Besame! Besame mucho...
Estava meio jururu devido aos achaques frequentes da terceira idade. Mas tirava de letra essas amolações que faziam parte do show da sua vida. Bastava tomar um Apracur com um chazinho de cidreira, sentar numa velha cadeira de balanço e ficar ali assuntando a maçaranduba do tempo. Era remédio santo. Ora cochilava e ora divagava, sempre com um radinho de pilha ligado bem baixinho. `ss vezes nem sabia se estava cochilando ou divagando. Dizia de si para consigo mesmo, rindo: - É tudo a mesma mierda! O tema das divagações era sempre o mesmo, recorrente e contumaz: o passado. Era um saudosista inveterado. Quando questionado sobre essa mania, respondia citando um trecho de uma crônica de Antonio Maria: "Não desprezeis minhas humildes saudades, mas buscai, em vossa meninice, lembranças como estas e elas vos restituirão um certo apego, um pouco de bem-querer aos dias de hoje tão sem graça ma sua maioria".
Ao despertar de um cochilo, ouviu no radinho a voz de Elis Regina cantando um bolero de João Bosco e Aldir Blanc: "Dois pra lá e Dois pra cá", uma das suas músicas favoritas que fazia despertar nele saudades e nostalgia (a saudade chique). Quando ouviu o começo da música,"Sentindo um frio em minha alma/ Te convidei pra dançar/ Atua voz me acalmava/ São dois pra lá e dois pra cá...", ficou emocionado e, como sempre acontecia, começou o "cascatear de lembranças". Enquanto Elis cantava, ele recordou uma espécie de conto que escrevera e nunca publicou com medo que rissem dele porque era tipo água com açúcar. ,as, pasmem, gostava desse escrito. Foi buscar o texto que estava escondido dentro de um velho dicionário. Voltou à cadeira de balanço e leu com os olhos marejando esse escrito que intitulou "Besame Mucho".
"Era a época que reinava absoluto o bolero:os anos dourados. Bebeto era apaixonado por Martinha. Ele era filho de um alfaiate e de uma cotureira; ela de um humilde funcionário da prefeitura e sua mãe se ocupava apenas das prendas domésticas. Ele estudava no colégio dos padres. seis pais com muito esforço conseguiam pagar as mensalidades; ela, no colégio das freiras, graças a uma Bolsa Escolar conseguida pela prefeitura. Ele era um aluno estudioso, muito esforçado; ela era excelente aluna, a primeira da classe, querida pelas freiras que doavam os livros e até a farda.
Bebeto e Martinha flertavam à distância. Eram ambos muto tímidos, mas quando se fitavam seus olhos diziam o que seus corações lhes ditavam. Bebeto era u rapaz forte, educado e alto; se não era bonito, compensava isso com sua simpatia. Martinha era muito bonita, mas devido às roupas acanhadas e à falta de qualquer enfeite, quase assava desapercebida. Os dois eram fãs do bolero. Era a rilha sonora de suas vidas. Ouvindo esse tipo de música fantasiavam seu amor. Bebeto frequentava os bailes, mas Martinha nunca, sequer, entrara num clube. Mas na solidão do seu quartinho fantasiava dançar bolero om Bebeto.
Continuavam nesse chove-não-molha quando anunciaram que o clube municipal iria promover um grande baile animado por uma orquestra da capital. s jovens se animaram e também todas as pessoas que gostavam de bailes. O pai de Bebeto reservou uma mesa; o rapaz, portanto, iria ao baile, mas estava triste porque a sua musa não participaria desse baile.E seu sonho era dançar com ela.
Mas a vida costuma surpreender e, não raro, de forma inusitada, até mesmo or intermédio de anjos da guarda do pau oco fantasiados de malandros. Fi justamente um deles, Zeca, um malandro de sinuca, amigo de Bebeto, que estando a par da tristeza do rapaz porque a sua musa não ria ao baile, quem bolou um plano para que o sonho do amigo e de sua quase namorada, se consumasse. Seguinte: Zeca era vizinho de uma moça riquinha, filha de um próspero comerciante, Nina, com quem, apesar de sua condição de malandro, se dava muito bem. Então, num papo tipo tapioca mordeu beiju, convenceu-a a levar Martinha ao baile, justificando que esse gesto seria um presente que ela daria àquela colega que tanto a ajudava (nos trabalhos do colégio e até nas provas com colas); acrescentou ainda que Nina deveria emprestar um vestido de baile e um par de sapatos à colega. Nina topou, sabia que era devedora e gostava de verdade da colega de colégio. Martinha ficou felicíssima. Bebeto, comunicado por Zeca, ficou radiante. Só faltava o plano dar certo e os dois se acertarem no baile.
