Ravenala criava imagens incompletas dos cinco minutos de intimidade dos Castro, que Morgana ouvia, escondida atrás da porta e lhe contava. Sonhava casada com Robert e só lhe vinha à memória os afazeres domésticos, alguns momentos de trocas de carinho como abraços e beijos. Nem mesmo o sonho molhado ela conhecia, ainda assim, temia. “Será pecado? E se Robert fosse meu irmão? Será que ele também briga com o espelho?” Ela possui dois espelhos em seu guarda-roupa: um na porta da direita, outro na porta da esquerda. Em um deles se via bonita, mas no outro, muito feia... E reclama apontando o dedo para a própria imagem refletida no espelho: ‘Menina, você está péssima hoje!’ Com efeito, a autossugestão penetrava profundamente no espelho de sua alma e naquele dia, tudo se tornava feio para ela.
Ria, recordando-se do que lhe confidenciara a amiga sobre o código do senhor Martiniano: “Tá na hora de oferecer um sacrifício no altar.” — Espere pelo menos eu terminar a reza, — dizia a mãe de Morgana.
— Oferecer um sacrifício no altar? Que sacrilégio — pensava Ravenala — depois, ela mesma justificava: “O senhor Martiniano pode estar certo. A cama é o altar do casal.”
Sonhava receber de Robert um convite para oferecerem, juntos, um sacrifício no altar, e enquanto o convite não chegava, o tempo de espera parecia interminável. As horas, minutos e segundos chegavam devagar. Mas o tempo nunca para e não tem fim, senão para o vivente.
Alguns segundos... E no virar de cada página do calendário, vai-se um mês e vem outro, vai-se um ano e dezenas de anos vão correndo, escorrendo como águas no regato.
Não há guarda-chuva contra o tempo que tritura as quatro estações da vida. Esses dias a Morgana ainda era uma menina, e agora já ia casar-se... Teve uma ponta de inveja da amiga. Talvez uma santa inveja. Santa, porque é vontade do Criador que as espécies cresçam e multipliquem-se.
Deitou-se, acomodou a cabeça, olhou para o teto e buscou lembranças dos tempos do Marista. Morgana era uma das meninas mais bonitas da escola. Brevemente, estaria casada, e ela, Ravenala, continuava solteira, olhando as paredes de uma enfermaria.
Sozinha, no silêncio da dor, ouviu a voz de sua alma: ‘Vem Ravenala!’ Ela foi. Foi levado em delírio de febre, e, no estupor de sua agonia, viu surgir o cavalo esverdeado do apocalipse seis sete. Seu cavaleiro tinha por nome Morte; e a região dos mortos a seguia com outro nome, chamado pelos humanos de dengue hemorrágica. Sofreu durante dias e quando tomou acordo de si, estava muito debilitada. Lamentou profundamente por ter perdido a festa de casamento de sua melhor amiga. Só um mal daquela monta a impediria de ir ao casamento da Morgana.
Menina, levanta-te, ainda hoje receberás alta, dissera o médio.
Já em casa, Talita Ravenala, fechou as asas como uma gaivota em voo vertical para erguer-se das águas com um troféu no bico. Não queria morrer sem deixar posteridade. Precisava agir logo, antes que fosse tarde demais para conceber filhos. Estendeu a mão, puxou um livro que estava na gaveta do criado-mudo. Abriu. Leu Iracema e viu Alencar colocar a índia nos braços de Martim: ‘trêmula e palpitante como tímida perdiz... ’ É hora da estrela. ‘Por que não agora? Por que não soltar seu grito de gaivota, e derrubar as muralhas de Jericó?’ Estava cansada de comprar os beijos de Amarildo com o salário da loja. Então, tomou os originais de seu livro, ainda em construção, e dirigiu-se à casa de Robert. Logo que sentaram, surgiu o primeiro impasse. Pelo gosto de Ravenala, declinaria o nome de todos os colegas do Marista, até o gol de Sivory que deu ao colégio o título de campeão em 1980, merecia registro. Fez os planos, haveria de conseguir algum papel para muitos colegas, mesmo que fosse uma ponta, uma passagem rápida, como figurante de telenovelas.
Robert examinou os rascunhos, e deu seu parecer: “A primeira coisa a ser definida é o público-alvo depois, constroem-se as cenas, escolhem-se personagens e traçam-se perfis, cenas e cenários. É preciso introduzir cada capítulo, sem, contudo fazer-se um prefácio para cada um deles. Deve-se cuidar da arte como se cuida de um filho em tenra idade e para que o resultado final seja de agradável sabor, coloca-se uma pitada de sal e outra de açúcar de modo que a massa fique levedada com o fermento do amor.”
