Uma de Natal
Esta é só mais uma destas histórias que se contam perto do Natal. Tal como as outras, buscam cavoucar dentro da gente aquele espírito natalino. Fala de uma família pobre onde a mãe cuidava sozinha de três filhos, depois que o marido partiu para a capital, atrás de emprego há seis anos e nunca mais apareceu.
A mãe buscava abrilhantar a data do Natal para seus 3 filhos: dois meninos, Rivaldo com 11 anos e Raimundo com 8 e uma menina, Rosária com 7 anos. Perto do natal sempre montavam o pinheirinho ou algo parecido já que na verdade era um galho de uma árvore qualquer que era enfeitado por bolinhas cintilantes de várias cores. Nesta época a mãe comprava um pouco de algodão e espalhava pelo pinheirinho simulando uma neve, bom, não sejamos assim como ela (eu digo a neve) precipitados, pois ela poderia ser, qualquer coisa até mesmo digamos assim, uma neve extraterrestre por suas formas estranhas que, com muita boa vontade, poderiam remeter a flocos de neve diretamente do Pólo Norte – o mais fácil era imaginar uma árvore machucada, cheia de curativos.
Sempre no mesmo lugar da sala, um canto para onde era puxada a mesinha de centro, era montado um presépio, onde personagens de gesso de conjuntos diferentes procuravam contar uma história antiga, com carneiros que eram maiores do que uma vaca, e com uma Nossa Senhora ajoelhada sendo maior do que São José de pé. Eles eram dispostos, um de cada lado de um berço improvisado feito com ripas em 3 "X" paralelos ligados por ripas transversais e cobertos com palha. