A cereja do bolo
“Mas, pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a alegria de andar descalça? Como não amar o chão em que se pisa?” Clarice Lispector
Ela é vendedora e enfermeira noturna. Ele é caminhoneiro assalariado. Estão casados há seis meses e raramente se encontram. Hoje é uma dessas noites raras. Ela comprou o peixe e ele comprou o vinho. Ligaram o rádio enquanto preparavam a janta.
Findo o jantar feito a quatro mãos e saboreado à luz de velas na minúscula varanda - onde seus pés se tocavam por baixo da mesa - foram para a sala e cochicharam como se tivessem segredos. Naturalmente se dirigiram ao quarto para viajar um no corpo do outro, viajantes que eram de infindáveis caminhos.
Lá fora o vento noturno anuncia o inverno que se aproxima. Há um clima de chuva no ar. Uma aragem úmida sobe dos campos verdes e paira sobre os telhados do mundo. Entretanto, dentro da casa a mão quente e macia da mulher desliza pelo peito arfante e morno do homem.
Deitada sobre o braço esquerdo dele sentia o ritmado bater do coração. Deu um suspiro de contentamento e fitou-o. Ele baixou os olhos gentis e sorridentes para ela. Passou o polegar nas sobrancelhas e o indicador levemente ao longo do nariz dela. Apertou-lhe as bochechas numa carícia e a trouxe sobre si.
Arfando preguiçosamente ela aninhou-se a ele. Encostou a testa no pescoço do homem e descansou suas pernas entre as dele. Ouvia a própria respiração, entrecortada, e sentia nos cabelinhos do braço a respiração dele. Não queria dormir naquele momento, não enquanto ele estivesse acordado. Não sabia o que ele estava pensando, mas se fosse o mesmo que ela devia ser coisa boa.
Haviam provado a cereja do bolo do amor. Ela estava satisfeita, mas não estava saciada. A fome que sentia dele era imensa e não terminaria em uma noite, talvez nem em mil e uma noites. Por isso, procurava conservar aquele momento e eternizar aquela cena já que o calor que emanava de seus corpos suados foi construído entre eles, devagar e com prazer, enquanto o medo e o frio lá de fora eram produzidos o tempo todo por toda a gente e contra a vontade deles.
O vento silvava nos fios dos postes e sacudia as sibipirunas da calçada. Deitada, ela sentia no corpo o sono dele chegando. Primeiro foi o acelerar da respiração, depois a flacidez dos braços e o afrouxamento das mãos. Olhou para ele e viu as pálpebras abaixadas. O rosto, redondo do sono, trazia um tipo de sorriso bobo. Ela juntou os dedos e fez um coração que cobriu parte da boca e do nariz do homem. Beijou, bem de leve, a ponta do queixo dele e empurrando a coberta com os pés deslizou para fora da cama.
Olhou para trás antes de sair silenciosamente do quarto. Parou no corredor e acendeu a lâmpada. A seguir, abriu a porta do banheiro e tateou procurando a tomada. Acendeu a luz. O espelho grande, indiscreto, devolveu-lhe sua imagem de corpo inteiro. Ela olhou com cautela para si. Viu uma bela mulher que tremia. Os cabelos em desalinho. No entanto não pôde ver - por mais que sentisse - o rufar do coração debaixo da seda fria.
De súbito notou as pernas tremendo involuntariamente. Sentou-se no vaso. Depois juntou coragem e lavou o rosto. Não quis olhar no espelho. Saiu do banheiro sem se enxugar. Tinha a intenção de ir direto para a varanda fumar um cigarro dele. Antes, porém, deu uma olhada no quarto e o viu dormindo todo esparramado ocupando quase toda a cama. Teve um ligeiro pensamento que, naquela ocasião, considerou absurdo: aquela cama, aquele gosto em sua boca - assim como o cigarro sobre o criado-mudo - pareciam pertencer somente a ele.
Encostou-se à parede da casa, ouvindo o barulho do vento na copa das árvores e os primeiros pingos grossos e esparsos da chuva contra o vidro da janela. Teve um estremecimento. Um princípio de soluço veio subindo do umbigo para a barriga, chegando ao peito. No momento mesmo em que ia sair pela boca escutou o homem chamando-a. Era um chamado tão triste quanto o soluço dela.
Sendo assim, fez o que estava acostumada a fazer. Foi até a geladeira pegar um copo d’agua para ele. Aproximou-se na ponta dos pés e, para provar que não estava muito fria, tomou um pequeno gole. Ele sorriu ao pegar o copo junto com os dedos dela. Ela sorriu também e, discretamente, engoliu. Na janela batia descontroladamente os pingos da primeira chuva do inverno.