A janela semi aberta e a Princesinha encantada do Reino do Sol
A luz que se estendia da janela do meu quarto sempre era curta demais. A janela sempre, absolutamente sempre ficava meio aberta, como se eu tivesse medo de algo ou como se eu gostasse da maneira em que as luzes entravam no meu quarto. E eu gostava era disso mesmo. Lembro o dia em que abri por completa a janela, pairou no ar poeira e cheiro de poeira, o que me deu muito trabalho em ter que limpar depois; varrer o chão do quarto, passar o pano… etc.
De tardinha quando o sol baixava, o laranja que já é uma cor meio que misturada se prendia na parede branca, uma sublimação de sensações arrasava minha consciência. Eu me sufocava, e eu não sei o motivo de tanta adoração ou o porquê de tantos espasmos em ver, fechando os olhos, comprimindo-os tão delicadamente para que a luz fosse desaparecendo quando eu queria ver, ver claramente se ela mudava de forma, se formava outras formas que não fossem cumpridas e curtas.
No final, eu sempre entendia essa motivação como uma tentativa de talvez, esquecer que estava só no meu quarto. Não acredito que era sintomas de uma solidão ou aforismas subjetivos do meu ego, querendo, talvez, dizer: “Devagarzinho você vai chegar a conclusão de que aquilo que viu, naquele dia, seu bobão!, era uma fenda de luz clarinha apenas… nadinha de nada, não existe princesinhas pequenas amarelas”.
De repente éramos o sol inteirinho mesmo! Nada de sentimentos pequenos cheinhos de explicações. Mesmo que pudéssemos ver as estrelas rodando em frente aos nossos olhos, queremos de alguma forma tentar explicar o que o nosso corpo sentia no arrepio da pelagem. Era uma grandíssima bobagem interagir com a minha linda princesinha, porque ela estava ao alcance de suas próprias experiências momentâneas, alucinando minha visão cumprimida, meus anseios de pequeno menino sonhando, olhando talvez por uma janela que nem existia expressamente, fixada na parede de tijolos. Eu estava tão sonolento aquela tarde, não queria comer e não tive vontade de tomar água. Pensei, em um breve momento, que a água saciaria minha fantasia e tive medo, admito! Tive um medo impensável que não conseguiria contar pra nenhuma pessoa. E eu ainda tenho medo, desde o dia, tenho medo de esperar e sentir que meu corpo virou estátua de pedra, porque não vou ser nomeado sortudo de vê-la amarelinha, linda, linda.
Meu quarto agora era um recipiente em busca de aprisionar uma fadinha pequena. Tão pequena e tão linda que contorce as coisinhas mais lindas que existem em ciúmes, em invejinhas de quererem ser aquela fadinha. E eu, pobre bobinho apaixonado, nem sei mesmo se era fada. Aquele era o dia que eu vi voando, vindo com a luz cumprida uma pequena coisinha que girava ao meu alcance, cheinha de um brilho inenarrável. Eu estava lendo meu livro azul, cheio de palavras difíceis, cheio de assuntos também difíceis e tristes, e fiquei muito triste com os assuntos tristes que existem de verdade. A tristeza nunca é tão dolorosa assim, porque às vezes sentimos como se pudéssemos apreciar uma sensação de choro, uma sensação de choro que se cura chorando e as vezes chorar é tão doce e gostoso quanto um beijo apaixonado… é bom chorar, soluçar, pedir que alguém invisível nos ajude. Depois, você completa o seu estranhamento e o seu medo com o gostoso cansaço, e dorme.
Mas eu nem dormi aquela hora, não dormi mesmo em nenhuma hora naquele dia, porque ela estava comigo quando eu chorei e me deu sua mãozinha que tinha um cheiro tão bom que me acalmei. Perguntei se ela era uma fadinha, ela sorriu e disse que se eu quisesse ela podia ser, porque havia gostado de mim. Sorri também, me acalmei e a disse que fosse embora. Ela olhou meus olhos, beijou-os apertando seus lábios numa prensa dos meus olhos fechados e seu cheiro gostoso e disse: “Você não quer que eu vá, homenzinho, você quer que eu seja sua sorte.” Eu queria ter uma sorte, e a minha sorte estava me dando tanto carinho que me aprisionei nos seus braços pequenos, que mal me cabia todo, mas cabia. Eu perguntei sorrindo desta vez, “Você veio do sol?”
Nenhuma palavra foi dita, fiquei quieto e respirei contente por não saber de nada… As vezes sabemos demais aquilo que não queremos, como se fosse interessante saber que o dia tem vinte e quatro horas, mas que não tem balanço e chuva de algodão docinho quando uma pessoa chora com medo de trovões. Me senti pequeno, como se eu fosse uma formiguinha correndo em cima de um docinho açucarado, cheiinho de paz e de pulsação ao mesmo tempo. Porque eu havia conseguido um docinho só pra mim e eu adorava muito docinhos açucarados.
