Em cada canto um amor

Em cada canto um amor

- Mas o que ele lhe disse? Qual foi a proposta que fez para convencê-lo a deixar o emprego aonde ia tão bem?

- Viajaríamos sem destino certo. Não era muito dinheiro, ganharíamos apenas o suficiente para viver. Mas ele me prometeu: em cada canto um amor.

Foi essa a razão principal que fez meu tio deixar o emprego de garçom num restaurante no centro de Goiânia para aventurar-se pelo interior de Goiás como retratista. Não, a profissão não era fotógrafo e sim, retratista. O trabalho era tão desconhecido para ele quanto os caminhos por onde iria passar. No entanto, a ideia de deixar tudo por um amor nunca visto o encantou mais que a proposta de continuar como chefe de cozinha do restaurante. O proprietário do estabelecimento, quando ficou sabendo que perderia o rapaz, aumentou a oferta, dobrou o salário. Em vão, o sonho do desconhecido o atraía mais que a segurança e o trabalho certo. Largou tudo e se lançou na carreira de retratista que, naquele tempo, era a profissão de quem ampliava e retocava fotografias.

No sertão de Goiás, as pessoas guardavam com cuidado as poucas fotos da família. Fotografia era uma preciosidade, às vezes a única que a pessoa possuía do pai, da mãe, do filho que morreu. Meu tio ia de casa em casa oferecendo o serviço, perguntando quem queria ampliar o negativo, a foto do binóculo. Ao mesmo tempo em que ganhava a (o) cliente, também conquistava um amor. E foram muitos segundo ele. Muitas meninas que deixaram o namorado por sua causa. Muitos noivados terminados por um amor que não duraria mais que um mês. O rapaz esguio, magro, rosto fino, olhos claros, cabelos loiros e, ainda mais, retratista, encantava as meninas por onde passava. Mas antes que o encanto se transformasse em namoro sério, quiçá casamento, ele já havia partido, sem avisar, sem dizer adeus, antes mesmo de o sol nascer. Ele e o amigo pegavam o ônibus e iam de cidade em cidade, deixando lembranças e retocando sonhos, saudades, imagens do passado. Sua profissão era a saudade não importava se estampada numa fotografia ou nos olhos de uma menina.

Antes de se lançar como retratista, empregou-se aos 17 anos num restaurante. O primeiro emprego foi uma aventura tanto quanto o segundo. Não sabia nada da profissão de garçom. Seu trabalho era na roça ou no comércio, ajudando o pai. Chegava menino de Uberlândia para começar a vida em Goiânia. Um anuncio de jornal o fez procurar o emprego. O restaurante era movimentado. No mesmo local funcionava também um posto de gasolina e um hotel. Apresentou-se para trabalhar e garantiu ao proprietário, na entrevista para o emprego:

- Trabalhei como garçom no Hotel Colombo e Hotel Real em Uberlândia. O senhor pode ligar e tirar informações.

Por sorte o proprietário não ligou, pois teria descoberto que ele nunca trabalhou nos hotéis citados. Foi logo para prática e resolveu fazer um teste com o rapaz. Gostou de sua apresentação. E ele saiu-se bem logo de entrada. Empinou no braço todas as oito travessas que formavam o prato comercial e serviu com rapidez a mesa. Seu jeito empolado de falar e a maneira asseada de vestir conquistaram a confiança do proprietário. Não tardou alguns dias para que ele não apenas gostasse do jovem garçom, como também tirasse opinião sobre algumas mudanças necessárias na limpeza do estabelecimento.

Aqui é preciso abrir parênteses para explicar. Vovó foi sempre muito asseada e o vovô tinha um jeito formal e sofisticado de falar e tratar as pessoas. Tudo isso passaram para os filhos. Não lhes deram formação escolar, mas a boa educação ajudou a abrir portas. Nos primeiros anos de Goiânia, pais pobres ou pertencentes a classe média não se preocupavam em tornar os filhos bacharéis. O título era para rico, por isso era comum entre os 16 a 18 anos, o menino procurar uma profissão qualquer: garçom, cozinheiro, pedreiro, mecânico, vidraceiro etc. Para tanto, bastava vontade e coragem. Essa meu tio tinha de sobra!

