Parte II


14
 
 

3 anos depois.

Como era seu costume, Fernandes levantou às cinco da manhã e após fazer sua higiene matinal, vestiu a sunga de natação, o roupão felpudo e, com uma toalha nas mãos, desceu correndo as escadas, em direção ao jardim.
 
Caminhando até a piscina, sentiu o vento gélido a arrepiar - lhe a pele e, apesar de a lua ainda brilhar no firmamento, o ar frio daquela manhã de outono mais as nuvens espaçadas no céu indicavam que o dia poderia ser chuvoso.
 
Estando à beira da piscina, Fernandes colocou o roupão e a toalha sobre a espreguiçadeira, movimentou os braços para aquecer-se, fez algumas flexões e depois mergulhou nadando em movimentos circulares. Bem aquecido, fez suas rotineiras dez chegadas contínuas e o dia já havia amanhecido completamente quando ele deu por terminado os exercícios matinais.
 
Às oito horas, Fernandes estava à mesa tomando o café da manhã. Enquanto comia a metade dum mamão papaia, Junior entrou na sala arrastando atrás de si o boneco Tigrão. Ao vê-lo, Fernandes devolveu o mamão ao prato e, abrindo os braços, disse:
 
- Bom dia, filho! Cadê a sua mamãe? – disse, trazendo o filho ao colo.
 
- Ela está dormindo, - disse Junior esfregando o olho direito com as costas de sua pequenina mão.
 
- Você está com fome? Quer um pedaço do mamão do papai?
 
- Não! Eu quero todinho.
 
Fernandes disse para a babá que já estava ao lado da mesa.
 
- Leila, providencie o todinho para ele, por favor.
 
- Sim, doutor! Venha comigo, Junior. Vou preparar um delicioso leite com Toddy para você – disse, já estendendo as mãos para retirar a criança do colo de Fernandes.
 
O criminalista, tendo terminado sua refeição, foi para a biblioteca rever suas anotações sobre o caso Gaspar antes de ir para o tribunal. O julgamento de Rosângela Gaspar seria às dez horas e, embora ele estivesse convicto da absolvição dela, queria rever as anotações que fizera de modo que as suas considerações finais fossem perfeitas.
 
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O circo estava armado e o tribunal estava lotado de curiosos. Do lado de fora, quase já na entrada, havia repórteres de vários jornais bem como de emissoras de Rádio e Televisão, todos ansiosos para retransmitir o desfecho do caso que, a princípio, fora considerado uma briga doméstica que culminara na morte acidental de um dos cônjuges, - o empresário Júlio Gaspar – contudo, acabara por tornar-se um provável caso de assassinato premeditado.
 
Fernandes e sua cliente Rosângela Gaspar estavam acomodados em uma mesa quase ao centro do salão. Instalada bem ao lado esquerdo, poucos metros adiante, ficava a mesa da acusação. Apesar da grande repercussão que o caso havia alcançado na mídia e conhecedor de como o juiz era severo - Fernandes não estava abalado, ao contrário, como bom advogado de defesa que era, sentia-se seguro quanto à absolvição da cliente. 
 
Dois minutos antes das dez horas, horário do início aprazado, o juiz Cesar Calinauscas entrou no salão que imediatamente ficou silencioso para o início do julgamento. Desde este momento inicial, Fernandes, sem tréguas, havia digladiado, em prol da liberdade de Rosângela, com seu oponente, o advogado da acusação Dr. José Ramos.
 
Todas as testemunhas arroladas no processo foram interrogadas exaustivamente por ambas as partes e, no entender de Fernandes, elas foram irrelevantes ao caso, uma vez que nada acrescentaram que pudesse agravar a situação de Rosângela. Depois de quatro horas de interrogatório, o tribunal entrara num recesso de duas horas para o almoço.
 
Os jurados foram convidados a se reunirem para que fizessem suas ponderações finas. Uma vez chamados pelo juiz, os dois advogados, de acusação e de defesa, se reuniram no gabinete dele. Depois de breve advertência por comportamento depreciativo de ambas as partes, os advogados deixaram o recinto. Às dezesseis horas, todos estavam ansiosos para que o juiz retornasse e desse o veredicto – e ele voltou ao tribunal na hora exata.
 
- Todos de pé – bradara o oficial meirinho ao perceber que o juiz chegara.
 
Assim que se acomodou, o juiz informou:
 
- Os senhores jurados queiram desconsiderar os resultados toxicológicos do falecido e também a radiografia da costela fraturada de Júlio Gaspar. Tais provas são irrelevantes para a resolução do caso em questão.
 
Olhando para os presentes por sobre as lentes dos óculos, ele prosseguiu:
 
- Os senhores advogados irão apresentar mais alguma testemunha?
 
