No início antes do início

No início antes do início, nada havia para se contemplar.

Tudo o que havia era Rakari, o Potencial.

“O único”, porém, estava preso. Sua visão, audição, e movimentos estavam contidos por um pesado manto, Dúvida, e graças a isso, nada havia.

Deitado desde sempre, nunca encontrara, em seus arredores, formas de se libertar, virando sua atenção ao mundo dentro de si.

Em seu mundo interior imaginava outras existências para lhe fazer companhia, todas, porém, desapareciam no momento de sua criação, destruídas pela força esmagadora da Dúvida. Extremamente inconformado, “o único” chorava uma eternidade para cada existência não concluída.

E eternidade após eternidade, Rakari ousava criar, mas o pesado manto o impedia, crescendo ao se apropriar de suas ideias.

Em outro ponto do infinito vazio, encontrava-se Aysha, a Ação.

“A ininterruptível” vagava pelo nada em busca de qualquer coisa que a retirasse de sua infernal e tediosa inércia.

Sem sucesso, seguia de eternidade em eternidade buscando interagir com esse mundo intangível e carente de conteúdo. A inexistência a deprimia.

A Ação, então, encontra o Potencial suprimido pela Dúvida.

Certa adrenalina transpassa seu corpo. Realmente havia algo ali.

Observava, apiedada, a criatura pressionada contra o solo de forma tão brutal.

Determina-se, então, a libertar esse único ponto de existência, que, no fim das contas, era o que ela estava procurando há muito tempo.

Movendo somente um grão-de-areia de distância a cada eternidade, despendia todo seu tempo na tentativa de livrar o Deus-cativo de seus grilhões.

Em certo momento, após incontáveis tempos, Aysha solta as orelhas de Rakari.

Com o desferrar de seus ouvidos, o Adormecido desperta para o mundo ao seu redor, podendo somente, ouví-lo, e nada mais, já que sua face e seu corpo ainda se mantinham aferrolhados à superfície.

No instante em que a audição do Deus e voz da Deusa passam a coexistir, o som é formado, quebrando o eterno e implacável silêncio.

Nesse momento, a Ação dá-se conta do ritmo produzido por seu labor, e naturalmente entoa uma canção, de forma a tornar sua empreitada menos árdua.

“O não-mais-único”, escutando tão bela ária, entra em estado de profundo êxtase. Nunca havia sentido nada parecido no seu mundo, ele jamais teria concebido tal ideia. Em certo momento, porém, entristece-se ao perceber que em breve o som lhe será arrancado por seu cruel carcereiro, assim como todas as belas coisas que nunca conseguira criar.

Com o tempo, porém, a música não desapareceu, e o Potencial adorava escutá-la durante as eternidades que se passavam. Além disso, um ruído extremamente satisfatório se apresentava junto da melodia. O som da Dúvida sendo desenraizada de si era encantador. Mas o que estava ali, que combatia o invólucro sombrio com tanto afinco? A determinação do que quer que houvesse do outro lado era admirável.

Passando-se mais tempo do que qualquer registro físico ou psíquico é capaz de assinalar, a cabeça de Rakari estava livre. Sentiu, pela primeira vez, a luz inundar seus olhos, e contemplou o vazio da inexistência. Ele agora podia pensar acerca do mundo à sua volta.

Aysha, vendo a criatura se mover, tenta se comunicar. Ele, então, a responde. O silenciado finalmente recebera voz.

Ambos começam a conversar. Ela explica como o encontrou, após tempos infindos vagando pelo nada. A exploradora tinha certeza, já que havia se aventurado por todo o vazio, que só haviam três coisas: Potencial, Dúvida e Ação.

Já “o recém-desperto” lhe contava sobre como fora a existência junto à Dúvida, da beleza de todas as coisas que Ele criara em seu mundo íntimo e sua inevitável ruína.

Eles se maravilhavam cada vez mais com o discurso um do outro. Rakari, arrebatado por toda a liberdade e energia que a Ação lhe apresentava, e Aysha totalmente apaixonada pelo mundo maravilhoso e inexplorado que o Potencial pintava em sua frente.

E assim se seguiram mais e mais infinitos, um cada vez mais próximo da emancipação, outra cada vez mais próxima de todo um mundo de aventuras e experiências inimagináveis, e ambos cada vez mais próximos entre si.

Passadas mais e mais existências, A Deusa-redentora desagrilhoava o tronco e os braços do Deus-recluso. Graças à isso, junto dEla, criavam coisas até onde a vista alcançava, e se divertiam com sua alegre missão, cantando e contando histórias. Enquanto estivessem de mãos dadas, tudo poderia existir.

