O FORASTEIRO

Você sabe o caminho, você me espera?

Andar no mundo não há mais segredo

Vamos, ainda não acabou

Correremos acesos

Vê as torres de segurança?

Entre o muro e o campo?

Não tremo

Sentiram o perfume da tua passagem no corredor de luz

(Cordel do Fogo Encantado)

Veio-me em um dia claro. Sua chegada foi em demasia. Ele caminhava em minha direção como se conseguisse notar algo em mim. Algo que eu não sabia que existia. Mas, teve o antes dele, de sua vinda, de sua demasia. Para que se possa tornar os fatos claros – na verdade, uma tentativa de deixar claro uma história que não sei onde começa e nunca chegou ao final – Mas, para que se possa ordenar os fatos será necessário falar sobre o antes.

Talvez fosse verão ou primavera, eu lembro disso porque também me recordo que havia muita luz e eu o pude ver quando ele se deslocava em minha direção. Aquele momento exato sempre ficará gravado na minha memória como uma fotografia – Alias, entre todas as memórias enevoadas e congestionadas abafadas que trago em mim, a do Forasteiro é a única que não se apaga, que não contamina, que não se limita apenas a uma espécie de lembrança ou nostalgia.

Porém, antes de retomar de onde parei e voltar para contar sobre ele preciso trafegar pelo lugar indevassável que trago em mim e indo mais fundo corro o risco de abrir fendas, caixas e memórias que talvez não devam voltar ao consciente. Contudo, é necessária essa volta. E vou contar aos poucos, com muito cuidado enquanto entro para o lugar de dentro, o âmago, pois, não quero pisar em falso ou trazer os demônios de volta.

Aconteceu que antes de sua chegada eu trafegava por um estado entre o que eu era e o que eu viria a me tornar. Talvez possa parecer um tanto paradoxal a compreensão do que é tão dolorido de expor em palavras. Mas, as pessoas, a gente, a condição de ser e estar no mundo parece uma demasia E foi no meio desse estado de ir se perdendo ou deixar-se perder que ele me veio. O Forasteiro.

Talvez no quarto ou quinto dia da semana, daquela semana, que tinha luz, sol, e eu sempre confundo se era verão ou primavera, porque também havia grama verde e folhas nas árvores. Eu estava parado no corredor pensando sobre como aquela cidade havia me feito mal, pensando em uma forma de escapar da vida, daquele tipo de vida a qual eu estava me adaptado. Acho, e digo isso quando olho de cima, hoje em dia, toda a minha história naquela cidade, mas, acho que acabei durante muito tempo em um estado de inércia e síndrome de Estocolmo para com aquela cidade que só era bonita no inverno, quando chovia e a gente podia ver a névoa ao rodar pelos ônibus que atravessavam o viaduto, cercado por gente, pessoas, indo para algum lugar ou voltando de algum lugar.

Esse antes que venho tentando conseguir falar diz respeito ao meu estado de espírito devassado por uma cidade putrefata que, lentamente, ia me contaminando. Até que chegou um instante no qual comecei a não saber como voltar. E quando falo em volta não me refiro, necessariamente, a um lugar, um espaço ou tempo. Mas sim a reencontrar a dignidade de se conseguir existir como as pessoas comuns conseguem.

O Forasteiro caminhou em minha direção naquele dia de luz. E hoje, pensando mais um pouco, desconfio que a luz emanava dele e não do verão ou da primavera ou do sol. Ele trazia um sorriso no rosto. Um calor no corpo. Um colar no pescoço, com uma dessas pedrinhas que simbolizam signos do zodíaco. Quem sabe ele era da astrologia, não lembro ao certo. Hoje, sei que ele tem algo de Oxum, Iansã. E, portanto, compreendo toda sua doçura e coragem para me guiar nas águas doces e nas noites tempestuosas.

Ele se aproximava e em demasia me perguntou algo sobre o livro que eu estava lendo. Ele conhecia o autor. Gostava até. O engraçado é que contado dessa forma parece que revivo aquela cena toda novamente. A luz, ele, o livro. E nada disso tinha um significado na hora que ele se aproximou porquê de repente aconteceu algo estranho em mim. E eu sentir um despertar, um estalar de dedos. Eu senti medo. Eu senti afeto. Eu senti uma confluência de paradigmas que foram sendo desconstruídos pelo Forasteiro.

Depois, o tempo passou, e ele veio na minha casa. Não bebia muita. Eu sempre bebia muito naquela época, usava qualquer tipo de escape para fugir daquela cidade e sonhar que estava em uma praia desértica. A vida não andava muito bem. Ele me falou de livros, me mostrou músicas e filmes. O vinho foi me deixando em um estado de transparência. Não, não foi o vinho. Foi o Forasteiro, ele me deixou em um estado de transparência, como se me visse a mim despido da condição humana. Como se conseguisse ver algo além. Algo que todos os outros que vieram antes e depois dele não conseguiam ver. E eu também passei a contemplá-lo dessa forma. Foi então que comecei a falar sobre coisas que nunca havia contanto para ninguém.

É estranho e sobre-humano quando você consegue se conectar com alguém de uma forma tão intensa. Como se existisse uma espécie de fio que saia de dentro dele e alcançava o de dentro de mim. E se fosse isso as pessoas poderiam chamar de amor. Mas, é que não era vontade de telo de uma forma romantizada, apesar das pieguices dessas palavras. Era diferente, quem sabe até sagrado. Eu digo sagrado porque depois de nossos primeiros encontros houve certo receio, porque eu nunca estou preparado para me jogar no azul, no espaço, em queda de própria altura. E sentir o que não se pode compreender ou nomear é sempre rodeado de complexidade.