Ambos responderam:
 
- Não, Excelência!
 
- Pois bem, os senhores podem fazer suas ponderações finais.
 
O advogado de acusação foi a primeiro a falar.
 
- Prezados senhores do júri, - começou o criminalista, Dr. José Ramos – em 16 de janeiro de 1993, há exatos três anos e dois meses, a Sra. Rosângela Vespotulo Gaspar discutiu com seu marido durante o jantar, o falecido empresário Sr. Júlio Gaspar. No calor da discussão, ela arremessou-lhe um refratário de comida na cabeça, o que causou nele um ferimento frontal na cabeça levando-o depois a óbito.
 
Quando ele disse isto Fernandes contraiu as mãos sobre a mesa. Sua vontade era mandar seu adversário calar a boca ou dar-lhe um murro certeiro, mas nada podia fazer a não ser esperar a sua vez de falar.
 
O advogado continuou:
 
E na ocasião, ela foi tão fria que sequer prestou socorro ao marido ferido. Conforme consta nos autos, ela disse aos policiais que atenderam a ocorrência: “eu estava muito irada com ele e arremessei-lhe o refratário. Ao perceber que ele estava sangrando, eu entrei em pânico e não tive nenhuma reação de socorrê-lo... ele mesmo foi ao toalete e se lavou”. Caros senhores, esta mulher já estava com seu marido há 12 anos; que ser humano, em sã consciência, se negaria a prestar socorro a seu próximo haja vista haver contribuído para que tal circunstância acontecesse?
 
Num ato perspicaz, o advogado ficou em silêncio esperando que os presentes assimilassem a sua retórica. Ouviu-se um breve burburinho entre os jurados e a plateia. O Dr. Ramos atingira seu objetivo pois fizera o júri ponderar. Ele continuou:
 
Apesar de seu marido ter sofrido um feio corte na cabeça, ela conseguiu ter uma tranquila noite de sono e, ao amanhecer, simplesmente foi para a casa de sua mãe voltando somente ao entardecer. Chegando ao quarto, ela constatou que seu marido estava caído no chão e para quem ela ligou? Para a polícia? Para o resgate ou emergência? Não, ela ligou para o seu advogado, o nobre colega da defesa, Dr. Fernandes aqui presente.  Então, somente sob a orientação dele, foi que ela ligou para a polícia; mas, infelizmente, o seu marido já se encontrava morto doze horas antes.
 
José Ramos seguiu bombardeando os membros do júri com informações que só poderiam agravar a situação da acusada e persuadi-los a condená-la. Ele relembrou a todos que ela se tornara fugitiva quando fora expedido o pedido de sua prisão preventiva e, por três meses, ela simplesmente evaporara como num passe de mágica. Levando-se em conta que “quem não deve não teme”, se ela fugira é porque se sentia culpada pela morte do marido, disse ele de um modo categórico e conclusivo.
 
- Por tudo isso, eu peço aos senhores – disse ele, demonstrando estar exaurido com tudo aquilo – que não deixem a senhora Rosângela Gaspar sair daqui impune. Lembrem-se que ela causou a morte do seu marido, um homem que teria muito para viver ainda pois tinha apenas 52 anos de idade. Sejam conscientes em seus veredictos e concedam-lhe a pena máxima prevista por lei!
 
Demonstrando serenidade e estar seguro de si, Fernandes se postou em frente ao júri olhando diretamente nos olhos de cada um e, com sua voz potente, ele começou arrazoar:
 
- Caros senhores jurados, não vou bombardeá-los com informações que já estão cansados de saber, mas vou apenas contar-lhes uma breve história.
 
Certa vez, um homem muito humilde e vindo de um país vizinho enamorou-se de uma bela jovem, também de família humilde. O tempo passou, eles se casaram e logo veio o primeiro filho, uma linda menina e, no ano seguinte, chegou o segundo filho do casal.
 
A família montou uma pequena padaria com muito sacrifício, mas, passados cinco anos, eles estavam com cinco unidades em funcionamento e a vida já não estava mais difícil. Havia agora dinheiro suficiente para suprir as suas necessidades, porém o casal já não era feliz. O marido chegava sempre tarde em casa e as discussões entre eles eram constantes. Ele batia na esposa, vez por outra, até que chegou o dia que ela se cansou de apanhar assim e foi embora levando os filhos junto com ela.
 
Fernandes parou de falar e ficou de cabeça baixa como se estivesse constrangido, a seguir respirou profundamente e continuou:
 
Notem todos os presentes, este homem tinha uma bela família, uma linda esposa e dois filhos. Trabalhava de sol a sol para dar o melhor para sua família, mas não dava o principal, o seu carinho e, por fim, ele os perdeu. O tempo passou e ele encontrou uma nova esposa. Não teve filhos com ela, mas também gostava de fazê-la de saco de pancadas. Depois de doze anos de espancamento e agressões verbais, ela decide pedir-lhe a separação. Como o marido reagiu a isto? Brigando novamente, é claro, mas já cansada de ser maltratada ela reagiu e o marido levou a pior.
 