Aysha, percebera, porém, que as coisas só surgiam no raio da visão de Rakari. A Ação novamente encontrava o Potencial limitado pela Dúvida. Agora que ambos provaram a libertadora sensação de pintar a inexistência com coisas tão belas, lutariam com ainda mais afinco para atingir sua plenitude. Ela libertaria as pernas de seu parceiro para que pudessem, juntos, criar ilimitadamente.

Quando retornou à sua posição para retirar o Manto, este se moveu, agarrando-se firmemente às pernas do cativo, machucando-o.

Aysha se desespera, tem que soltar Rakari o mais rápido possível. Ele, agora, sofria mais do que nunca, seus gritos de dor podiam ser ouvidos ao longo de todo o nada. Enquanto isso, todas as coisas ao redor dEles se degradavam gradativamente, quão mais forte as trevas estrangulavam a divindade.

Após infernais eternidades, “a ininterruptível” e “o não-mais-único”, encontravam-se exaustos. Ele por toda a dor infligida, Ela por todo o esforço hercúleo despendido durante tanto tempo.

A Deusa, exausta, cambaleia para a frente de sua contraparte, e cai, conseguindo somente encarar seu companheiro. Ambos, com expressão abatida, chorando.

Os olhos brancos de Rakari e os olhos negros de Aysha se encaravam, suas pupilas dançavam, dilatadas, enquanto percorriam o infinito presente no olhar do outro.

Magneticamente seus rostos se aproximavam. Fechando os olhos, mergulharam na face um do outro, unindo seus lábios num momento que parou o tempo; instantaneamente produzindo uma infinidade de existências ao seu redor. Tão rápido quanto foram criadas, as coisas pulverizaram-se, se tornando pontos de luz no vazio.

O tudo e o nada encontravam-se atônitos, e até mesmo o Manto tremeu diante do ato de infinita completude mútua, no qual dois se tornaram um só, mesmo que brevemente.

Do primeiro beijo surgiu o Amor.

Quando abriram os olhos, toda a situação invertera-se. Rakari agora estava livre, deitado, observando sua amada ser encarcerada por uma Dúvida que não a pertencia. O Deus-cativo estava liberto, e a ininterruptível, presa.

Agora um estava forçado a olhar o mundo do outro. A Ação encararia o mundo íntimo, enquanto o Potencial teria de enfrentar o mundo exterior. Não estando, porém, sozinhos. Um ensinaria o outro a caminhar por tão íngreme e desconhecido caminho.

E dessa vez, nem é cabível mencionar quantos intermináveis infinitos e eternidades foram percorridos no tempo.

Enquanto o Potencial, segurando a mão da Ação, projetava todo um mundo que conspiraria para a libertação de Aysha; a Ação digladiava-se eternamente com a Dúvida, num combate frenético e insano pelo domínio do reino interior de Rakari. Cada um dos Deuses lutava pelo que era do outro.

Tão forte era a determinação da Guerreira, que o manto se movia, mesmo que pouco, só com a sua força de vontade. Isso inspirava e apaixonava cada vez mais o Arquiteto, que ordenava todas as coisas a auxiliar no rechaço do Véu Negro.

Em certo momento a iluminação os alcançou. Um havia se tornado tão afeito à realidade do outro, que finalmente entenderam os mecanismos que separavam os mundos.

Numa explosão de energia, voltaram aos seus lugares originais. Agora sabiam exatamente o que fazer. O Potencial lutava fervorosamente contra a Dúvida, movendo os pés sucessivamente, para afrouxar os grilhões. A Ação, num único e definitivo movimento, utiliza toda a sua força e conhecimento adquiridos durante seu combate eterno contra o Carcereiro para atirar aos céus, de uma vez por todas, as correntes de seu amado.

Ambos finalmente estavam livres da Dúvida.

Instintivamente correm em direção ao outro e se abraçam, chorando copiosamente. Nem na maior das empreitadas, ou em seus sonhos mais belos, imaginaram que o calor do outro seria tão intensamente confortante. Trocavam palavras de afeto e carícias enquanto se mantinham completamente enlaçados. Então olharam para cima.

Lá estava o manto, pairando sobre Eles.

De mãos dadas se olham e ascendem.

Tocam no véu, e este começa a desvanecer.

No momento em que a Dúvida de dissipa, todas as coisas passam a haver.

A existência, em sua forma primordial, começa a varrer o nada a partir de onde se encontra o divino casal.

De seu Calor, surge a maior da criações: A vida. A única coisa com potencial e ação próprios, a representação perfeita do Amor. A primeira espécie, que originaria, um dia, homens e mulheres.

Em paz, eles descem ao solo, encostando seus pés sobre a relva.

De mãos dadas, então, o casal parte em sua missão de conhecer todas as coisas geradas por seu amor, seu esforço e sua dúvida.

Criando, no meio do seu percurso, qualquer sorte de coisas incríveis que Suas mentes projetassem e seus corpos produzissem.