— Ora, Bob! Isso me parece uma receita de bolo.
— Ravinha, o escritor deve retirar as amarras, deixar o cavalo solto no pátio, de modo a permitir que os leitores cavalguem.
Personagens precisam sair das páginas como Raquel e Alvarenga, de Carrero, para prestar socorro a Biba, acidentada na calçada. É a fantasia mostrando a realidade do cotidiano, fazendo o lado social da literatura. Também não se deve esvaziar o tinteiro, para que, com o resto da tinta, o leitor possa pintar novo quadro e recontar a história. Carrero tomou por empréstimo a deusa mitológica dos gregos, e apresentou Osíris na carne de Leonardo em relacionamento incestuoso com Isis, sua irmã. Sabes aonde Alencar encontrou o mel para colocar nos lábios de Iracema? Com certeza, não foi numa colmeia da floresta, foi no cântico de amor. O perfume do amor excede a todos os aromas..., e os lábios da esposa, destilam mel; há mel e leite sob sua língua... Onde pensas que Homero pegou Helena de Tróia e a entregou a Páris?... Ora, Dina, a filha de Jacó, nas mãos de Homero, tornou-se Helena de Menelau. Páris pode ser o príncipe de Siquém que raptou Dina. Simeão e Levi estão representados por Aquiles e Agamenon em guerra para libertar Dina, a filha de Jacó, que se tornara Helena de Homero. A intertextualidade é essencial para provocar a verve do leitor. Com certeza, os cruzamentos literários enriquecem a obra. No entanto, cuidado com o Anjo Negro! Mude a denominação do anjo. Podes ser processada por segregação. Racismo. Anjo das trevas parece mais adequado.
— Conjeturas, maninho! Conjecturas. Nem sempre acordes com as minhas. Veja: Anjo das Trevas não tem o mesmo efeito literário que Anjo Negro. Efeito teológico, talvez tenha. Literário, não! Ademais, negro é cor. Não é raça. E quanto ao teu ensaio sobre obras de Homero e de Carrero, não sei se posso assinar embaixo.
— Vais escolher o efeito teológico ou literário?
— A Bíblia pode ser considerada como literatura?
Inicialmente, Robert ficou embaraçado, mas logo encontrou palavras para desenvolver seu discurso do modo mais convincente possível .
— Perguntaste-me se a Bíblia pode ser considerada literatura. Isso é polêmico. Os livros bíblicos apresentam a estrutura literária praticada na época em que foram escritos. Sob essa ótica, é literatura. Mas... se fosse literatura, não estaria comprometida com a verdade. Enfim, religião não é uma ciência, nem a Bíblia, um livro. Embora etimologicamente o seja, a Bíblia não um livro, é uma pessoa. É Deus que fala. Não te lembras daquele teu poema? Não pôde participar do Concurso de Poesias do Marista, com o título ‘Mulatinha’. Mesmo sendo uma alusão à beleza negra, o título foi assinalado como "não politicamente correto".
— O Brasil tem essas coisas. Este politicamente correto me mata. Se por um lado, peca por excesso de zelo, por outro, relega a plano inferior a própria vida. ‘Vem cá meu dengo...vem cá meu nego...’ é tratamento carinhoso com que alguém se dirige à pessoa amada. Ora, mulata já não significa mais a filha de escravo e escrava sexual do patrão. Não é isto. Mulata é delicada, tem pele morena, cheiro de cravo e canela.
Ainda no enxugamento da obra, Robert persiste em suas admoestações.
— Quantas páginas terá o livro.
— Não sei ainda com quantas páginas ficará o livro depois de pronto, contanto que sejam mais de 56 páginas, do contrário, seria um livreto.
—Tens muito fôlego. Vejo isso nas braçadas de seus parágrafos. Neste caso, transforme teu ensaio em Romance de formação. Afinal, vais escrever um conto, um romance ou uma novela?
— Livro não chega pronto e acabado como o ovo que a galinha solta na esteira de produção. Recebe-se uma luz. Às vezes a luz chega como sonho durante a vigília e o enredo vem como um delírio, uma fantasia que se tem acordado. Tudo se faz com inspiração. Nada sem transpiração.
