De olhos fechados - Parte I

 
Júlia fez o check - in no hotel. Deixou as malas no quarto e saiu rapidamente. Precisava encontra  um lugar aberto para comer. Não conseguiu relaxar durante o voo, pois o passageiro ao lado parecia ter bebido todas antes de embarcar. Levantou várias vezes para ir ao banheiro, depois, dormiu que roncou! Enquanto seu pescoço insistia em invadir o espaço de Júlia, não a deixando dormir.

Já passava das dez horas da noite. Ela, por precaução, pediu informações ao recepcionista, que lhe indicou a rua ao lado, por ser bastante movimentada e não oferecer grandes perigos. Alertou, porém, que não levasse objetos de valor, por segurança.

Pensou em desistir, mas, além da fome, estava em São Paulo - a cidade que nunca dorme, o coração do país.  Tinha acabado de chegar de Salvador para um curso de uma semana. Caminhou rapidamente pela rua com a cabeça baixa sob um capuz, pois caia um pouco de garoa, bem fraquinha.

Saiu pela Rua Ipiranga e quando foi cruzar a esquina, bateu a cabeça no poste de uma placa de rua. Sorriu de si mesma!

Um homem que passava no local se ofereceu para ajudá-la.

- Tudo bem, moça?

- Sim. Estou bem. Obrigada por perguntar, mas isso acontece comigo o tempo todo. Já estou acostumada, sou desastrada!
- Sério? Eu também não sou muito jeitoso.
 - Bem - vindo ao time. É bom saber que existem outros desastrados! Você é de onde?  Perguntou  Júlia.
- Ah, sou de Brasília.  E você?
- Salvador na Bahia. Olha, se não se importa, é quase meia noite e preciso comer alguma coisa, antes que fechem as portas.  Disse Júlia, ainda passando a mão na cabeça.
- Moça, se acalme! Está em São Paulo, de fome você não morre.

Ela olhou  a placa e disse:
  -  Puxa! Você viu essa placa?
- Sim. Vi. Parece que você que não viu, pois bateu a cabeça nela. Disse o desconhecido fazendo gesto de riso.
-  kkkkk Não é isso! Disse ela, sorrindo também.
- Por favor, não me apresentei: sou Ricardo.
- Sou Júlia.
- Veja!  Disse Júlia apontando a placa. Está escrito: Ipiranga com Avenida São João. Isso é histórico. Tem um significado muito grande para mim. Cresci ouvindo músicas que falavam desse lugar. Sempre quis conhecer.
 
- Deve ser um sinal bater a cabeça numa placa dessas.  Continuou ela.

- É, deve ser!  Disse Ricardo com ar de sarcasmo. -  Você está bem? Pode ser um sinal que você precisa de um médico ou de óculos.
- Não preciso de médico, preciso de um chope. Quer me acompanhar? Mas, não estou te convidando.  Entenda!
- Como assim? Você me convida para um chope e depois diz que não está me convidando? Você é bipolar, por acaso?
- Não é isso. Nos livros de etiqueta dizem que quem convida paga e não posso pagar nada além do meu.
- kkkk Puxa! Você não existe!
- Sabe... Eu estava cansado, pensando em pedir um prato no hotel. Mas, depois resolvi sair para tomar um ar fresco. E, vim aqui porque também gosto desta rua. Não a ponto de bater a cabeça na placa, rs!  Conhece esse bar? Já viu os quadros que têm dentro dele?  É histórico também. Bar Brahma, foi fundado em 1948, era frequentado por grandes nomes como Jânio Quadros. É um cruzamento histórico. Somos parte da história agora. Mas, com certeza, você deve se lembra dessas ruas por causa da música do Caetano. 

-  Sim e não. Eu gosto da música, embora nunca tenha vindo aqui antes, conheço quase tudo sobre essa rua pelo olhar do meu pai. Ele trabalhou em são Paulo quando eu era criança. Foi  num período difícil para minha família e ele resolveu tentar a sorte por aqui. Então, o significado é muito maior para mim, pois vai além da música.
 
E continuou a falar:
-  Muito antes da música de Caetano, a esquina da Ipiranga com a São João já era famosa e cantada por Vanzolini porque representava o encontro de dois universos complementares, a "Boca do Luxo" e a "Boca do Lixo", perímetros onde ficavam respectivamente os mais badalados bares e boates de Sampa, frequentados por artistas, intelectuais, políticos, e toda fauna boêmia paulistana, além da escória mais descolada que defendia algum na "Boca do Lixo" e a própria, zona dos cinemas, do meretrício e dos muquifos que abrigavam todo tipos de bandidos da ralé da época.  Em termos de arquitetura é  algo fascinante, mas falo disso depois, estou com fome.
 
- Pois vamos entrar. Disse Ricardo. - Mas, lembre- se: não estou te convidando, portanto, não pagarei a conta, rs.
 
