Vidas separadas

Ao subir a escadaria do colégio antes das aulas, naquela manhã de fevereiro de 1961, Nada avistou suas amigas Fatima e Karima conversando sobre o último pronunciamento do presidente Nasser.

- Eu não sabia que vocês se interessavam por política - ironizou Nada, sentando-se entre as outras duas adolescentes.

- Karima está preocupada com os sírios - atalhou Fatima, lançando um olhar malicioso para a interpelada. - Ou, mais exatamente, com um sírio: Farhat.

Farhat era um tenente sírio do exército da República Árabe Unida, atualmente servindo no Cairo. Ele e Karima haviam se conhecido numa festa em homenagem ao avô da jovem, que havia sido embaixador do Egito em Damasco. Não se podia ainda dizer que ambos tinham um relacionamento, pois dificilmente os pais de Karima concordariam que ela namorasse um oficial júnior, ainda mais estrangeiro, mesmo que agora todos os nativos da RAU fossem denominados "árabes".

- E o que o presidente Nasser disse que a fez temer pelo futuro? - Indagou Nada.

- Da última vez em que pude conversar com Farhat, - explicou Karima, tensa - contou que talvez tivesse que voltar para Alepo caso a pressão do presidente sobre a Síria aumentasse. Farhat deu a entender que os sírios estão insatisfeitos com a unificação.

- Mas não somos todos árabes, agora? - Ponderou Nada. - Estas divisões deveriam ter desaparecido!

- Somos todos árabes, mas é o nosso presidente quem manda - retrucou Fatima. - E se Farhat voltar para sua cidade natal, pode significar um rompimento entre Síria e Egito. Essa é a preocupação de Karima.

Karima entrelaçou os dedos e abraçou os joelhos.

- Não sei como vou viver sem Farhat - murmurou ela.

- Do mesmo modo como vivia antes de conhecê-lo, sua boba - atalhou Fatima. - Farhat foi o primeiro homem que conheceu, não significa dizer que será o último.

- Dispenso todos os demais - declarou Karima. - Até porque, se depender dos meus pais, me arrumam um casamento com algum diplomata gordo ou empresário com bons contatos no governo.

- Mas é assim que nossos parentes nos vêem, minha cara, - redarguiu secamente Fatima - como possível moeda de troca em alianças de poder. É por isso que não pretendo me casar, nunca.

- E o que você vai fazer da sua vida, sem um marido? - Questionou Nada, estupefata.

- A Constituição de 1956 não nos deu o direito de votarmos e sermos votadas? Pois então; talvez tenha chegado o momento de vocês terem uma colega política - arguiu Fatima com um sorriso maroto.

E cutucando Karima:

- E você, pelo visto, vai ter que decidir de qual lado seu coração está; antes que Síria e Egito resolvam seguir por caminhos diferentes...

- [19-02-2019]