Seria bom se pudéssemos escrever sem pontuação alguma e depois disséssemos: “Ordinário, marche!” e todos os pontos, e todas as vírgulas e interrogações tomassem seus postos. É preciso que depois do lampejo, venhamos com mãos de aleijadinho e transformemos a pedra-sabão em arte, e no final, sobra pouco do que se tinha antes.
Aquilo que parece digressão, na verdade, é momento propício para refletir. O escritor aproxima-se do leitor e propõe o debate como se lançasse uma pedra em regato louro.
— Quanto tempo vive uma pedra?
Qualquer resposta que obtiver será tomada como reflexão.
— Será que as pedras guardam o registro de tudo que aconteceu em sua vida pétrea? Se uma pedra nunca foi esmagada e sendo uma pedra dura de roer, por quanto tempo durará a existência de uma pedra? Pode uma dinamite que explode uma pedreira, por fim a vida de uma pedra? Não a transformaria em dezenas e centenas de pedras menores que continuarão, individualmente, sendo uma pedra?
— Ouço o eco da voz de Umberto refletindo sobre o que pensa uma pedra — disse Robert — queres dizer o que pensa uma pedra, ou o que pensa a crítica, sobre o que escreves? Existe pedra morta que não pode ser aproveitada na construção civil, mas existe também a pedra angular.
— E também pedra de tropeço — acrescentou Ravenala.
Robert acomodou-se na cadeira e com as mãos metidas em luvas de seda sentenciou: “Há muita patacoada cômica, e célula-dramática em teu ensaio; digo: conto, ou melhor, romance. Para melhor aproveitamento, é necessário retirar as garças negras penduradas como morcegos no travessão de João Cabral e outros pensamentos alheios utilizados para explicar, confundir ou ganhar tempo.”
Ravenala também queria usar outros recursos, como realçar em itálico, ou dizer o nome do autor, sem dizer. Ela engoliu a seco muitas aspas e caspas que a vida lhe ofereceu.
Muitos pagam pela edição de seus primeiros títulos. Raquel pagou com seus próprios recursos, Queirós também, e Coralina gastou todos os seus Vinténs de Cobre.
Ravenala não queria pagar para ser lida. Também nada pagaria a Robert pela pareceria e revisão dos textos, a não ser que uma editora de renome abraçasse a causa, publicando a obra e lhe recompensasse em dinheiro os justos e merecidos direitos autorais. Não cobraria nada dele, se ela resolvesse fazer uma produção independente da obra que escreviam juntos.
— Ao trabalho, Robert! — disse ela, depois de um intervalo de quinze minutos para o lanche.
Naquele dia, o enxugamento da obra, durou mais de quatro horas, e obteve bom rendimento.
— Estou cansada — disse Ravenala.
— Por hoje chega. Amanhã, em minha casa — concluiu Robert.
***Ria, recordando-se do que lhe confidenciara a amiga sobre o código do senhor Martiniano: “Tá na hora de oferecer um sacrifício no altar.” — Espere pelo menos eu terminar a reza, — dizia a mãe de Morgana.
— Oferecer um sacrifício no altar? Que sacrilégio — pensava Ravenala — depois, ela mesma justificava: “O senhor Martiniano pode estar certo. A cama é o altar do casal.”
Sonhava receber de Robert um convite para oferecerem, juntos, um sacrifício no altar, e enquanto o convite não chegava, o tempo de espera parecia interminável. As horas, minutos e segundos chegavam devagar. Mas o tempo nunca para e não tem fim, senão para o vivente.
Alguns segundos... E no virar de cada página do calendário, vai-se um mês e vem outro, vai-se um ano e dezenas de anos vão correndo, escorrendo como águas no regato.
Não há guarda-chuva contra o tempo que tritura as quatro estações da vida. Esses dias a Morgana ainda era uma menina, e agora já ia casar-se... Teve uma ponta de inveja da amiga. Talvez uma santa inveja. Santa, porque é vontade do Criador que as espécies cresçam e multipliquem-se.
Deitou-se, acomodou a cabeça, olhou para o teto e buscou lembranças dos tempos do Marista. Morgana era uma das meninas mais bonitas da escola. Brevemente, estaria casada, e ela, Ravenala, continuava solteira, olhando as paredes de uma enfermaria.
Sozinha, no silêncio da dor, ouviu a voz de sua alma: ‘Vem Ravenala!’ Ela foi. Foi levado em delírio de febre, e, no estupor de sua agonia, viu surgir o cavalo esverdeado do apocalipse seis sete. Seu cavaleiro tinha por nome Morte; e a região dos mortos a seguia com outro nome, chamado pelos humanos de dengue hemorrágica. Sofreu durante dias e quando tomou acordo de si, estava muito debilitada. Lamentou profundamente por ter perdido a festa de casamento de sua melhor amiga. Só um mal daquela monta a impediria de ir ao casamento da Morgana.