A princesinha era muito cheirosa, eu nunca soube bem se era algum tipo de perfume que era produzido pelo lugar de onde veio, ou se eram seus cabelinhos ondulados que se mexiam muito quando um ventinho batia forte. Talvez fosse perfume dela própria, ou uma sensação tão linda de tê-la perto que meus sentidos, todos, ganharam muitíssima expressão. Meu quarto escuro era todo amarelo agora, porque ela abriu as cortinas. E sem me falar nada, me olhando apenas, cheirou meus olhinhos fechados novamente e depois disse “Abre!”
E eu abri, olhei para todos os lugares e tinha percebido que meu corpo não estava em atrito com o chão, meus braços eram longos demais e eu não conseguia acariciar meu violão tão bonitinho. Mas depois do beijinho da princesinha, os sons eram iluminados e me saciavam como se fossem, expressamente, membros de uma comissão que decidirá a existência eterna da felicidade para todo mundo. A princesinha me abraçou e me beijou, sentiu também meu perfume e me encheu de uma paz profunda demais para que eu possa contar meramente por contar.
As cortinas, a luz cumprida e alaranjada, o quarto, os sons e a poeira das cortinas que se abriram se foram e a princesinha também. Longe de tudo que era ilusão ficou as lembranças de um sonho cheiroso, que senti e sonhei aquele dia. Fiquei tão triste, princesinha. Não podia ficar mais alguns dias? Eu acho que não. Talvez ela não tenha tido vontade de me deixar sentindo falta do cheirinho. Foi o Reino encantado do sol… precisava da sua princesinha pra dar cor aos dias de todo mundo, inclusive o meu.
Pensando nas possibilidades da existência duma magia que nos fizesse interagir novamente, abri a janela inúmeras vezes e depois as fechava, como se fosse possível ali, naquela movimentação incessante haver vestígios duma luz que propiciava o encontro dos nossos laços, que me levasse a estranha consequência de vê-la novamente.
A minha expectativa era uma caracterização perfeita da impossibilidade de estar em inteligibilidade com a felicidade. Minha princesinha, tão linda! Tão esperta àquela cor fundida: mesclado uma a outra, luz clara que minhas retinas amavam interagir o brilho, dando vida a função mais útil e linda da minha visão: o encontro do amarelo e do vermelho clarinho… a luz amarelinha, de fenda curtinha se espalhando na parede branca do meu quarto outrora escuro.
Me dei conta que precisava pôr os olhos ao encontro da porta antes que fosse tarde, quem sabe ali, diferentemente da janela, alguém batesse, alguém chegasse, alguém sequer, na iminência ousada e repentina da ação, pudesse abrir. Mas minha princesinha não chegaria pela porta. A porta é específica demais para que as coisas encantadas entrem por ela. As portas sempre têm um teor formal. Afinal, tem-se que bater…, não se vislumbra a surpresa da chegada. A chegada é a forma exata que te encontram ou te roubam, te chamam e nunca, nunca te surpreendem na chegada. A chegada é apenas o termo que separa o brilho essencial do motivo do choro, do sorriso ou do espanto. O que importa neste termo, nesta ação é a forma, o jeito, o beijo, o toque, o sentido em que se chega e como, como se chega. O importante não é virar para o seu grande amor cinquenta anos depois de o ter beijado e dizer: “Aqui estamos.”
O ideal é fundir junto a isto a compreensão de que, tecendo aqueles cinquenta anos, houve melhor aproveitamento no tempo presente, seguido de beijos e anseios. A vida se movimenta com o auxilio do tempo, portanto o tempo é medida que mede o agora e nunca o ontem, ou o amanhã. O como se percebe o agora é que tece o beijo que o tempo não mede no ontem, no hoje enquanto movimento e no amanhã: inexistente.
Quanto tempo faz que não vens, princesa? Já não aguento mais o olhar escuro daquele homem jovem enrugado. Aquele áspero sorriso metricamente imperfeito, fugindo do trauma de sentir-se feio, porque, de fato é. Por que não vens, sorrindo e jorrando mel dos teus lábios pequenos, dos teus seios pequenos, dos teus cabelos curtos, dos teus dentes brancos; onde me reviro a torto, me reflito soltinho, soltinho nos teus espaços, nas atividades indiscutivelmente profundas daquilo que és.
O homem me olha! Me olha sorridente, como se no sorriso dele, profundamente indecente, pudesse se ter uma nova noção de beleza. Talvez um cadinho de amor abstrato pela boca e o lábio superior torto… talvez o nariz? Minha princesinha disse que o nariz que me compõe é empinado, sutilmente empinado, sendo ele bonito e tão sozinho do resto. É como diz João Cabral de Melo e Neto, “Um galo só não tece uma manhã.”