- Cada rua de São Paulo carrega um pouco da história desse país.  Assim como sua terra, que tem no pelourinho uma parte triste da história do Brasil, e que vocês conseguiram transformar em algo bom, na identidade de um povo. Hoje, ostentam com orgulho a superação de um sistema opressor. Complementou Ricardo, explicando o assunto já começado.
 
 Nesse momento o garçom se aproximou.

Ela pediu um chope e uma poção de frango a passarinho  com fritas.  Ele, um suco e uma salada com torradas.

 
- Você não bebe?
- Sim. Bebo socialmente, mas hoje não estou afim.  Disse Ricardo.
- Humm.  Socialmente é mentira de Facebook. Ninguém coloca bebo regularmente no perfil. Mesmo quem é cachaceiro fino!
- Realmente, bebo pouco!  Insistiu Ricardo.
  - O que você faz além de não beber e comer comida saudável?
- Eu sou médico. Estou participando de um seminário sobre Saúde.
- Legal.
- E você? O que faz?
- Sou  arquiteta.  Vim fazer um curso rápido. Uma semana apenas.
- Estou no hotel aqui ao lado.
- Eu também estou aqui ao lado.
 - Você é casado? Tem Filhos? Tem cara de casado, mas não usa aliança.
- Sou, mas estou em processo de separação.
- Foi um erro meu casamento. Completou Ele.
Ricardo  imediatamente arrependeu - se do que disse. Não costumava falar de sua vida privada com ninguém, muito menos com uma estranha. Mas, por algum motivo inexplicável, conversava com aquela mulher ali a sua frente como se fosse uma amiga de longa data.
- Hummm. Acho que conheço essa história. Já sei o que vai me dizer depois: que não a ama mais, que não há diálogo entre vocês, que o sexo é escasso, que são diferentes, que fica por causa dos filhos... e blá -blá- blá.
 
-kkkk. Você não existe! Mas, a história é essa mesmo.

- Nem terminei. Posso dizer tudo que iria me dizer sem precisar de bola de cristal. Digo mais, provavelmente, ela engravidou e você se viu obrigado a casar, ou, namoravam desde a infância e as famílias eram vizinhas e blá - blá - blá.
 
- hummm.  Você ainda não me falou de você.  Questionou, Ricardo.
- Você não vai querer saber da minha vida. É sem graça! Mais do mesmo, uma história com a mesma canção repetida.
- Tenho certeza que vou querer saber, Júlia.  Gosto muito do seu nome.
- Foi minha mãe que escolheu. Ela era apaixonada por uma coleção de livros chamada Júlia, Bianca e Sabrina – romance piegas. Era uma série bem açucarada.

- Hummm. Então sua mãe é romântica! Você também é?
- Era sim. Já morreu. Eu não sou. Não acredito em  finais felizes como nos livros.
- Puxa! Está sendo pessimista. Claro que existem casais felizes.  
 
 - Diga um que se conheceram e foram felizes para sempre? Inquiriu Júlia.
- Gisele Bundchen e o marido parecem felizes. Afirmou Ricardo.
- Sei não! Dizem que ela o pegou com a babá. Dizem...
- Sério?  Não sabia. Ela é tão bonita!
- Pois é. Para você vê que um homem com uma mulher tão bonita fez o que fez.  Alguém disse essa frase, não sei quem foi: "mostre-me uma mulher bonita e te mostro o homem enjoado de transar com ela”.
 
- Você continua sendo pessimista! Disse Ricardo, admirado de como a conversa fluía levemente e da espontaneidade de Júlia nos mais variados assuntos.

- Que tal então, Charles e Camila? Eles parecem felizes.  Disse Ricardo com expressão de  "Eureca!”.

- Ah, esses não valem. Esperaram tanto que, atualmente, acho que ele não serve mais nem para ser o Tampax dela. Será que eles ainda têm aquele fogo da época das gravações do tampax?
 
- Olhe para a mesa ao lado! Interrompeu Júlia abruptamente.  Aquele cara parece o Rick Martin.

-  Não. Acho que  não deve ser ele, mas parece mesmo. O Bar Brahma já foi bem frequentado, mas não creio que ele viesse aqui.  Disse Ricardo.
- Uma pena! Se fosse acho que pediria um autógrafo. Completou Júlia.
- Ele é gay, não?
- Sim.  Foi meu ídolo na adolescência. Eu proporia a ele ser gay de acordo com a lua. Somente na lua cheia, por exemplo - o quilo de homem tá caro! - Disse ela sorrindo!
- Ricardo sorriu com a desenvoltura de Júlia ao falar de assuntos íntimos com muita naturalidade.

- Acho que você está me enrolando para não me falar o que esconde essa moça  de olhar  instigante.

  Nesse momento o garçom trouxe a comida.



* Eureca: Descoberta.
* A música de Caetano Veloso chama -se  Sampa.