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A tarde seguia rotineira e tranquila, sem novidades na Godoy & Associados. Depois do almoço na agradável companhia de Marilyn, Fernandes já contava os minutos para ir ter com ela novamente, mas agora num quarto reservado de hotel. Ele arrumava a maleta quando seu telefone tocou. Automaticamente, olhou para o visor do aparelho e vendo que se tratava de um número desconhecido, ficou momentaneamente indeciso. Por que atender se estava praticamente de saída? Ficou bastante dividido entre o dever de atender e o desejo de sair para sua vida pessoal, mas o instinto de advogado o levou a atender, e assim o fez.
- Godoy & Associados, Fernandes falando.
- Doutor... Dr. Fernandes? – disse uma voz feminina extremamente nervosa – desculpe-me ligar assim, mas é que eu não conseguia pensar em outra pessoa qualquer.
- Tudo bem, mas qual é mesmo o seu nome?
- Eu sou a Rosângela e estive em seu escritório na semana passada.
- Ah, sim, lembrei... mas aconteceu alguma coisa nova?
- Aconteceu uma desgraça imensa, doutor! - ela disse isto e desabou a chorar.
Fernandes ficou em silêncio por um tempo esperando que ela se contivesse e dissesse o que estava, de fato, acontecendo, mas Rosângela não parava mais de chorar balbuciando palavras confusas que ele não conseguia entender.
- Tenha calma, senhora! Faça o seguinte: largue o telefone, tome um copo de água, enxugue as lágrimas, respire fundo, então volte e me conte tudo para que eu possa ajudá-la. Eu esperarei.
Fernandes ouviu o som do aparelho sendo posto sobre um móvel e, sem alternativa, ficou controlando a impaciência que se avizinhava. Alguns minutos se passaram e ele ouviu um suspiro fundo. Era Rosângela voltando ao telefone.
- Pronto doutor, agora eu estou mais calma. Obrigada.
- Ótimo! Agora com calma, diga-me o que está havendo.
- Bem, doutor, ontem à noite – continuou Rosângela – eu disse ao meu marido que queria mesmo me separar dele. Ele ficou muito zangado e me deu um forte tapa no rosto. E eu, cansada destes desmandos, peguei o refratário de arroz e arremessei na cabeça dele.
Rosângela recomeçou a chorar e Fernandes nada disse, apenas esperou que ela continuasse a narrativa dos fatos.
- Ele sofreu um pequeno corte na mão, mas não foi muita coisa. Depois que limpou o ferimento na pia do banheiro, ele mesmo terminou o curativo com uma gaze e foi dormir em nosso quarto. Por causa de nossa briga, eu não quis acompanhá-lo e dormi no sofá da sala. Hoje, bem cedo, eu fui para a casa de minha irmã, em Santo André e passei o dia todo lá. Voltando agora pouco, vi o carro dele na garagem, mas quando entrei em casa constatei que não estava na sala nem na cozinha. Subi até nosso quarto e a porta estava fechada; bati e chamei diversas vezes, porém ele não me respondeu. Então resolvi entrar, pois precisava trocar de roupa e foi quando o vi caído no chão. Achei que estava passando mal, mas ao tocá-lo, percebi que estava morto!
- Você já chamou a polícia?
- Não... eu estou com muito medo de ser presa... de todos pensarem que eu...
Rosângela voltou a chorar.
- Acalme-se, dê-me seu endereço que irei até aí agora mesmo.
Fernandes anotou o endereço já abreviando as informações que ela lhe fornecia.
- Tenha calma, - continuou o advogado - chegarei aí no máximo em quarenta minutos. Não mexa em nada!
Fernandes pegou a pasta, as chaves do carro e foi depressa para o elevador. Ao passar pela recepção pediu para a secretária que ligasse para polícia, de modo que eles enviassem uma viatura ao local que lhe indicava; o que, sem perguntas, Mayára fez prontamente.
