Um grito de silêncio
 
 
Anna olhou pela última vez para aquele que foi o homem com vivera grande parte da sua vida. Terminava ali, com aquele corpo sendo enterrado, mais uma história de amor. Não a dos contos de fadas, do “felizes para sempre”, mas uma história real, com seres imperfeitos, tentando acertar num mundo de indagações, carregando cada um dentro de si uma multidão de si mesmos.
 
Foi amor à primeira vista e cheio de encantamentos iniciais. Ela amou-o intensamente. Sem explicação alguma fez dele sua razão de viver. Fez-se suporte emocional para suas conquistas, foi sua base nos medos e fracassos. Anulou-se para que ele vencesse, pois achava que amor é doação total, sem esperar nada em troca.

Assim, parecia-lhe natural o que fazia; matou as chamas de vida e insatisfação que, vez ou outra, insistia em querer explodir. Quando ele estava no fundo do poço foi a escada para sua escalada, mas era vista apenas como um entrave e nada mais.


Contentou-se com migalhas de riso. Não teve um companheiro, e sim, um colega de quarto. Aceitou a vida que ele lhe ofertou, recebeu o amor a conta gotas.

Tendo- a como suporte, ele cresceu e venceu profissionalmente. Ela tinha orgulho de suas conquistas e sentia como se fossem de ambos, mas ele não. Via como mérito exclusivamente seu. Ao longo do tempo, o fosso foi se alargando, ficaram cada vez mais distantes. O diálogo - base de qualquer relacionamento-, já não fluía, pois os mundos eram diferentes,  tornaram-se estranhos presentes.

Socialmente era um homem brilhante, pai de família, homem honrado, admirado pelos amigos e amigas, muitas “amigas”.  Agora que a morte o levou,  Anna sentia o peso dos anos que lhe dedicara. De suporte, tinha se tornado “capacho”. E,  apesar da total dedicação, tornou-se grilhão, e por último, um  “nada”.

De repente, percebeu que aquele homem ali era um estranho. Sentia-se uma intrusa em sua vida. Achava que era especial para ele, mas era apenas mais uma pessoa em sua vida, seu centro gravitacional era outro. Era a mulher socialmente recomendada dentro das regras estabelecidas, mas seu verdadeiro “eu”  vivia num universo paralelo.

À medida que o véu da ignorância caia, percebia que representava para ele e seu ciclo de amigos íntimos: o grilhão, a prisão sem grades representada pelo casamento.  As pessoas com quem ele realmente foi ele mesmo, viam-na como a “algemas de dedos” com a qual ele tinha que  conviver por não conseguir escapar. 

Achavam- na insuportável, vista pelo olhar de quem não a amava mais. Ambos viveram numa prisão, cada um a seu modo. Perguntava-se  como fez isso a si mesma e a ambos. Se o libertasse teria se libertado também.


Somente agora, soube que ele era visto como o pobre homem que em nome da família era obrigado a conviver com uma “louca”. Anna sabia que tinha sido inteira naquela relação, dando o próprio couro para preparar a omelete, enquanto ele, sequer disponibilizou os ovos.  Viveu uma “pseudo-vida”.
 
Teria sido diferente se eles tivessem desistido? Por que não viu tudo isso antes, ou viu e não quis aceitar? O medo do fracasso foi maior que o amor próprio. Em algum momento o amor foi verdadeiro, mas fugiu diante da insustentável ambivalência humana. 
 
Talvez nunca o tenha amado, pois como é possível um amor tão subjugado? Finalmente entendia que quem não se ama não pode amar o outro; amar é algo livre, é sentimento. Talvez tenha amado a ideia de amá-lo e, por medo, tenha deixado o amor escapar. Mas como doía aquela perda, era como se parte de si mesma tivesse se desencarnado.
 
Havia tantos “talvez” em sua mente. Se tivesse sido ela mesma, lutado por seus sonhos, talvez, tivesse sido a “amada do seu coração” e não sua prisão, pois como amar alguém que se submete a ser suporte, capacho, grilhão ou mesmo louca ao ponto de ser nada? Não poderia realmente ter sido amada, pois sequer era vista como alguém. Mil pensamentos ocupavam sua mente.
 
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Anna olhou a porta entreaberta, as malas estavam prontas. Precisava ir. Havia vida lá fora! Mas, primeiro, deveria ir ao encontro de uma pessoa: ela mesma, se reconhecer e se valorizar, percorrer as esquinas da vida e se achar em alguma delas. Olhar para o passado para tirar dele as lições necessárias, mas mirar para o presente onde a vida pulsa...

Ligou o carro e saiu.

Tocava uma música suave  de Chico Buarque:

Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.”



 
Dedicado a  A. F.
 
 
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