Na escada

Às 16h daquele domingo, ouvi os chinelos estalarem um som mudo. Era ele descendo as escadas para me receber. Abriu o cadeado do portão e me empurrou pra rua. Eu pedi pra entrar. E entrei. Caminhei em direção ao quarto degrau da escada e esperei ele me seguir logo em seguida. Ele veio, eu bloqueei à sua subida, e ele estacionou no terceiro degrau. Ficamos na mesma altura. Olhos fixos. Não estava visível em nossas retinas o porquê daquele retorno inesperado após tudo terminado. Eu não sentia mais amor por ele. Mas às vezes o amor tem um sentido vago, uma suspensão, um erro estranho invade o corpo, e a ciência cósmica nos reaproxima e fundamos o mundo novo. Renascemos outra vez. As nuvens ao lado de fora descortinavam o Sol. Um bando de pássaros sobrevoavam o telhado de pedras. Um cortejo fúnebre passou em frente à casa e logo após surgia na esquina da rua um bloco de almas fantasiadas. Era carnaval em Amargosa. Tínhamos combinado, na noite anterior, realizar algumas filmagens, para uma propaganda de óculos escuros, na Galeria Modelo. Terminou o beijo. Pulei um degrau, e retornamos ao portão. Ligeiramente fomos pra rua, o bloco já passava bem lá adiante e como duas crianças que retornam à infância: sorrimos juntos, dessa vez, disfarçando um olhar mais terno e silencioso. As palavras foram esgotadas, e decidi silenciar também. Na rua estreita cheia de casas com portas antigas; amarelas e azuis, eu dancei a marchinha do " Haja Amor"; e ele imitou meus passos vagarosamente, enquanto uma senhora bêbada, de vestido branco no final da rua, correndo com as pernas bambas para alcançar o bloco, aproximou-se de nós e jogou uma mão de confetes sobre nossas cabeças..

Ricardo Neto de Oliveira Mota
Enviado por Ricardo Neto de Oliveira Mota em 16/12/2018
Código do texto: T6528763
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.