O Desejo de Voar
Eu não esperava ser o tipo de noivo que é deixado em pleno altar. Mas lá estava eu, ao lado do pastor e diante de uma multidão impaciente a espera que, por algum milagre, ela viesse. Passara-se mais de trinta minutos e nada. Via alguns saindo dissimuladamente enquanto os cochichos ficavam mais altos. Talvez ela não venha mesmo, pensava eu. Mas se assim for, não me terei arrependido de viver tudo o que com ela vivi. Meu nome é Felipe e esta é a minha história. Tudo começou como começa qualquer romance - com um olhar. Foi há dois anos atrás; eu tinha 23 anos e corria atrás de um sonho antigo: estudar letras na Universidade de Coimbra. Sem dinheiro, sem nada. Só um sonho idiota - tinha até concorrido pra tal na embaixada mas, isso é outra história. Ironicamente, tinha de ser em um casamento que nos veríamos pela primeira vez. Carla, minha grande amiga, decidiu finalmente casar-se com o idiota do Luís embora eu a aconselhasse o contrário. E lá estava eu, todo engomadinho em uma mesa de amigos a lembrarmos debaixo de gargalhadas, alguns momentos bons da vida. Segurava na mão esquerda uma rosa vermelha - que era pra ofertar à noiva - e na direita uma taça de champanhe servida ao meio. Na mesa a seguir estava ela, ao que me pareceu, rodeada de familiares. Estávamos em posição frontal. Eu olhava e ela desviava o olhar. Enquanto eu girava a rosa com os dedos pensando em como me aproximar dela, Gilson, um amigo, arrancou-me do banco e me levou a saudar o infeliz do noivo. Quando voltei, achei a mesa ao lado vazia. Ela sumiu sem deixar rasto no meio daquela multidão. Não contei a ninguém. Decidi guardar aquilo comigo embora me consumisse por dentro. Passou-se quase uma semana e eu ainda lembrava aquele rosto meigo e o buscava na face de outras mulheres. Até que certa vez, estando eu em um táxi que fazia Arco-íris, eu a vi no meio de algumas jovens vestidas de branco a entrar no mosteiro. Só podia ser ela. Mas porquê vestir-se daquele jeito? Pra quê entrar naquele lugar? Não queria acreditar na possibilidade de ela ser madre. Àquela altura, já jovem, nunca havia entrado ainda em um templo católico. Não sei se por não crer na religião ou por crescer em um meio protestante. Lembro ouvir meu avô dizer que eram todos uns idólatras! Naquela semana eu veria por mim mesmo. Acordei muito cedo no domingo. Tirei a antiga Bíblia do avô, me vesti e "missa cá vamos nós"! Fui um dos primeiros a chegar. Resolvi sentar-me a frente, acredite, só pra ver o padre de perto. A missa estava a ser sem surpresas. Aquele canto lírico (eles chamaram gregoriano) é uma boa música pra embalar. Depois veio o padre dando alguns ensinos de ética com notável eloquência. Ela estava entre as mulheres que cantavam no altar e, por segundos, nossos olhares se encontraram. Pude vê-la perdendo a pose e admirar-se ao me ver outra vez, ou talvez, foi só coisa da minha cabeça, não sei. Após terminar a missa, tendo todos saído da paróquia e alguns até já ido embora, eu a vi com as madres a dirigir-se atrás do edifício. Não pensei duas vezes. Corri ao encontro dela, puxei-lhe pela mão em um canto e finalmente ouvi-a falar. - O que você quer comigo? - Disse em voz baixa, mas com firmeza. Olhando por todos os lados. - Nem vais-me saudar ou posso entender isso como uma saudação? - Eu disse olhando em seus olhos castanhos de mel. E ao ver, eu disse: - Tu és linda. Como uma mulher como você escolheu ser madre? - Ainda não sou uma... Solte a minha mão, se a Irmã Andreia ver isto eu posso ser expulsa. - Falou ela quase gritando. Mas eu não a soltei. - Tudo bem. - Falei com calma - eu solto se tu me disseres o teu nome e me prometeres que nos vemos outra vez. - Me deixe em paz! - Disse aquela voz doce. E eu meneei a cabeça