O Decair da Roseira
Olhos baixos. Olhos baixos devido ao peso. O peso de toda a fumaça negativa acumulada. Sussurros aterradores dentro da cabeça, marcas queimadas sob a pele, esforço titânico para inspirar, desânimo perfurando seus ossos… Momentos pretéritos cujas retas finais roteirizam passo depois de passo. Cabresto que aceitou usar. Cabresto em seu pescoço. Acorrentado à fumaça. Forçava - o a olhar para onde merecia estar. O ardor vermelho eterno o esperava.
Via seu lugar naquele circo mirabolante. Deitado sobre o fogo líquido. Sucumbindo às mãos gélidas. As memórias esquecidas, indiferente. Calor guardado, jogado de lado. Vozes queimadas, em gritos eram veladas. Olho em vida, despedaçado em pira. Peito ferido, orelha em zumbido.
Encantado pela poesia melancólica do lado rubro do paradoxo do espírito, o Viajante sentiu uma dor em suas narinas. Uma dor tal qual o puxar de dois dedos inseridos nelas. Uma dor acompanhada por um cheiro belo. Todo o incômodo gerado era suavizado pelo perfume forte. Sentia algo puxar sua cabeça para cima, porém o peso da fumaça não o machucava. Não o quebrava. Não o retorcia.
Era estranho. Como se não pudesse mais sentir a fumaça puxando - lhe pelo pescoço. Algo a fez desaparecer.
A cabeça olhou para a frente e os olhos descobriram o que causava dor. O que exalava o cativante cheiro. O que desapareceu com sua fumaça.
Uma roseira.
A mais simples das roseiras. Simples magreza. Simples beleza. Certeza escrita nos cabelos dizia - lhe que o resto do mundo não encontraria o adjetivo belo naquela solitária flor. Escondida dentre as outras milhares. No entanto, o odor vermelho - escuro de suas pétalas a coloca sobre as demais. Perfume com tranças. Tranças unidas, materializadas em braços. Braços que o arrastavam. Arrastar do qual o viajante não reclamava. Arrastar transformado em abraço. Abraçado por caules. Caules povoados por acúleos. Acúleos que o perfuravam. Que o arranhavam. Que o perfuravam. Que o amavam. Sussurravam cantigas de amor. Poemas doces e caramelizados patinavam pelas orelhas internas. Toques temperados tocavam a mente e orquestravam os sonhos.
A roseira capturou alguém que ela pode amar e que a ama.
Pálpebras leves. Uma leve abertura. O cheiro verde da carinhosa prisão espinhosa não conteve o sono suave de seu amado. As órbitas em midríase foram bombardeadas pela luz de outro desenho vivo ao seu alcance. Tronco ereto e espesso. Galhos jogados ao vento. Folhas que silvavam de acordo com a música do vento.
Divindade tomando forma na natureza.
A curiosidade lhe atiçou o coração. Queimou seus ossos e deu - lhe ânimo. Desprendeu - se dos ramos tal qual extensões de sua pele. A dor não patinou pela pele, porém assombrou os ramos como um pálido fantasma. O grito vermelho de choro poluía cada partícula de ar existente com uma tinta vermelha de desespero e horror. A simbiose foi rasgada e apenas uma das metades aparentava estar sofrendo profundamente.
A majestosidade da palmeira o cativou. Uma obra da natureza tão bela quanto 10 mil obras feitas pelas mais delicadas e precisas mãos humanas. O toque dos deuses sobre a terra. A ponte para o paraíso celeste. O brilho angelical autêntico.
Ele se viu preso àquele olhar direcionado à ela. Um túnel para uma única saída. Um cabresto do qual não reclamaria. Hipnose intensa.
O resto do mundo se desfazia em cera… E o dela tomava forma.
A vontade de sentir o perfume dela o atiçava. A essência por debaixo da casca. Alma sob corpo. Era tudo que almejava naquele momento, mas a palmeira não respondia este almejo. Selada o próprio silêncio, negava - se a atender o desejo dele. Quebrava os eixos de suas esperanças e enterrava suas suposições e pressentimentos. Mantinha - se preservada.
Ele não compreendia tal posicionamento. Encontrava - se sedento pelas verdadeiras cores da palmeira. Caminhava pelos dias e noites com várias artimanhas para cativá - la, passeando entre os poemas escritos com cada parte de seu coração e por cânticos assinados pelo amor consolidado e lapidado. Porém nada foi nobre o suficiente para matar a sua sede. Sede essa que o obrigou a cortar sua pele e doar sua vitalidade. Vísceras, nutrientes, emoções, sentimentos e sonhos eram jogados sobre ela como moedas de ouro. Apostava sua vida para, enfim, conhecê - la.
E ele conheceu… A podridão que habita o seu ser.
Um cheiro amargo e malcheiroso. Odor moldado em pântanos vis e asquerosos. Odor exalado somente pelas mentes vermelho - escuro. Fedor construídos pelos arquitetos da discórdia e semeadores do sofrimento. Cor fúnebre pincelada pelo ceifador.
Não era aquilo que ele queria. Sentia - se sujo, maltratado, surrado, isolado. Precisava de amor. De paz. Alguém que lhe desse paz. Foi nesse instante que a lembrança do perfume da roseira capturou as suas narinas feito um anzol. Ele se deixou ser puxado e caminhou pelo oceano de terra até o recanto da bela roseira. Lembrança abstrata. Abstração tomando forma. Forma decrépita. Forma antes bem cheirosa, agora intragável.
E ele a viu… caída… enegrecida… apodrecida… decaída… muda… morta.
O arrependimento. A culpa. A raiva. A angústia. A tristeza. Todos eles o perfuravam e dilaceravam as suas vísceras. Dor agoniante e merecedora. Lágrimas longas, geladas e intermináveis caíam sobre seu antes bonito caule. Pedidos velados para que pudesse voltar no tempo e reverter tudo aquilo. Gotas salgadas demais para trazê - la de volta à vida.