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Fernandes havia passado um fim de semana maravilhoso com sua família e os momentos íntimos com Weruska tinham sido inesquecíveis fazendo amor como antigamente. E, apesar de tudo estar aparentemente no lugar que deveria estar, Fernandes tinha que viver a dura realidade de sua vida profissional a cada dia e estava agora revendo as anotações de um novo caso de assassinato - um cuidado que sempre tomava em todos os casos que assumia.  Tinha convicção que o acusado era inocente, mas ainda não sabia bem como iria provar isto, uma vez que todas as provas e testemunhas apontavam seu cliente como o mais provável culpado.
 
Além disto, ele estava vivendo um conflito interno, pois, ainda que aliviado pelo fim de seu romance com Marylin, ele queria estar com ela pelo menos mais uma vez, para despedir-se como se devia. Quando estavam juntos, ele se sentia bem fisicamente, mas quando voltava para sua casa achava-se um grande hipócrita. Ele amava a sua esposa, amava os filhos e, embora ele se tivesse permitido um afastamento deles nos últimos três anos, não conseguia imaginar a vida sem os três maiores bens, seus maiores tesouros.
 
Sem conseguir se concentrar no caso em andamento já que sua mente estava distraída e confusa, ele colocou toda a papelada de lado. Precisava sair... tomar um ar puro e fugir daquele ambiente fechado. Levantando da cadeira, ele pegou o blazer e já ia vesti-lo quando notou a bela foto de sua família sobre a mesa.
 
Ainda faltando vestir uma manga do blazer, ele pegou o quadro. Olhou bem para a esposa abraçada aos filhos e o belo sorriso que ela esboçava provocou-lhe um frio que percorreu toda a sua espinha, mas não era um arrepio comum - ele ficou incomodado com aquilo.
 
Assim, sem que percebesse como acontecera, o porta-retratos caiu de sua mão e o vidro quebrou-se em quatro partes. Ainda mais assustado, ele terminou de vestir o paletó e se abaixou para pegar o quadro. Ele recolheu os cacos maiores e, a seguir, os depositou na lixeira. Depois de alguns segundos, ele recolocou a fotografia sobre a mesa novamente. Chateado com tudo aquilo, ele saiu depressa porta afora mais do que nunca precisando respirar ar fresco.
 
Aquela segunda-feira estava chuvosa demais e assim fora em todo decorrer da manhã.
 
Na mansão dos Godoy, Weruska almoçava sozinha tendo como acompanhante apenas Junior sentado em sua cadeira especial, recebendo na boca as generosas colheradas de papa que a babá lhe oferecia. Weruska não havia comido quase nada ainda, pois se sentia angustiada, algo impreciso lhe afligindo a alma e não sabia por quê. Sempre que se sentia assim, ela gostava de ir para o piano e tocar músicas líricas e os réquiens de Mozart. Os domésticos achavam aquelas músicas muito esquisitas e tristes, mas já estavam acostumados. Ela tocava um daqueles que gostava muito quando a governanta entrou e a interrompeu:
 
- Com licença Sr. Weruska, chegou uma correspondência para a senhora.
 
Ela parou de tocar e pegou o envelope da mão da governanta. Não tinha remetente e apenas estava endereçado a ela. Curiosa, ela o abriu e dentro havia um pedaço de papel e a foto dum homem beijando uma mulher loira. Ela olhou atentamente para a foto e, num primeiro momento, pensou que seus olhos a enganavam. Ela deixou a foto cair sobre o piano para, em seguida, voltar a olhá-la. Podia-se ver nitidamente que o homem era Fernandes, mas quem ele beijava não dava para ver com mais clareza. Com as mãos trêmulas, ela desdobrou o bilhete e leu a única frase escrita ali:
 
“Abra o olho, mulher tola, você está sendo traída!”
 
Ela amassou o papel com raiva e o jogou no chão e a foto comprometedora ela colocou no bolso do casaco que usava. Automaticamente foi para seu quarto, passou pelo closet, entrou no box do banheiro e se sentou encolhida no chão começando a chorar copiosamente tendo a cabeça apoiada por sobre os joelhos e as mãos sobre a cabeça. Ela ficou ali muito tempo a soluçar sozinha, mil coisas passando por sua cabeça e a imagem odiosa da foto de Fernandes beijando outra mulher aparecia em sua mente repetidamente. Quando não restavam mais lágrimas para chorar e com peito doendo de tanto soluçar, ela se levantou de onde estava, lavou o rosto, retocou a maquiagem e desceu.
 