pra ela. - Chamo-me Johana - ao dizer o nome, soltou-se de mim. E enquanto se afastava, de costas pra onde ia, acrescentou: - E Deus te ajude a me ver outra vez. - Eu a vi sorrir quando dizia isto e devolvi o sorriso sem que ela visse. Nas semanas que se seguiram, eu trabalhei em um plano para entrar no convento. E após ter pago bebidas ao segurança, tudo pareceu mais fácil. Por uma garrafa de vinho ou até por dinheiro, os bilhetes entravam e saiam do mosteiro sem que ninguém notasse. Era uma loucura. Daquelas que se perde conscientemente. Eram 22:44hs quando o segurança fez o sinal pra que eu entrasse. Pulei o muro devagar, fui directo pra janela do dormitório dela e imitei perfeitamente o uivo de um cão. Em menos de dois minutos ela saiu naquele vestido de noite branco. Na verdade quase tudo lá era branco, a começar das paredes do edifício, até a madre superiora, a Irmã Andreia. Resolvemos ficar no teto da varanda. A intenção era ver as estrelas deitados enquanto falávamos, mas não tinha estrelas no céu naquela noite. Então olhamos o nada. E o nada era tão romântico quanto o universo estrelado. - Sabe como eu me sinto? - Perguntei sem olhar pra ela. - Não - respondeu suave. - Me sinto um padre - ela deu-me um cutucam e sorriu. - Mas me diz Johana - continuei, - como é ser madre aos 19? - Eu não sou madre, estou a ser preparada pra sê-lo, é diferente! - ela disse. - Então, - eu insistia - é isto mesmo que queres? Ser madre?- Ela gaguejou, tropeçou nas palavras e nada disse.
Não demorou e o segurança deu-me o sinal pra sair. Era hora da ronda. Nos despedimos, porém não deixamos de nos ver. As trocas comerciais entre mim e o segurança eram de grande relevo. E o país estava bom! Nos falávamos todas as semanas. E eu pude segurar outra vez aquela mão, mas desta vez, com o seu consentimento demostrado em um sorriso. Ela parecia incerta quanto ao que queria e tudo o que eu fazia era colocar dúvidas em sua cabeça. - Pra ti, o que é o amor? - Perguntou ela numa dessas noites. - O amor é uma ave. - Respondi sem pensar. Mas quis salvar rápido. - Uma ave que quer voar livre mas está engaiolada, presa nas diferenças. - E quem deve abrir a gaiola? - Os dois. Se quiserem a felicidade, devem solta-lo por dentro deixar que voe ao encontro dela. - Dela? - A felicidade. Achei que era o momento certo para a apresentar a turma. A mãe do Gilson tinha um bar e deixava a malta fechar mais cedo às quintas pra termos um encontro particular. Eram piadas, poesia e filosofia de aprendiz regada de bebidas até dizer chega. Eles se admiram quando entrei. Achei até o clima tenso, mas aí entrou Johana se escondendo nas minhas costas e ouvi aplausos e assobios. - Como vocês tão, seus malucos? - Gritei antes de abraçar todo mundo. Não gostei de ver o Luís na nossa roda mas, como todos, tinha de aceitar sua presença pelo bem de Carla. Nas semanas seguintes participamos mais do encontro no bar. Ela me disse que tinha gostado de tudo, especialmente de minha poesia, o que eu sabia que era mentira, pois nem meus amigos gostavam. Mas ela gostou mesmo, e até fugiu umas tantas vezes pra lá estar. Foi lá que Johana provou sua primeira cerveja - provou mesmo porque acabou por cuspir tudo na cara do Luís o que, devo dizer, foi engraçado pra caramba. Passou-se um mês e quase nada mudou senão o nosso amor que tornou-se mais forte e visível entre nós. Tão visível que a Irmã Andreia, desconfiada de Johana, mandou que uma de suas companheiras de quarto a vigiasse. Ela descobriu tudo. Não só os encontros no mosteiro, mas também os encontros no bar, as conversas no confessório, os passeios no parque... tudo! Pra casos do género a punição preestabelecida é a expulsão e possível excomunhão do membro, o que para nós seria uma bênção. Mas