A MENINA

Um dia a menina cresceu. Aquela bebezinha linda, de olhos de cristal, verdes como o mar e cabelinho cacheado, se fizera adolescente, mocinha e mulher, andando sempre por ali, como se estivesse em sua própria casa... Não desgrudava. Ela sabia muito bem o quanto era amada por aquela senhora, quietinha, sentada no seu cantinho do sofá, olhando fixamente para a televisão, dizendo, de vez em quando, coisas sem nexo.

Sua avó, outrora uma mulher exuberante, atraente, bonita, e comunicativa, muito ágil e hábil com as palavras, que se exercitava e se interessava por todos os assuntos possíveis e estava familiarizada com o uso do computador e de seu iphone, pouco a pouco foi imergindo em vácuos de memória, cada vez mais frequentes. A menina ainda conseguia enxergar em sua avó aquela mulher independente, a quem tanto era apegada e que tanto admirava, antes que seus longos e louros cabelos que ela gostava de pentear tivessem se tornado branquinhos, recolhidos, agora, em um coque formal. Estava tão diferente, tão distante do que tinha sido... Ah doença maldita, esse tal de Alzheimer! Pouco a pouco levava sua avó, roubando-a da vida e dela. No pulso, a avó ostentava sua tatuagem transgressora: um ponto de interrogação que ela desenhara em si mesma e na menina, quando ainda tinha apenas dois anos, como se num ensaio para o que se tornaria perene para ambas... Ela sorria e dizia para a netinha: “Que nem, que nem”. Ainda podia ver mentalmente aquele sorriso contagiante...

Antes, porém de mergulhar no vazio, a velha senhora confiara à menina a chave de uma gaveta que ela a fizera prometer abrir apenas quando tivesse vinte e um anos. Tão logo este dia chegou, ela o fez, finalmente, e lá só encontrou um pen drive que, prontamente inseriu em seu lap top. À medida que lia os arquivos, ia ficando cada vez mais surpresa com os mais de mil poemas e contos ali guardados por tanto tempo... Assombrou-se com o que nunca havia imaginado que sairia daquela cabecinha branca... Emocionou-se muito com as poesias que falavam de solidão, tristeza, loucura e tempo, surpreendeu-se com as que derramavam filosofias de vida, reflexões e questões políticas e enterneceu-se com as poesias de amor dedicadas aos filhos e a ela. Entretanto, o que mais chamou-lhe a atenção foram os textos sensuais, eróticos e picantes, e os poemas dedicados a “musos” que não tinham sido poucos, ao que parecia. Naquele dia, não dormiu, fascinada por tantas novidades... ficou ligada nos textos, maravilhando-se com a leitura, enquanto a avó se recolhera, sob os cuidados da antiga empregada que dela se ocupava. Deu-se conta, então, que não enterraria tudo aquilo quando a avó partisse e pôs-se a organizar os poemas e contos de acordo com os assuntos e os publicou em livros de não muitas páginas, para que ficassem mais palatáveis e acessíveis aos amantes das letras. Enfim, pensou, sua avó teria o que arquivara no pen drive publicado em livros e, talvez até ficasse famosa, nem que fosse em outra vida. Fez tudo com muita dedicação e amor, como uma homenagem e um tributo àquela a quem amava tanto e que tanto a amou.

Anos depois, apesar da total falta de consciência do que se passava a sua volta, devido ao avanço da doença, os livros da avó foram lançados no mercado e estavam vendendo bem. A menina havia organizado eventos para o lançamento das obras, onde fazia breve relato sobre a autora e autografava os livros no lugar dela, tendo sempre atrás de si, um pôster da velha senhora, com uma foto dela nos áureos tempos... linda e sensual, no auge dos seus cinquenta anos.

Apesar da doença e do quase total esquecimento em que mergulhou, a velha senhora nunca se esqueceu da menina que a havia resgatado de uma profunda depressão. Ela tinha dado sentido a sua vida, desde quando ainda estava no ventre de sua mãe, filha da escritora esquecida. A menina a ajudou a enfrentar seus fantasmas depois que nasceu e a ela foi confiada, durante as horas em que sua filha trabalhava, livrando-a da depressão em que tinha mergulhado quando ficara viúva. Era-lhe imensamente grata.

Antes de partir deste mundo, tendo sua mão entre as mãos de sua menina querida, a última palavra que a velha dama pronunciou foi seu nome: Leticia.

Luna Mia
Enviado por Luna Mia em 07/01/2019
Reeditado em 22/01/2019
Código do texto: T6544821
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