- Godoy & Associados, Fernandes falando.
- Doutor... Dr. Fernandes? – disse uma voz feminina extremamente nervosa – desculpe-me ligar assim, mas é que eu não conseguia pensar em outra pessoa qualquer.
- Tudo bem, mas qual é mesmo o seu nome?
- Eu sou a Rosângela e estive em seu escritório na semana passada.
- Ah, sim, lembrei... mas aconteceu alguma coisa nova?
- Aconteceu uma desgraça imensa, doutor! - ela disse isto e desabou a chorar.
Fernandes ficou em silêncio por um tempo esperando que ela se contivesse e dissesse o que estava, de fato, acontecendo, mas Rosângela não parava mais de chorar balbuciando palavras confusas que ele não conseguia entender.
- Tenha calma, senhora! Faça o seguinte: largue o telefone, tome um copo de água, enxugue as lágrimas, respire fundo, então volte e me conte tudo para que eu possa ajudá-la. Eu esperarei.
Fernandes ouviu o som do aparelho sendo posto sobre um móvel e, sem alternativa, ficou controlando a impaciência que se avizinhava. Alguns minutos se passaram e ele ouviu um suspiro fundo. Era Rosângela voltando ao telefone.
- Pronto doutor, agora eu estou mais calma. Obrigada.
- Ótimo! Agora com calma, diga-me o que está havendo.
- Bem, doutor, ontem à noite – continuou Rosângela – eu disse ao meu marido que queria mesmo me separar dele. Ele ficou muito zangado e me deu um forte tapa no rosto. E eu, cansada destes desmandos, peguei o refratário de arroz e arremessei na cabeça dele.
Rosângela recomeçou a chorar e Fernandes nada disse, apenas esperou que ela continuasse a narrativa dos fatos.
- Ele sofreu um pequeno corte na mão, mas não foi muita coisa. Depois que limpou o ferimento na pia do banheiro, ele mesmo terminou o curativo com uma gaze e foi dormir em nosso quarto. Por causa de nossa briga, eu não quis acompanhá-lo e dormi no sofá da sala. Hoje, bem cedo, eu fui para a casa de minha irmã, em Santo André e passei o dia todo lá. Voltando agora pouco, vi o carro dele na garagem, mas quando entrei em casa constatei que não estava na sala nem na cozinha. Subi até nosso quarto e a porta estava fechada; bati e chamei diversas vezes, porém ele não me respondeu. Então resolvi entrar, pois precisava trocar de roupa e foi quando o vi caído no chão. Achei que estava passando mal, mas ao tocá-lo, percebi que estava morto!
- Você já chamou a polícia?
- Não... eu estou com muito medo de ser presa... de todos pensarem que eu...
Rosângela voltou a chorar.
- Acalme-se, dê-me seu endereço que irei até aí agora mesmo.
Fernandes anotou o endereço já abreviando as informações que ela lhe fornecia.
- Tenha calma, - continuou o advogado - chegarei aí no máximo em quarenta minutos. Não mexa em nada!
Fernandes pegou a pasta, as chaves do carro e foi depressa para o elevador. Ao passar pela recepção pediu para a secretária que ligasse para polícia, de modo que eles enviassem uma viatura ao local que lhe indicava; o que, sem perguntas, Mayára fez prontamente.
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Quando Fernandes chegou ao endereço havia duas viaturas da polícia e também uma ambulância. Alguns curiosos já se aglomeravam no entorno da linda residência farejando novidades. Três policiais faziam a guarda da entrada.
- Boa noite – disse Fernandes aproximando-se de um deles – eu sou o advogado da família e foi a minha secretária que chamou a polícia. Eu posso entrar para ver como está a Sra. Rosângela?
- Um momento, deixe-me falar com meu superior.