Como qualquer mulher ferida mortalmente, ela precisava fazer alguma coisa para esquecer aquela imagem horrível; então, se esquecendo do conselho de Fernandes ao sair de manhã para o escritório recomendando que não fosse à obra com aquela chuva, ela foi para a garagem, foi para trás do volante da Blazer e seguiu para obra.
 
O sonho de Weruska era ter uma clínica de pediatria, mas não uma clínica comum apenas para o público infantil, não, ela queria poder dar assistência total desde a gestação até a adolescência para as mulheres e para as suas famílias - e este ideal estava prestes a se realizar, uma vez que a obra estava na sua reta final.
 
Ela verificou toda a obra nos mínimos detalhes tentando apagar da mente a notícia fatídica que recebera naquela tarde e já passava das 17h quando ela decidiu voltar para casa. Pegou a bolsa com essa intenção, contudo, ao passar pela recepção, viu que ainda havia algumas coisas a serem feitas assim como a textura da fechada e as luminárias não colocadas e, sabendo que os móveis já começariam chegar na manhã da próxima quarta-feira, ela dirigiu-se aflita ao segundo piso para falar com o arquiteto encarregado da obra, logo o advertindo:
 
- Senhor Hélio – disse ela – peça ao pintor e ao eletricista para terminarem os últimos detalhes da recepção amanhã sem falta, pois na quarta-feira cedinho os móveis chegarão e tudo precisará estar pronto para que os montadores possam fazer bem o trabalho deles.
 
- Não se preocupe doutora, amanhã os rapazes deixarão tudo pronto.
 
- Veja lá, Sr. Hélio!
 
- Pode ficar sossegada, Dra. Weruska, será a primeira coisa que nós faremos amanhã cedinho, pode confiar em mim.
 
Ela concordou e saindo apressada da obra teve que correr até a Blazer para não ficar com a roupa encharcada. Em consequência da chuva torrencial, o trânsito estava lento em várias regiões da Grande São Paulo como sempre acontece já que não se tinha mesmo para onde fugir e naquele acelera, freia, acelera e freia, Weruska parou num semáforo vermelho.
 
Ansiosa para obter notícias de casa, ela pegou o celular na bolsa e discou o número da sua residência e, enquanto o telefone chamava, quando o farol abriu novamente, ela automaticamente acelerou sem perceber uma enorme carreta que também acelerara bastante querendo passar na luz já amarela. O veículo atingiu fortemente a frente da perua Blazer, fazendo o carro dela rabear e depois ter a traseira atingida pela carroceria da carreta, o que a fez capotar três vezes antes de tocar de novo no chão. O acidente, fez com que, mas três carros colidissem atrás dela, provocando um grande engavetamento.
 
Weruska não chegou a ver o que lhe atingira daquela maneira violenta e pendurada de cabeça para baixo, ela apenas tentava se situar melhor. Olhando para o lado, percebeu que lhe escorria um líquido espesso pelo braço direito. Tentou movê-lo, mas não conseguiu, apenas sentiu uma grande ardência e a sua vista escureceu até que, por fim, ela desmaiasse.
 
O caos foi geral, não havia possibilidade de passagem para quem seguia em direção à Marginal e, em volta, os carros começaram a manobrar retornando na contramão para alcançar as vias alternativas. As primeiras autoridades a chegarem ao local do acidente foram uma viatura do CET (Companhia de Engenharia de Tráfico) e duas viaturas do Resgate.
 
 
Em seu escritório, longe dali, Fernandes organizava uns documentos na pasta para encerrar o expediente. Quando já colocava o notebook na valise, o telefone tocou.  Deixando a mala sobre a mesa, ele atendeu a ligação.
 
- Pronto, Mayara, mas só atenderei se for muito importante, pois já estou de saída.
 
- Dr. Fernandes, é a polícia ao telefone.
 
- Polícia?
 
- Sim e querem falar com o senhor.
 
- Do que se trata?
 
- Não me disseram, posso transferir a ligação?
 
- Claro!
 
- Capitão, só um momento que vou transferir para o doutor.
 
- Alo! Fernandes falando.
 
- Boa noite, Dr. Fernandes. Capitão Ladislau falando.  O senhor conhece ou é parente da senhora Weruska Pinheiros?
 
- Sim, ela é a minha esposa. Aconteceu alguma coisa com ela?
 