a Irmã Andreia resolveu fazer tudo à sua moda. Primeiro despediu o segurança. Depois encheu de ameaças a miúda, mandou que seus pais viessem com urgência, acrescentou detalhes no relatório que escreveu. E, por fim, enviou-me um bilhete dizendo que estava a ser clemente comigo mas eu iria preso se tentasse me aproximar daquele convento de novo. Os dias que se seguiram foram terríveis. Eu convivia com a dor de nada saber dela, culpava-me por ama-la desenfreadamente, mergulhava na saudade tentando inutilmente trazer sua face diante dos meus olhos. O desejo de voar e a sensação de estar aprisionado. Naqueles dias eu consultei meu e-mail e não acreditei no que li. Tinha ganho minha bolsa pra Coimbra. Eu pensava que quando acontecesse pularia de alegria mas nada disso. Sem ela pouco importava. Eu ia chorar naquele instante mas tentei uma oração pela primeira vez em minha vida. Não mudou nada de repente em minha vida, o período negro ainda ia durar. Demorou até o dia em que ela veio a minha casa a mando da "rainha má" de nossa história pra me informar com toda a frieza que ela ganhou (não sei como) uma viajem para o Vaticano - seu maior sonho - não sabia se voltava. Disse ainda que era o melhor pra ela a própria Irmã Andreia debateu o assunto com seus pais que concordaram na hora. Disse tudo a esconder os olhos. Falava olhando pra baixo. E entre muito blá, blá, blá, eu resolvi perguntar: - E o que você acha? Eles chegaram a perguntar o que você acha? - aí, eu vi uma lágrima molhar o chão. Ela abraçou-me enquanto chorava e..., bem, eu gostaria de dizer que não chorei mas... vamos pular essa parte. Então, juntos corremos para o aeroporto ao encontro dos pais dela que estariam de regresso a Benguela. Eles nos viram entrar às pressas de mãos dadas e bem mais perto, puderam notar as ainda recentes marcas de lágrimas pintando as nossas faces. Como pode imaginar, não foram precisas muitas palavras para explicar o nosso amor. E o mais incrível: não houve resistência da parte deles. Apenas deixaram-nos alguns conselhos inúteis e foram-se depois de nos abençoar. Não perdemos tempo. Marcamos o casamento justamente na data em que ela teria que viajar a Roma. Queríamos dar uma lição à Irmã Andreia que nada sabia de tudo que nós, mais os pais de Johana concordáramos. Mas um dia antes do nosso casamento, ela voltou a usar as suas fontes e ao descobrir nossos planos, resolveu encarcera-la num dos quartos do mosteiro para no dia seguinte leva-la a força a viajar. Era uma loucura. E pior, eu nada sabia. No dia seguinte e a hora marcada, eu estava no local combinado - no altar, ao lado do pastor, a espera que Carla e outras amigas trouxessem minha noiva. Todavia ela não aparecia desde manhã, mas ninguém teve a ousadia de me contar. E sim, eu estava lá a ver o tempo passar e esperando expectante que surgisse alguém na porta do templo. Vivera grandes momentos ao seu lado, dos quais era profundasinceramente grato, porém nada se comparava àquele instante, eu tinha a certeza. Foi quando eu caía desamparado que a esperança me segurou pela mão. Eu a vi entrar pela porta. Não estava de branco como nos seus sonhos. Por alguma razão teve que usar o vestido azul da Carla e, pra ser sincero, estava perfeita nele. Com os pés descalços e segurando o vestido para não arrastar-se ao chão, ela subiu os degraus do templo, parou na entrada, olhou para os dois lados daquela igreja semicheia e depois marchou firme em direcção ao altar sem tirar os olhos de mim. Lembro perfeitamente o que disse quando me abraçou. - Deixe nossa ave voar. Eu e você somos as duas asas desse amor. Não posso afirmar que fomos felizes para sempre. Porque o sempre ainda estamos por achar. Mas com certeza nós fomos felizes, felizes até aqui.
FIM