudo para assassinar seu marido. Inclusive, relatos de que a senhora teria lavado o banheiro com um sabão bem escorregadio e que depois ainda teria escondido o par de chinelos do senhor José, provocando assim o suposto acidente dele.
Com uma expressão de incredulidade infantil respondeu:
― Então eu estou sendo acusada de assassinar meu marido com quem convivi por quarenta anos só porque eu lavei bem lavado o banheiro da minha casa?
Com certo constrangimento insistiu:
― Mas eu tenho testemunhas!
― Delegado, com todo respeito, o senhor quer jogar no lixo a sua reputação? ― Não estou te entendendo, Dona Selma!
― Está entendendo sim, seu puto!
― Olha! Preste bem atenção como fala comigo ou eu te prendo por desacato!
― Prende nada! Prenda então, vai, prenda! Que dê?
― A senhora é uma velha abusada!
― E o senhor é o delegado mais burro do Brasil, quiçá do mundo ou quem sabe de qualquer outro lugar da galáxia que tenha algo parecido com vida e com alguma coisa que lembre delegado. Vai ser burro assim no inferno!
― Vamos parando por aqui! Me arrependi de ameaça-la, mas já me arrependo também de ter me arrependido, então tome cuidado com as palavras ou não respondo por mim! Não respondo!
― Mesmo que eu confesse...
― Então a senhora o matou!
― Escuta! Mesmo que eu confesse que eu tenha matado o Zé, ainda assim seria uma história difícil de emplacar! O Zé caiu no banheiro tomando banho com a porta fechada, se um belo dia eu venha me arrepender de ter confessado e lamente profundamente estar presa, eu posso dizer que fui pressionado pelo Doutor, que como todo mundo sabe era apaixonado pelo Zé!
O Delegado deu pulo para trás, quase caindo da cadeira!
― A senhora está caducando, é isso? Só pode ser!
Selma sabia do romance do marido com o Delegado Nonato, os dois eram perdidamente apaixonados, mas ela por amar o Zé com toda a força de sua alma, sempre fingiu não ver o obvio, até mesmo a briga com a suposta vizinha nova com quem seu marido teria se engraçado não passava de uma narrativa que ela mesma criara para contar uma mentira a si mesma de que o Zé gostava de mulheres e só de mulheres.
Depois que deu em belo trago colocou o cigarro no cinzeiro, segurou com carinho as duas mãos do Delegado Nonato e encarando-o nos olhos disse:
― Eu sei, vocês se amavam ― Nonato tentou tirar as mãos das mãos de Selma, mas ela segurou firme ― e hoje eu reconheço a força desse amor, de um amor escondido dos olhos mais conservadores da nossa sociedade, eu posso imaginar toda a sua angústia, mas eu não matei o Zé, o meu Zé, o nosso Zé! Ele escorregou no banheiro, quando a ajuda chegou ele estava lá caído, molhado e morto.
Nonato levantou-se, contornou a mesa e abraçou a viúva num choro de consolo e de profundo lamento.
Pedro De La Rosa
Enviado por Pedro De La Rosa em 13/05/2019
Reeditado em 13/05/2019
Código do texto: T6646096
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