O soldado se dirigiu ao interior da casa, mas logo acenou para Fernandes entrar. Seu olho experiente observou que a sala de visita estava em ordem, tudo aparentemente em seus lugares; na sala de jantar, todavia, o cenário era como de um campo onde houvera alguma batalha recente. Havia louça quebrada pelo chão, restos de comida espalhados por todo lado e a mesa do jantar anterior ainda estava posta com talheres, copos e tudo o mais. Com ar perdido e assustado, Rosângela estava sentada em uma poltrona. Notava-se um grande inchaço no feio arroxeado do seu olho esquerdo. Ao ver o advogado, Rosângela levantou-se, correu até ele e o abraçou fortemente.
- Foi horrível doutor! Ele não prestava, mas não queria que terminasse assim – disse ela, aos prantos.
A princípio, Fernandes não sabia o que fazer e, constrangido, não correspondeu ao abraço prolongado dela uma vez que eles tinham se visto apenas uma vez, mas dada a atual circunstância, ele acabou afagando-lhe as costas suavemente.
- Fique calma, Sra. Rosângela – disse, quase sussurrando – tudo vai se resolver a contento, verá!
Fernandes solicitou que uma policial cuidasse da viúva.
- Venha comigo. – disse a policial – Há algum calmante na casa?
Rosângela gesticulou que sim.
- Seria bom que tomasse um, senhora - continuou a agente policial – sei que a situação é triste, mas precisa ficar calma. Onde está guardado?
- No gabinete do lavabo.
A policial foi em busca do medicamento voltando, em seguida, com a cartela do calmante e um copo com água. O advogado aproveitou a trégua para falar com capitão responsável agora pela ocorrência. Quando os peritos chegaram ao local para a remoção do corpo e para coletar provas periciais do local, Rosângela foi conduzida à delegacia para dar seu primeiro depoimento. Fernandes, na qualidade de seu advogado, a acompanhou.
Ao ser interrogada, ela repetiu ao delegado tudo o que já havia dito aos policiais. Contou-lhes sobre a briga que tiveram à hora do jantar da noite anterior, sem omitir que ele, extremamente irado por ela pedir-lhe o divórcio, havia lhe dado um forte soco e que ela reagira à agressão arremessando o refratário que o acertara bem na cabeça. Um dos estilhaços o ferira, sem gravidade, na mão esquerda e ele mesmo cuidara do ferimento.
Depois de tê-la ouvido por quase uma hora, o delegado não encontrou motivos para detê-la já que lhe pareceu ser o ocorrido apenas uma discussão doméstica seguida de agressões mútuas; nada mais que uma fatalidade, ao menos por enquanto. Sem uma base mais concreta para poder deter Rosângela, o delegado a encaminhou para fazer o corpo de delito e a liberou apenas dando algumas orientações gerais ao advogado.
- Parece tratar-se mesmo de uma fatalidade, porém é aconselhável que a senhora não deixe o estado nem o país enquanto não tivermos o resultado do legista.
Fernandes colocou Rosângela em um táxi e, finalmente, foi se encontrar com Marilyn, mesmo cansado e preocupado com sua nova cliente.
- Boa noite – disse Fernandes aproximando-se de um deles – eu sou o advogado da família e foi a minha secretária que chamou a polícia. Eu posso entrar para ver como está a Sra. Rosângela?
- Um momento, deixe-me falar com meu superior.
O soldado se dirigiu ao interior da casa, mas logo acenou para Fernandes entrar. Seu olho experiente observou que a sala de visita estava em ordem, tudo aparentemente em seus lugares; na sala de jantar, todavia, o cenário era como de um campo onde houvera alguma batalha recente. Havia louça quebrada pelo chão, restos de comida espalhados por todo lado e a mesa do jantar anterior ainda estava posta com talheres, copos e tudo o mais. Com ar perdido e assustado, Rosângela estava sentada em uma poltrona. Notava-se um grande inchaço no feio arroxeado do seu olho esquerdo. Ao ver o advogado, Rosângela levantou-se, correu até ele e o abraçou fortemente.