Sinto como se em todas as manhãs você viesse, tocasse os meus cachinhos pouco enrolados e se emaranha nos meus braços. Sinto levemente aquele toque doce do perfumezinho suave dos seus pulsos. Seus cabelos ondulados passam arrastando pelo meu corpo suavemente, como se sorrindo dissessem: “Somos mecanismos de afetividade, e estamos prontos para que sinta o cheirinho suave da sua princesinha. Ela é o composto de vários sonhos, inclusive este, homenzinho que dorme tão silencioso…”
Minhas mãos frias da manhã gelada tocam o acolchoado travesseiro de cor cinza, sinto o cheiro de café que a vizinha faz, cafezinho gostoso igual uma festinha de luar da noite, igual uma festinha com docinhos açucarados e música boa. Por exatamente meio minuto me deixo desprendido de qualquer pensamento e permaneço enrolado, apenas o cheirinho do café gostoso me segura e me vejo duplamente encantado. Não sei o porquê. Mas a duplicidade me invade, apenas sinto.
O cheirinho que entrou veio pela janela, a janela ainda aberta. Que movimento devo fazer? Fechá-la parece uma arbitrariedade infundada. Por onde meu Deus? Por onde haveria de entrar minha princesinha se não fosse pela janela. Os meus doce sonhos agora eram uma experiência mal interpretada de possibilidades invisíveis.
Minha princesinha não iria voltar. Era uma certeza que me punha ao encontro de Chopin, copiosamente apático às melodias que se instalavam em todo e cada centímetro daquele lugar escuro novamente. Mate-o! Quebre-o! Atire contra ele um sapato velho, uma tesoura de cortar tecidos! Joguei-o no lixo e o ponha no passado. Faça tudo o que for possível para que suma e para que se desprenda dessa peça ilustrativa do teu corpo e do teu ser. Não permita que este homem fique a te observar… o espelho tem que se partir. Temo ser o espelho causador da dor do físico. Criador do aspecto simétrico, coautor externo de uma das suas mais profundas doenças internas: a vaidade completa. Eu me conto a mim mesmo em linhas de uma folha em branco, em todos os aspectos da minha inteligibilidade com o Sol, não me sou mais aquilo que fui para a princesa deste reino.Se um galo só não tece uma manhã, como eu posso fazê-la voltar e me citar suas poesias? Não sou um galo que canta à multidões, mas sou um homem sozinho que não sabe tecer uma manhã, que dirá a luz inteira de uma perfeita forma solar…
“Homenzinho? Por que que você chora? Não te recordas do nosso pequeno beijinho? Foi ali que te confirmei um retorno e falei, ‘vai ser uma ótima manhã de domingo.’ Não me tires do campo da felicidade… porque eu sempre volto mesmo antes de partir.”
Ela cuidou mais uma vez de mim, sentada ao pé da cama, dizia coisas tão bonitas e eu podia jurar que esquecera a dor de ontem, a dor de anteontem, e a dor do mês passado. As dores dos meses passados. Ela, olhando diretamente nos meus olhos me falou novamente, mas desta vez eu podia jurar que iria ser diferente aquele encontro.
A princesinha que veio a mim pela luz do sol, entrou pela minha janela semi aberta e me injetou carinho profundo, estava ali mais uma vez e iria me levar. Me levar pra onde o vento não sabe se é o fim, ou se é o início de uma outra volta.
O espanto de saber que eu iria conhecer seu reino era tão grande e assustador que minha subconsciência gritava, inútil gritava, implorando que o meu corpo não se levantasse, que meus olhos abrissem e que aquela loucura era sintomas de uma solidão estritamente profunda e fixada. “NÃO SE DEIXE DORMIR! ACORDE E ENCARE A REALIDADE!”
Inútil como lágrimas, ela bradava louca, medrosa… E eu? eu? soltava-me como um passarinho na expectativa do voo, livremente me deixava envolver pela luz que me cobria numa intensidade tão forte, que em alguns segundos sentia a chama consumindo meu corpo inteiro. Mera felicidade atônita dos dias apáticos. Minha princesinha iria me livrar daquilo e me mostrar onde que se origina a vida e o calor de viver. Deixei-me ir, me soltei, me libertei como nunca antes. Senti o abafado e estreito momento em que aquilo aberto no ar me sugava, era uma experiência de abdução. Só que entre eu e a natureza do mundo presente, só existia a certeza da beleza e do prazer de ir com ela, mesmo não sabendo o que me esperava. Olhando-me, deu-me um beijo molhado no rosto e falou sorrindo: Você vai ser feliz, meu homenzinho.