Quem nunca se sentiu cheio de medo
Diante do abismo de sua imaginação?
 
 
 
A cidade, se lhe parecia uma selva de concreto por onde  caminham    ovelhas sem pastor. Transeuntes vão, outros vêm em fervilhar de formigueiro. Correm apressados, seguem assustados; aflitos como galinha  em território de gavião. O trem metropolitano, veloz, parece parado,  o que ela vê são vultos de homens e de mulheres voando, penduradas como roupas no varal. Não dá tempo de  reconhecer  as bonitas que se misturam com as dentuças, banguelas, brancas, pardas, e amarelas. No metrô, viajam homens de toda estatura: sérios,  grandes, pequenos, negros e branquelos, corados, brancos e  amarelos; boas e más  criaturas voam vestidas  de muitas cores. As etiquetas de pano fino ou grosseiro guardam  mulheres, homens e meninos, com marcas famosas, e também as baratas compradas na feira livre. Em cada estação, desce passageiro, sobe passageiro, e o trem sai cheio de gente. Gente de todas as raças; mulheres de todas as taças, grandes ou miúdas, trafegam ligeiro em muitas direções. Multidões de veículos  deslizam velozes no negro asfalto. Adiante, um assalto põe a vítima em histérica gritaria. Ninguém para. Só espia. Tudo passa apressado na janela da existência, e já não  se tem tempo sequer para um bom-dia ou como vai. A noite cai e guarda em sua sombra a  Pedra da Gávea. Ravenala espera que antes da quinta estação, Deus lhe desse um par para seu coração. Ela   não pleiteava um herói de pancadaria em  teatro de mamulengos. De modo algum,  invocaria frei Gaspar de Santo Antônio, mas o próprio  Antônio, casamenteiro de Pádua, para lhe conseguir um marido. E, por  não alimentar sonhos de princesa, queria um casamento simples. Pouca gente à mesa. Poucos convidados e coral tocando a marcha  das núpcias.  Queria casar-se de dia, de noite, na rua, no céu, no mar, na lua,  ainda que fosse com um vesgo.
O trem chia, chegado.
 Fernão ocupava uma cadeira no primeiro vagão. Ravenala  desembarca na Estação Carioca. O passageiro segue viagem. Nunca lhe dirigira a palavra senão, quando a perna da moça ficou presa no vão entre a plataforma e o trem.
—Machucou? 
—Não, não. Apenas arranhões...
—Mas está sangrando...
—Sangra pouco.
Passou o número do telefone, anotado em um pedacinho de papel  retirado da agenda. Acompanhou-a com o olhar e despediu-se, tão logo o enfermeiro limpou os ferimentos e entregou às moça  um pacote com mercúrio e algodão: “Repita este procedimento Ravenala desejou vê-lo novamente. Não o enfermeiro. O passageiro cortês e delicado que a socorreu. Seria como encontrar uma agulha no palheiro. O Rio de janeiro é grande e movimentado em qualquer estação.
Pôs a melhor roupa, soltou o cabelo, passou maquiagem e ligou para o número recebido. O celular tocou, até cair na caixa postal.  Apressou-se para pegar o metrô e ocupar o primeiro vagão. O trem chiou a um palmo de distância de seus pés. Lembrou-se da perna presa no vão da plataforma e entrou com cuidado. Letreiros do túnel passam em película acelerada. O maquinista puxa as rédeas do cavalo de ferro e aos poucos, a  máquina perde velocidade.
 
Próxima estação, Estação Carioca.
 Next stop Carioca station, landing on the right side.
  