- Foi horrível doutor! Ele não prestava, mas não queria que terminasse assim – disse ela, aos prantos.
A princípio, Fernandes não sabia o que fazer e, constrangido, não correspondeu ao abraço prolongado dela uma vez que eles tinham se visto apenas uma vez, mas dada a atual circunstância, ele acabou afagando-lhe as costas suavemente.
- Fique calma, Sra. Rosângela – disse, quase sussurrando – tudo vai se resolver a contento, verá!
Fernandes solicitou que uma policial cuidasse da viúva.
- Venha comigo. – disse a policial – Há algum calmante na casa?
Rosângela gesticulou que sim.
- Seria bom que tomasse um, senhora - continuou a agente policial – sei que a situação é triste, mas precisa ficar calma. Onde está guardado?
- No gabinete do lavabo.
A policial foi em busca do medicamento voltando, em seguida, com a cartela do calmante e um copo com água. O advogado aproveitou a trégua para falar com capitão responsável agora pela ocorrência. Quando os peritos chegaram ao local para a remoção do corpo e para coletar provas periciais do local, Rosângela foi conduzida à delegacia para dar seu primeiro depoimento. Fernandes, na qualidade de seu advogado, a acompanhou.
Ao ser interrogada, ela repetiu ao delegado tudo o que já havia dito aos policiais. Contou-lhes sobre a briga que tiveram à hora do jantar da noite anterior, sem omitir que ele, extremamente irado por ela pedir-lhe o divórcio, havia lhe dado um forte soco e que ela reagira à agressão arremessando o refratário que o acertara bem na cabeça. Um dos estilhaços o ferira, sem gravidade, na mão esquerda e ele mesmo cuidara do ferimento.
Depois de tê-la ouvido por quase uma hora, o delegado não encontrou motivos para detê-la já que lhe pareceu ser o ocorrido apenas uma discussão doméstica seguida de agressões mútuas; nada mais que uma fatalidade, ao menos por enquanto. Sem uma base mais concreta para poder deter Rosângela, o delegado a encaminhou para fazer o corpo de delito e a liberou apenas dando algumas orientações gerais ao advogado.
- Parece tratar-se mesmo de uma fatalidade, porém é aconselhável que a senhora não deixe o estado nem o país enquanto não tivermos o resultado do legista.
Fernandes colocou Rosângela em um táxi e, finalmente, foi se encontrar com Marilyn, mesmo cansado e preocupado com sua nova cliente.
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Misturado com o odor de putrefação e de formol, o ar gélido tornava o ambiente irrespirável na sala de necropsia, a não ser para os legistas já bastante acostumados com aquilo.
Kelly Nakamura, uma das legistas da equipe do IML de São Paulo fumava seu cigarro bem próximo à porta da toalete, uma vez que aquilo era proibido naquele local. Vez por outra, ela espalhava a fumaça com a mão para não disparar o alarme contra incêndio. Tendo fumado a metade do cigarro, ela o apagou e jogou a bituca no cesto de lixo, mas quando já puxava a gaveta para a retirada do próximo cadáver a ir para a mesa de necropsia, o Dr. Cleber, seu adjunto no setor, entrou e disse:
- Caramba, – você andou fumando de novo aqui dentro, Kelly! Se o doutor Aranha perceber ele lhe dará uma merecida suspensão. Ainda não sei como você tem coragem de fumar depois de observar os pulmões em estado tão lastimável que estudamos na mesa de autópsia! Não fica impressionada? Além do mais, você sabe que é expressamente proibido fumar aqui dentro.
- Ah! Relaxe, Cleber! O Dr. Aranha nunca desce aqui mesmo e outra: os mortos já estão mortos, assim para eles não faz a menor diferença eu fumar aqui ou não.
- Ok! Não está mais aqui quem falou – disse Cleber desistindo e erguendo as mãos para o alto – Quem é este aí?