- Infelizmente, sim, pois ela se envolveu em um grave acidente e foi levada para o Pronto-Socorro do Hospital Tatuapé.
 
- Mas ela está bem?
 
- Não posso informá-lo sobre isso, doutor; o melhor é que o senhor vá ao hospital pois irá obter essas informações diretamente com o médico que a está atendendo agora.
 
- Obrigado por me avisar, Capitão, já estou indo para o hospital.
 
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Fernandes, vencendo a custo um enorme trânsito, chegou ao hospital desesperado e com os nervos à flor da pele. Tudo o que ele queria era obter informações sobre o real estado de Weruska e, disposto a obtê-las, ele se encaminhou depressa para a recepção.
 
- Com licença, moça – disse Fernandes à recepcionista – deu entrada uma vítima de acidente de trânsito agora pouco e eu gostaria de obter informações sobre o estado de saúde dela.
 
- Nome, por favor.
 
- Fernandes Godoy.
 
- Eu preciso do nome da vítima para checar no meu sistema.
 
- Weruska com W e K, Pinheiro de Godoy.
 
- Um momento.
 
A atendente correu os dedos sobre o teclado do computador, digitando o nome Weruska, depois deu um click e apareceram dois nomes na tela.
 
- O senhor disse Weruska do que mesmo?
 
- Weruska Pinheiros de Godoy, disse Fernandes, já irritado com aquela calma da moça.
 
- Sim, ela deu entrada no P.S, mas o senhor não vai poder vê-la agora já que   ela está na sala de cirurgia. Aguarde na sala de espera e tão logo os médicos terminem a cirurgia, um deles virá falar com o senhor.
 
Agoniado, Fernandes não poderia fazer outra coisa a não ser esperar. Sentado na sala de espera, ele viu as horas passarem e nada de notícias até que cochilou, por fim. Subitamente, ele percebeu que alguém o tocava no ombro e despertou, mas não conseguiu abrir os olhos de imediato.
 
- Sr. Fernandes! Sr. Fernandes! – dizia a jovem que o havia atendido, agora com uma voz melíflua.
 
Fernandes, ao abrir os olhos, se deparou com a recepcionista sentada ao seu lado.
 
- Sr. Fernandes, a cirurgia acabou e o Dr. Nicolas quer falar com o senhor. Venha comigo, vou acompanhá-lo até ele.
 
Ao chegar à sala do médico, a porta já estava aberta. O cirurgião estava sentado à sua mesa com uma aparência de alguém cansando e decepcionado.
 
- Dr. Nicolas – disse a recepcionista ao entrar na sala – este é o Sr. Fernandes Godoy, o esposo da vítima de trânsito.
 
- Sim! Andressa deixe-nos a sós, feche a porta ao sair, por favor.
 
O médico mexia em uns papéis sobre a mesa como alguém que procura algo importante, mas, na verdade, apenas estava ganhando tempo, pois ainda não sabia como dizer a Fernandes que a esposa falecera na mesa de cirurgia. Como não havia nada que atenuasse tal notícia, ele pousou as mãos sobre a mesa com os dedos cruzados e disse:
 
- Sr. Fernandes. Sinto muito! Nós fizemos tudo que podíamos ter feito, mas sua esposa foi a óbito, uma vez que ela não resistiu aos graves ferimentos.
 
Fernandes pareceu afundar na cadeira e sentiu que o mundo desabava sobre si.
 
- Morta? Weruska morta? Meu Deus! Ela sofreu muito, doutor? – foi a única pergunta que ele conseguiu balbuciar.
 
- Ela foi forte, lutou pela vida até o último suspiro, mas estava muito ferida: teve fraturas múltiplas no crânio, nos braços e pernas e uma das costelas lhe perfurou o pulmão, fato esse que dificultou muito o trabalho da equipe médica.
 
- Posso vê-la, doutor?
 
Nicolas sabia que era um direito do enlutado só que, no estado em que ela se encontrava naquele exato momento, não era recomendável e poderia ser muito chocante para o marido.
 
- A equipe ainda está fechando as incisões, mas dentro de umas duas horas, creio que o senhor poderá vê-la e tomar as medidas de praxe.
 
- Está bem, eu vou fazer algumas ligações necessárias enquanto aguardo.
 
Fernandes sai aturdido da sala do médico como se lhe tivessem tirado o chão de sob os pés.
 
Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 26/04/2019
Reeditado em 06/05/2019
Código do texto: T6632680
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