Menina, levanta-te, ainda hoje receberás alta, dissera o médio.
Já em casa, Talita Ravenala, fechou as asas como uma gaivota em voo vertical para erguer-se das águas com um troféu no bico. Não queria morrer sem deixar posteridade. Precisava agir logo, antes que fosse tarde demais para conceber filhos. Estendeu a mão, puxou um livro que estava na gaveta do criado-mudo. Abriu. Leu Iracema e viu Alencar colocar a índia nos braços de Martim: ‘trêmula e palpitante como tímida perdiz... ’ É hora da estrela. ‘Por que não agora? Por que não soltar seu grito de gaivota, e derrubar as muralhas de Jericó?’ Estava cansada de comprar os beijos de Amarildo com o salário da loja. Então, tomou os originais de seu livro, ainda em construção, e dirigiu-se à casa de Robert. Logo que sentaram, surgiu o primeiro impasse. Pelo gosto de Ravenala, declinaria o nome de todos os colegas do Marista, até o gol de Sivory que deu ao colégio o título de campeão em 1980, merecia registro. Fez os planos, haveria de conseguir algum papel para muitos colegas, mesmo que fosse uma ponta, uma passagem rápida, como figurante de telenovelas.
Robert examinou os rascunhos, e deu seu parecer: “A primeira coisa a ser definida é o público-alvo depois, constroem-se as cenas, escolhem-se personagens e traçam-se perfis, cenas e cenários. É preciso introduzir cada capítulo, sem, contudo fazer-se um prefácio para cada um deles. Deve-se cuidar da arte como se cuida de um filho em tenra idade e para que o resultado final seja de agradável sabor, coloca-se uma pitada de sal e outra de açúcar de modo que a massa fique levedada com o fermento do amor.”
— Ora, Bob! Isso me parece uma receita de bolo.
— Ravinha, o escritor deve retirar as amarras, deixar o cavalo solto no pátio, de modo a permitir que os leitores cavalguem.
Personagens precisam sair das páginas como Raquel e Alvarenga, de Carrero, para prestar socorro a Biba, acidentada na calçada. É a fantasia mostrando a realidade do cotidiano, fazendo o lado social da literatura. Também não se deve esvaziar o tinteiro, para que, com o resto da tinta, o leitor possa pintar novo quadro e recontar a história. Carrero tomou por empréstimo a deusa mitológica dos gregos, e apresentou Osíris na carne de Leonardo em relacionamento incestuoso com Isis, sua irmã. Sabes aonde Alencar encontrou o mel para colocar nos lábios de Iracema? Com certeza, não foi numa colmeia da floresta, foi no cântico de amor. O perfume do amor excede a todos os aromas..., e os lábios da esposa, destilam mel; há mel e leite sob sua língua... Onde pensas que Homero pegou Helena de Tróia e a entregou a Páris?... Ora, Dina, a filha de Jacó, nas mãos de Homero, tornou-se Helena de Menelau. Páris pode ser o príncipe de Siquém que raptou Dina. Simeão e Levi estão representados por Aquiles e Agamenon em guerra para libertar Dina, a filha de Jacó, que se tornara Helena de Homero. A intertextualidade é essencial para provocar a verve do leitor. Com certeza, os cruzamentos literários enriquecem a obra. No entanto, cuidado com o Anjo Negro! Mude a denominação do anjo. Podes ser processada por segregação. Racismo. Anjo das trevas parece mais adequado.
— Conjeturas, maninho! Conjecturas. Nem sempre acordes com as minhas. Veja: Anjo das Trevas não tem o mesmo efeito literário que Anjo Negro. Efeito teológico, talvez tenha. Literário, não! Ademais, negro é cor. Não é raça. E quanto ao teu ensaio sobre obras de Homero e de Carrero, não sei se posso assinar embaixo.
— Vais escolher o efeito teológico ou literário?
— A Bíblia pode ser considerada como literatura?
Inicialmente, Robert ficou embaraçado, mas logo encontrou palavras para desenvolver seu discurso do modo mais convincente possível .