O advogado ficou a olhar para os jurados e para os que estavam presentes no tribunal vendo que alguns pareciam indignados.
 
Creio que não preciso dizer quem são os personagens dessas histórias. Senhores jurados, pergunto agora a todos: e se vocês estivessem na situação da nossa personagem, como teriam reagido? Penso que qualquer um teria se defendido.
 
Nobres jurados, a Sra. Gaspar é a maior vítima nessa história, hostilizada que foi durante doze anos de sua vida e maltratada por alguém que, em vez de oferecer amor, só lhe causava dor. Por três vezes, ela denunciou seu marido por maus tratos, porém as autoridades nada fizeram. O marido sempre se mostrava muito arrependido, o que a levava a perdoá-lo. Até que, na já referida noite, eles brigaram à mesa de jantar e ela, cansada de apanhar e com medo da reação explosiva dele sabendo que ela dera entrada no pedido oficial de divórcio, reagiu jogando-lhe um refratário - o que contribuiu para o falecimento do Sr. Gaspar.
 
Tendo dito isso, Fernandes parou e tomou um pouco de água de um copo em sua mesa.  Voltando a se colocar de frente para os jurados, ele disse:
 
Senhores e Senhoras, diante de todos os fatos expostos neste tribunal, eu solicito que pensem bastante antes de tomarem alguma decisão, pois seria injusto imputar a esta mulher a insígnia de assassina já que ficou cientificamente provado que não matou seu marido, mas apenas causou o ferimento que contribuiu para a morte dele – e, assim sendo, o que me resta é pedir ao júri que declare a acusada inocente!
 
Fernandes voltou para sua mesa visivelmente emocionado e o juiz Cesar Calinauscas olhando para os dados dispostos à sua frente cruzou os dedos das mãos sobre a mesa e disse:
 
- Os jurados já têm um veredicto?
 
- Sim, Meritíssimo – disse o primeiro jurado.
 
O agente meirinho pegou o envelope das mãos do primeiro jurado e o levou até o juiz Cesar Calinauscas que, abrindo o envelope, leu a decisão do júri. Em seguida, ele olhou diretamente para a acusada e disse.
 
- O júri declara a ré inocente. Sessão encerrada.
 
Fernandes, num ato de euforia, abraçou sua cliente e disse:
 
- Enfim acabou... você está livre como prometi.
 
Rosângela não tinha palavras, pois lágrimas rolavam em seu rosto e ela chorou copiosamente no ombro do advogado. Passados alguns segundos, Fernandes a afastou e ofereceu um lenço para que pudesse secar os olhos.  Sorrindo agora, ela disse:
 
- Não sei como agradecer, Dr. Fernandes, já que, devolvendo a minha liberdade, devolveu-me a vida!
 
- Eu fui contratado para defender os seus direitos, até porque este é meu trabalho, então nem precisa agradecer-me – disse ele, devolvendo seus documentos à pasta – e sempre que precisar pode contar comigo.
 
- Claro que sim, doutor.
 
- Eu creio que agora, e depois destes três anos de contato quase diário, você poderá chamar-me apenas de Fernandes, sem tanta formalidade.
 
Ela sorriu diante daquelas palavras amigas.
 
- Pronta para enfrentar a última etapa?
 
- Mas já não acabou? dout... quero dizer, Fernandes.
 
- O julgamento terminou, mas há um exército de repórteres lá fora que não irá nos deixar passar sem alguma declaração.
 
- Temos como escapar deles?
 
- Não!
 
- Enfrentemos as feras, então!
 
Quando ambos apareceram no topo da escadaria, todos os repórteres se precipitaram escada acima.
 
- Doutor Godoy, como se sente diante desta vitória? - perguntou um dos jornalistas.
 
- Não há nada mais satisfatório para um profissional do que o senso de dever comprido, portanto eu me sinto realizado retirando o estigma de assassina dos ombros de minha cliente.
 
- E a senhora, dona Rosângela, o que pretende fazer agora que está livre da acusação?
 
- Eu me sinto feliz, pois, no meu caso, a justiça foi feita e quero agora recomeçar minha vida... voltar a viver.

COD: 1466098720546

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Obs.: A proposta desse texto é postar um capitulo por semana, a depender do enredo e pesquisa a ser feita para a composição do mesmo.
Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 03/04/2019
Reeditado em 08/04/2019
Código do texto: T6614240
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