Mal para, vai outra vez  o trem, correndo ligeiro e desaparece na curva do trilho.  Repete a manobra, e faz todo dia o mesmo circuito. A moça tenta desembarcar, mas  não cabe entre os passageiros. Fica presa antes do vão da porta.
Passa do ponto de descer.
Na estação seguinte, arrastou a bolsa de uma senhora que se pôs a gritar: ‘Larga... larga...larga minha bolsa...’A alça se rompe. A bolsa fica. Ravenala sai.
O primeiro vagão estava cheio de gente vazia, duas velhinhas conversavam em pé, porque as cadeiras reservadas aos idosos estavam ocupadas por jovens, que sorriam zombeteiros. Pessoas penduradas nas barras de ferro  disputavam um lugar para colocar as mãos. Olhou atentamente. Aquele homem não usava terno. Não era, portanto,  o cavalheiro que a ajudara no dia do acidente na plataforma. 
Saiu e se sentiu sozinha. Sozinha  na movimentada Barão de Rio Branco. Transeuntes caminham apressados e  cada rosto que passa, não deixa rastro da fisionomia. Ninguém conhece ninguém. Não sabe o nome que o outro  tem, nem onde mora. Tanto o nobre, quanto o pobre, não  tem nome. É apenas passageiro do trem. Passageiro é seu nome.
Ela desceu.
Percorreu o desconfortável caminho do anonimato e  entrou em sua  loja de informática. Tudo organizado. Funcionários a postos e sorridentes esperando pelo  freguês. Ravenala usava uniforme da loja e se misturava no meio dos empregados. Não se sentia  dona de nada, apenas administrava aquilo que lhe fora confiado por empréstimo. Agradecia a  proteção divina, e ao mesmo tempo, questionava no silêncio de seu coração: “ O Senhor tem muitos filhos!  Por que não me emprestar um deles? Prometo devolver multiplicado.”
Precisava fazer algo.
O algo importante, na maioria das vezes, era apenas falar de  flerte. Essas coisas são, de fato, muito importantes para uma moça que tem a pretensão de encontrar sua outra metade.
Chegada a hora, fechou a loja e saiu à procura de um local aonde pudesse encontrar pessoas descontraídas, envoltas em sonhos.
— Oi, Morgana! Bom te ver aqui.
— Oi, Ravenala! Você fica linda com este arranjo vermelho sobre as vestes negras.
À altura do peito esquerdo, uma rosa vermelha desabrochava pétalas confeccionadas por mão humana, muito próxima a uma obra da criação divina. Parecia natural.
— Obrigado! Você também linda com este penteado.
 Na confeitaria, a  conversa toma corpo e acaba desaguando nos negócios da loja: a demissão de um funcionário, ou  o atendimento a um cliente especial. Distraidamente, Ravenala permitiu que imagens de uma gruta úmida e escura invadisse o mais profundo de seu ser. Precisava remover aquelas cenas. Tinha medo de solidão, de escuro e de tudo que a isolava do contato com o mundo exterior. Quis mudar a linha de pensamento, mas percebeu que o medo  da solidão se afastava dela, na medida em que enfrentava o próprio medo. Sairia devagar do sonho que alimentava em vigília, como se não tivesse medo de sonhar. Não queria acovardar-se diante da luta contra o invisível, nem podia interromper as fantasias que visitam o mundo imaginário de um sonhador.   Mas, chegar ao ponto de querer morar numa ilha para vencer o medo da solidão é fantasioso demais.  Quem sabe, na ilha do amor. Quem sabe?  
Ravenala parecia desanimada. Nenhum fato novo surgia na busca empreendida à caça de um parceiro. Nenhum rapaz com o qual pudesse dividir o travesseiro e juntar as escovas
— Não fique assim — disse Morgana — tristeza não cabe em teu rosto. Saia do casulo. Tire esse luto de virgem vestal.
— Estou mais  para o tom cinza...
— Não gosto do cinza. Cinza  é pó da tristeza, depois que a chama do amor se apaga. Prefiro o azul-celeste.
Fez uma pausa. Tomou um gole de chá. Olhou para Ravenala que se mantinha em silêncio.
— Garçom, por favor!
— Pois não, senhorita!
— A conta...
Morgana deixou sobre a bandeja uma nota de cem reais.
— Não quero troco.
O garçom liberou um sorriso comercial e acumulou em suas reservas mais vinte por cento além da comissão.
— Vais de táxi?
— Não! Meu motorista já chegou. Queres uma carona?
— Obrigada! Vou de metrô.
— Não é por acaso que te chamam de ‘A dama do metrô. '
Riram.
— Gosto de reparar o rosto das pessoas na estação.
—  E queres trocar a cidade por uma ilha desabitada?...
— Vivo numa ilha dentro de um universo de falantes que não me compreende.
— O homem é uma ilha, se assim o quiser.  Que tens a fazer numa ilha deserta?
— Quando posso, afasto-me da cidade. Gosto de dormir tendo por teto as estrelas.
—  Não creio que alguém possa viver eternamente numa ilha. Dirias  a teu filho que há um mundo  perigoso,  depois do paredão das águas? Que depois da muralha, existem pessoas que matam seu semelhante  para roubar um  par de tênis? 
— Gosto de mistérios, e toda ilha tem seus mistérios.
— Talvez tenhas medo da solidão e por isso desejas morar numa ilha.  Neste caso, o   próprio veneno é o antídoto que procuraras para curar teu coração.
 — Talvez seja. A própria solidão me  incomoda, mas me estimula a procurá-la.
— A ilha tem seus mistérios, se gostas de mistérios... e também de problemas, vá para uma ilha deserta.
Morgana acomodou as costas no espaldar da cadeira e respirou fundo.
— Sinto-me um caranguejo ermitão levando sobre as costas a  pesada concha de uma ostra. Carrego peso que não é meu. Carrego entulhos acumulados na mochila, que precisam ser jogados no lixo.
— Morga, somos hóspedes do mundo que  construímos e, em torno deste mundo orbita nossa alma. Agora voltemos para casa, porque a noite é chegada.
—Não viste mais Fernão?
— Não! Não o vi mais...
Aos poucos, os fregueses da confeitaria se retiravam. Morga e Ravenala também saíram.
Era noite no Rio de Janeiro.

***

Adalberto  Lima, trehco do romance: "Estrela que o vento soprou", anteriormente denominado "A dama do metrô" cujo título inspirou o enredo da obra.