No dia do baile Martinha acordou ansiosa, mas determinada. Tirou o dia para se arrumar. Passou a fero com muito cuidado o vestido emprestado intou as unhas, cuidou do cabelo ondulado e encaracolado deixando-o no ponto, enfim, de preparou devidamente para a grande noite. O vestido caiu nela como uma luva. Era um vestido de baile ousado que deixava quem o usava com as costas nuas. Botou o batom e o ruge da mãe... Só um apetrecho não ficou cem por cento: os sapatos de salto alto, apertavam um pouco, mas ela colocou band-aids nos calcanhares; não, não seriam uns calinhos à toa que iriam cortar o seu barato. Botou ainda mas bijuterias da mãe, brincos, colar e pulseira. Pertinho das dez horas da noite, Nina, acompanhada dos pais, veio buscá-la de carro. Quando entrou no clube a moça ficou encandeada com as luzes e a quantidade de pessoas. Sentiu um certo frisson.
Bebeto que já estava no clube, ansioso pela chegada dela, quando a viu ficou deslumbrado, comparou-a a uma artista de cinema; realmente a transformação da moça fora de fato radical; os rapazes ficaram logo ouriçados, o que fez Bebeto ficar com ciúmes e tomar alguns cubas-libres. Quando voltou e seus olhos encontraram os de Martinha, ambos sorriram, e os olhos sorriram ainda mais. Ele ficou tomando coragem para tirá-la para dançar. Após algumas músicas, a orquestra começou a tocar boleros. Quando tocou Besame Mucho Bebeto se aproximou da mesa onde Martinha estava e, sentindo um frio em sua alma, tirou-a para dançar. Quase não se falaram, falavam com os olhos que tagarelavam à beça. Ele era mais acostumado a dançar mas ele não. Só que o desejo, a magia do momento e a música eram ótimos professores, bastaria apenas então apenas um dois pra lá e um dois pra cá e priu. Os corações deles batiam de forma traçoeira mais forte que as batidas do bongô, e tremiam mais que as maracas... Suas cabeças rodopiavam mas que os casais na pista. Ele sentiu o perfume barato dela como s fosse francês. El colocou as mãos delicadas dela no pecoço dele que tremeu na base, e ficou ainda mais aceso quando passou suas mãos nas costas nuas dela, comeram macias!... E quando se uniram no coxas nas coxas, desasnaram de vez; ele ria satisfeito, enquanto ela mormurava no seu ouvido um verso da música: "Besame!/ Besame mucho,/ como se fuera esta noche/ la última vez....". Ele notou que os brincos dela eram iguais ao colar e à pulseira, mas ara ele eram jías de uma rainha. Viu ainda os torturantes band-aids nos calcanhares dela, mas e daí?, era apenas ma prevenção. Continuaram dançando bolero após bolero: Perfume de Gardênia, Três Palavras, La Barca, Angústia, Sabor a mi, Perfídia, Nosotros, Alguém me disse, Aqueles olhos verdes... Fizeram uma pausa, ee foi ao bar e dessa vez não tomou nenhum cuba-libre mas algumas doses generosas de uísque, pasmem, com guaraná. Voltou ara o salão e começou a danar novamente cm ela. Quando o crooner da orquestra cantou Solamente ma vez, no momento que cantou o verso, "Una vez nada mas, se entrega la alma/ com la dulce e total renunciación...", os dois riram e choraram. Dançaram até o fim do baile. Martinha não voltou para casa cm Nina, mas com Bebeto, descalça, com bolhas nos calcanhares, mas nada sentia a não ser amor. Na orta da casa dela trocaram um beijo caliente e depois vários repetecos. Como eram gratos ao bolero e ao anjo malanro!Era um amor para quinhentos anos, que, naturalmente, seria acalentado pelo bolero".
O coroa, terminada a leitura, recolocou o "conto" dentro do dicionario, desligou o radinho e adormeceu. Deve ter sonhado dançando um bolero nos anos dourados. Inté.