- Este é... – Ela olhou a etiqueta de identificação – este é o Júlio Gaspar... ‘era’...segure-o pelos pés e vamos colocá-lo sobre a mesa.
- Espere, deixe-me primeiro vestir minhas luvas.
Enquanto Cleber enfiava as luvas protetoras que chegavam quase acima do seu antebraço. Kelly abria o zíper do saco preto para ver a face do cadáver.
- Vamos dar uma olhada em você, Júlio, e cantarolou uma antiga canção de Julio Iglesias:
Amigo, eu vim aqui pra te falar
Falar da minha vida pra você
Eu sei que você vai me ajudar
Eu quero um ombro amigo pra chorar...
Ela disse:
- Que será que você vai nos revelar, Júlio Gaspar?
- Você não tem jeito, não é, doutora Kelly? – disse Cleber, pegando os pés do cadáver - brinca com tudo. Sabe que eu tenho dúvidas se você é japonesa de fato?
- E não sou mesmo, pois não nasci no Japão, sou filha de uma japonesa e com um baiano.
- Está certo. Vamos contar até três e levantá-lo.
- E vamos ver o que o Júlio tem a nos dizer sobre a sua morte.
- Um, dois, três e lá vai!
A roupa do cadáver consistia apenas em um pijama de duas peças, uma camiseta de algodão e uma cueca samba-canção de seda. Tendo despido o cadáver, Kelly começou a análise do corpo verificando, inicialmente, a presença de possíveis hematomas, mas tudo que encontrou foi um deles na região da escápula direita.
- Posso estar enganada, - disse Kelly – mas creio a escápula está quebrada, Cleber.
Ela continuou a análise e, ao chegar à região parietal do crânio, se deparou com uma boa quantidade de sangue já coagulado. A legista pode ver que faltava uma parte do couro capilar. Logo acima, na parte frontal do crânio, havia um grande inchaço com um corte de aproximadamente três centímetros de comprimento por cinco milímetros de profundidade.
- Caracas, você sofreu, hein? – disse Cleber para o morto – E até um leigo diagnosticaria a causa da morte como traumatismo craniano pela pancada que deram na sua cabeça.
- De acordo com o relatório policial, - disse Kelly - discutindo com a esposa, ela arremessou uma travessa de vidro na cabeça dele, o que provavelmente foi o agente do hematoma frontal e também do corte logo acima. Contudo, foi o ferimento na região parietal que o levou a óbito. Ao que tudo indica, depois da pancada sofrida na briga com a esposa, ele se sentiu sonolento e foi dormir; mas sentindo uma grande dor ao levantar-se pela manhã, caiu batendo fortemente a cabeça no criado-mudo num movimento mais brusco que teria feito. E por não ter sido socorrido, ele sofreu ali até morrer. Entretanto, creio que é melhor analisarmos seu corpo mais um pouco, tirarmos algumas radiografias do crânio e da região do tórax antes de abri-lo, não acha?
- Eu concordo com as radiografias, mas, quanto ao resto do procedimento acredito que não seja necessário, Kelly. A causa da morte, com certeza, foi a queda dele sobre o criado-mudo.
- Quanto a isso, eu também estou convicta, mas eu quero ainda fazer algumas análises químicas.
- Nisto, eu concordo com você, garota. Vamos lá, então!
Kelly Nakamura, uma das legistas da equipe do IML de São Paulo fumava seu cigarro bem próximo à porta da toalete, uma vez que aquilo era proibido naquele local. Vez por outra, ela espalhava a fumaça com a mão para não disparar o alarme contra incêndio. Tendo fumado a metade do cigarro, ela o apagou e jogou a bituca no cesto de lixo, mas quando já puxava a gaveta para a retirada do próximo cadáver a ir para a mesa de necropsia, o Dr. Cleber, seu adjunto no setor, entrou e disse:
- Caramba, – você andou fumando de novo aqui dentro, Kelly! Se o doutor Aranha perceber ele lhe dará uma merecida suspensão. Ainda não sei como você tem coragem de fumar depois de observar os pulmões em estado tão lastimável que estudamos na mesa de autópsia! Não fica impressionada? Além do mais, você sabe que é expressamente proibido fumar aqui dentro.