O Forasteiro sempre vinha ao meu encontro e não importava como isso acontecia. Tiveram as cartas, as cartas que ele escondia em lugares que só eu saberia onde encontrar. E as cartas sempre diziam de sentimentos, de livros, de pessoas, de nós. As cartas que eu nunca respondi, porque, eu tinha receio de para onde estávamos caminhando. E depois de tanto tempo sendo escape de outras pessoas, a gente passa a desenvolver mecanismos de defasa que dificultam a relação com os outros e consigo mesmo.

E não sei o que ele pensou quando não respondi as cartas. Porque tudo passou acontecer tão rápido. Foi quando o peso da vida desceu sobre mim e eu fiz o que sempre faço de melhor: vou embora.

E eu vim embora daquela cidade podre, pobre, que apesar de tudo só era bonita quando estava enlaçada pelas chuvas de inverno. Porque a gente podia sentir uma nostalgia imensa ao trafegar por ruas escuras ou pelo o açude do centro da cidade. Contudo, eu vim embora e deixei todas as coisas para trás. E falo de coisas materiais, como roupas, sapatos, livros, discos; e também pessoas, algumas boas, algumas ruins, algumas essenciais.

Lembro que antes do último dia, em um fim de tarde de um sábado, fumando um cigarro no meio da pausa do trabalho sentir um medo enorme de não conseguir sair de dentro daquilo que eu já nem sabia explicar o que estava se tornando. E tive medo de ficar preso para sempre naquela cidade.

Eu não falei com ninguém, não contei para ninguém. Eu, simplesmente, deixei para trás essa parte daquilo que chamo de vida. E deixando para trás também acabei por esquecer no meio do caos do Forasteiro que nunca havia me deixado. E quando me dei conta, dentro de um ônibus velho rumando a outra cidade, entendi: fui tão egoísta ao ponto de não dizer adeus para ele.

No entanto, quando mais distante ficamos, e falo de questões geográficas, mais ou menos uns 200km de distância, O Forasteiro veio se tornando presente na minha vida. Sobretudo nas dilacerações que aquela cidade deixou em mim. Sinto que nunca vou conseguir nomear ou definir O Forasteiro. Sinto que o que estamos construindo é como se poda um jardim. E em uma tentativa, costumo falar que o que tenho com ele seja essencialmente um afeto de outra natureza.

Ele sempre me vem todos os dias por palavras, por voz, por músicas, por filmes, por livros. O Forasteiro anda a carregar minha fatídica existência. E ele me leva não em suas costas, mas ao seu lado, ensinando-se a como voltar a caminhar, porque, depois que a gente se deixa ver por completo pelo outro se tem duas alternativas: 1. Ou deixamos o outro ir embora por não conseguir suportar toda nossa carga de existir; 2. Ou pedimos socorro e permitimos que alguém suspenda as cordas do poço para que possamos tomar um pouco de ar antes de voltar a afundar e tentar achar outra saída que não seja a óbvia, ou seja, enfrentando todos os medos e pânicos e ataques e crises. Porque viver é uma eterna crise.

Foi desse jeito que O Forasteiro veio se misturando dentro de mim, a mim, comigo, meu. E dito dessa forma soa como algo possessivo, mas, não é. Porque entre nós existe a liberdade de existir em nossas particularidades. Embora, seja ele, e, apenas ele, que me construiu novas pernas para andar no mundo, que me deu outras formas de voltar a se encantar com a vida, que posso ligar as três da madrugada em desespero suplicando por me ajudar a amenizar o peso de se uma pessoa doente. Doente do corpo, da alma, do fato de existir.

Nas noites em que o busco vem junto uma calmaria arrastada que funciona como uma espécie de entorpecente, pelo qual, as dores vão diminuindo. No entanto, em outras noites ele me mostra a verdade, ou me norteia em direção as verdades que posso criar para viver. Como se fosse uma colcha de retalhos, ele vem me costurando, algumas vezes com tecidos gastos, outras com tecidos novos. Porém, os panos que ele escolhe para me ajudar a existir são brancos; e, assim, posso colorir os dias com as tintas de variadas cores. E cada cor vem representando um dia, um sentimento, uma ausência, uma saudade.

Saudade é sempre o amor que fica. Mas, quando o Forasteiro me visita, sobretudo, nos dias escuros de um agosto fodido – porque o processo de se ir reconstruindo no mundo é contínuo e difícil – gosto de não dizer que seja apenas saudade ou amor. Pois, ele me mostrou uma verdade: não somos feitos para o mundo. E precisamos sempre se metamorfosear para ir existindo.

Dessa forma, despido de qualquer objeto, de qualquer indumentária, de qualquer tipo de vestes, até mesmo da limitação orgânica do corpo, em noites de lua nova, escuto seu chamado, seguro sua mão e vou me atirando no que desconheço, pois, ele também me ensinou que andar no mundo é sempre sem direção por mais que se tenham placas sinalizando um lugar.

Nossa ida é sempre para o desconhecido, despidos de nossas limitações humanas, entrando em um processo de ir para dentro de si e depois se expelir para fora como se a natureza estivesse nos parindo. Sua voz, posso ouvi-la agora, é doce, é eternal viagem… A noite…

A noite acaba de descer, a lua está renascendo o Forasteiro está se aproximando. Então, mais uma vez ele me estende a mão e vou ao seu encontro…

Jailson Anderson
Enviado por Jailson Anderson em 28/04/2019
Código do texto: T6634094
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