— Perguntaste-me se a Bíblia pode ser considerada literatura. Isso é polêmico. Os livros bíblicos apresentam a estrutura literária praticada na época em que foram escritos. Sob essa ótica, é literatura. Mas... se fosse literatura, não estaria comprometida com a verdade. Enfim, religião não é uma ciência, nem a Bíblia, um livro. Embora etimologicamente o seja, a Bíblia não um livro, é uma pessoa. É Deus que fala. Não te lembras daquele teu poema? Não pôde participar do Concurso de Poesias do Marista, com o título ‘Mulatinha’. Mesmo sendo uma alusão à beleza negra, o título foi assinalado como "não politicamente correto".
— O Brasil tem essas coisas. Este politicamente correto me mata. Se por um lado, peca por excesso de zelo, por outro, relega a plano inferior a própria vida. ‘Vem cá meu dengo...vem cá meu nego...’ é tratamento carinhoso com que alguém se dirige à pessoa amada. Ora, mulata já não significa mais a filha de escravo e escrava sexual do patrão. Não é isto. Mulata é delicada, tem pele morena, cheiro de cravo e canela.
Ainda no enxugamento da obra, Robert persiste em suas admoestações.
— Quantas páginas terá o livro.
— Não sei ainda com quantas páginas ficará o livro depois de pronto, contanto que sejam mais de 56 páginas, do contrário, seria um livreto.
—Tens muito fôlego. Vejo isso nas braçadas de seus parágrafos. Neste caso, transforme teu ensaio em Romance de formação. Afinal, vais escrever um conto, um romance ou uma novela?
— Livro não chega pronto e acabado como o ovo que a galinha solta na esteira de produção. Recebe-se uma luz. Às vezes a luz chega como sonho durante a vigília e o enredo vem como um delírio, uma fantasia que se tem acordado. Tudo se faz com inspiração. Nada sem transpiração.
Seria bom se pudéssemos escrever sem pontuação alguma e depois disséssemos: “Ordinário, marche!” e todos os pontos, e todas as vírgulas e interrogações tomassem seus postos. É preciso que depois do lampejo, venhamos com mãos de aleijadinho e transformemos a pedra-sabão em arte, e no final, sobra pouco do que se tinha antes.
Aquilo que parece digressão, na verdade, é momento propício para refletir. O escritor aproxima-se do leitor e propõe o debate como se lançasse uma pedra em regato louro.
— Quanto tempo vive uma pedra?
Qualquer resposta que obtiver será tomada como reflexão.
— Será que as pedras guardam o registro de tudo que aconteceu em sua vida pétrea? Se uma pedra nunca foi esmagada e sendo uma pedra dura de roer, por quanto tempo durará a existência de uma pedra? Pode uma dinamite que explode uma pedreira, por fim a vida de uma pedra? Não a transformaria em dezenas e centenas de pedras menores que continuarão, individualmente, sendo uma pedra?
— Ouço o eco da voz de Umberto refletindo sobre o que pensa uma pedra — disse Robert — queres dizer o que pensa uma pedra, ou o que pensa a crítica, sobre o que escreves? Existe pedra morta que não pode ser aproveitada na construção civil, mas existe também a pedra angular.
— E também pedra de tropeço — acrescentou Ravenala.
Robert acomodou-se na cadeira e com as mãos metidas em luvas de seda sentenciou: “Há muita patacoada cômica, e célula-dramática em teu ensaio; digo: conto, ou melhor, romance. Para melhor aproveitamento, é necessário retirar as garças negras penduradas como morcegos no travessão de João Cabral e outros pensamentos alheios utilizados para explicar, confundir ou ganhar tempo.”
Ravenala também queria usar outros recursos, como realçar em itálico, ou dizer o nome do autor, sem dizer. Ela engoliu a seco muitas aspas e caspas que a vida lhe ofereceu.
Muitos pagam pela edição de seus primeiros títulos. Raquel pagou com seus próprios recursos, Queirós também, e Coralina gastou todos os seus Vinténs de Cobre.
Ravenala não queria pagar para ser lida. Também nada pagaria a Robert pela pareceria e revisão dos textos, a não ser que uma editora de renome abraçasse a causa, publicando a obra e lhe recompensasse em dinheiro os justos e merecidos direitos autorais. Não cobraria nada dele, se ela resolvesse fazer uma produção independente da obra que escreviam juntos.
— Ao trabalho, Robert! — disse ela, depois de um intervalo de quinze minutos para o lanche.
Naquele dia, o enxugamento da obra, durou mais de quatro horas, e obteve bom rendimento.
— Estou cansada — disse Ravenala.
— Por hoje chega. Amanhã, em minha casa — concluiu Robert.
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."