- Ah! Relaxe, Cleber! O Dr. Aranha nunca desce aqui mesmo e outra: os mortos já estão mortos, assim para eles não faz a menor diferença eu fumar aqui ou não.
- Ok! Não está mais aqui quem falou – disse Cleber desistindo e erguendo as mãos para o alto – Quem é este aí?
- Este é... – Ela olhou a etiqueta de identificação – este é o Júlio Gaspar... ‘era’...segure-o pelos pés e vamos colocá-lo sobre a mesa.
- Espere, deixe-me primeiro vestir minhas luvas.
Enquanto Cleber enfiava as luvas protetoras que chegavam quase acima do seu antebraço. Kelly abria o zíper do saco preto para ver a face do cadáver.
- Vamos dar uma olhada em você, Júlio, e cantarolou uma antiga canção de Julio Iglesias:
Amigo, eu vim aqui pra te falar
Falar da minha vida pra você
Eu sei que você vai me ajudar
Eu quero um ombro amigo pra chorar...
Ela disse:
- Que será que você vai nos revelar, Júlio Gaspar?
- Você não tem jeito, não é, doutora Kelly? – disse Cleber, pegando os pés do cadáver - brinca com tudo. Sabe que eu tenho dúvidas se você é japonesa de fato?
- E não sou mesmo, pois não nasci no Japão, sou filha de uma japonesa e com um baiano.
- Está certo. Vamos contar até três e levantá-lo.
- E vamos ver o que o Júlio tem a nos dizer sobre a sua morte.
- Um, dois, três e lá vai!
A roupa do cadáver consistia apenas em um pijama de duas peças, uma camiseta de algodão e uma cueca samba-canção de seda. Tendo despido o cadáver, Kelly começou a análise do corpo verificando, inicialmente, a presença de possíveis hematomas, mas tudo que encontrou foi um deles na região da escápula direita.
- Posso estar enganada, - disse Kelly – mas creio a escápula está quebrada, Cleber.
Ela continuou a análise e, ao chegar à região parietal do crânio, se deparou com uma boa quantidade de sangue já coagulado. A legista pode ver que faltava uma parte do couro capilar. Logo acima, na parte frontal do crânio, havia um grande inchaço com um corte de aproximadamente três centímetros de comprimento por cinco milímetros de profundidade.
- Caracas, você sofreu, hein? – disse Cleber para o morto – E até um leigo diagnosticaria a causa da morte como traumatismo craniano pela pancada que deram na sua cabeça.
- De acordo com o relatório policial, - disse Kelly - discutindo com a esposa, ela arremessou uma travessa de vidro na cabeça dele, o que provavelmente foi o agente do hematoma frontal e também do corte logo acima. Contudo, foi o ferimento na região parietal que o levou a óbito. Ao que tudo indica, depois da pancada sofrida na briga com a esposa, ele se sentiu sonolento e foi dormir; mas sentindo uma grande dor ao levantar-se pela manhã, caiu batendo fortemente a cabeça no criado-mudo num movimento mais brusco que teria feito. E por não ter sido socorrido, ele sofreu ali até morrer. Entretanto, creio que é melhor analisarmos seu corpo mais um pouco, tirarmos algumas radiografias do crânio e da região do tórax antes de abri-lo, não acha?
- Eu concordo com as radiografias, mas, quanto ao resto do procedimento acredito que não seja necessário, Kelly. A causa da morte, com certeza, foi a queda dele sobre o criado-mudo.
- Quanto a isso, eu também estou convicta, mas eu quero ainda fazer algumas análises químicas.
- Nisto, eu concordo com você, garota. Vamos lá, então!