Assim como não teve receio em afirmar que sabia o ofício de garçom, também não teve dúvida em dar algumas opiniões sobre a necessidade urgente de proceder a adequações no restaurante. O proprietário, certo de que ele tinha mesmo trabalhado no Hotel Colombo e no Hotel Real de Uberlândia, concordou com as mudanças. Meu tio juntou alguns funcionários e fizeram uma faxina. Não mudaram nada de lugar, apenas limparam. Logo os clientes perceberam as mudanças. Não apenas o jovem garçom era bom em servir, mas também em administrar o Restaurante Brasil – era esse o nome do lugar. O proprietário feliz com os resultados apresentados pelo recém contratado não teve dúvida em promovê-lo logo a chefe do restaurante.

Claro que ele não sabia cozinhar, assim como também nunca tinha sido garçom e tampouco entendia de administração. Mas não se intimidou. Fingia-se ocupado em fazer o tempero, enquanto as ajudantes de cozinha preparavam as refeições. Sobrava para ele, de fato, administrá-las. E assim meu tio ia de vento em polpa, promovido de garçom a chefe de cozinha, com o apreço do proprietário, até que se hospedou no Hotel Brasil um retratista. Antes que a rotina da cozinha viesse a lhe cansar, interessou-se pelo trabalho de ampliar retratos que lhe era oferecido e mais ainda pela oferta:

- Em cada canto um amor!

Largou tudo que aprendera no Restaurante Brasil para procurar nos olhos das moças que posavam para o retrato ou que lhe entregavam um negativo para ampliar: o amor. Oito meses viajando pelo interior de Goiás foram suficientes para que ele parasse nas feições de uma menina: Cidinha. Loira, olhos verdes, magra, pernas grossas, fala meiga. Nela parou seu coração e foi tão forte o sentimento que ele abandonou a profissão de retratista por um trabalho fixo. Não foi preciso muito tempo para pedir-lhe em noivado.

No entanto, o namoro o cansava. Saiam sempre cercados de amigos e irmãos. Não tinham um momento a sós. Não podiam trocar um beijo, um abraço, pois a turma não dava tempo. Para falar a verdade, o amor imaculado, ou melhor, o amor sem proximidade física não o convencia aos 19 anos. Não era suficiente. Por isso, começou a se engraçar pela vizinha. Morena, cheia de encantos e mais acessível que Cidinha. Foram tantos os encantos, os apertos e os beijos que Iracema ficou grávida. Sim, o nome da outra era Iracema.

Como ele iria contar para Cidinha, sua noiva? Como ele iria desmanchar o noivado? Ele não poderia dizer que a traiu porque não a amava. Estaria mentindo. Amava. Seu sentimento era o mesmo. Por azar, engravidara Iracema. O pai da moça e o tio, ambos empregados na polícia militar de Goiás, definiram que ele teria que casar. Sem poder sair da situação, chamou Cidinha para conversar. Pensou por muito tempo sobre como diria, tentou escolher as palavras, mas na hora não achou o que dizer. Simplesmente, pegou-lhe a mão e disse:

- Este anel não te serve. Está terminado o noivado.

Cidinha não entendia o que acontecia. Como um amor tão grande terminava assim? Sem mais nem menos? Sem razão? Sem palavras? Também Cidinha não soube o que responder. Caiu no choro e chorando saiu correndo da casa de minha avó. Queria fugir da dor que naquele momento a engolia. Queria fugir do vazio que de repente invadia sua vida e seu futuro. Meu pai, que assistira a conversa, chamou a atenção do meu tio:

- Assim que você termina com a moça? Isso não é papel de homem, rapaz! Vai atrás dela. Pede desculpas e se explique.

Meu tio saiu correndo atrás de Cidinha, mas antes que ele a alcançasse, ela entrou no ônibus. O ônibus a levou embora para longe. Nenhuma outra palavra. Nenhum beijo. Nenhum abraço. Nem mesmo a despedida. O ônibus poderia atrasar. Poderia não ter passado. Por infelicidade, ele chegou no instante que ela pisou na parada. O ônibus levou embora Cidinha por longos anos. Tão longo os anos que meu tio envelheceu. Casou e separou de Iracema depois de ter dois filhos. Conheceu outras profissões. Aprendeu a tocar viola. A beber com os amigos. A beber até cair na rua. Bebeu tanto que terminou no hospital. Recuperando-se de uma quase cirrose. Uma senhora viu o nome de minha tia na lista de visita. Era o mesmo sobrenome. Não poderia ser outro! Perguntou à enfermeira qual era o quarto onde aquela senhora fora fazer a visita. Reencontrou o meu tio recuperando-se no hospital. Ainda recuperando-se do amor que não vivera. Das palavras íntimas que não pode dizer. Dos carinhos que guardou. Dos sonhos que desejou ao lado dela. Naquele canto, na cama, ainda estava o amor.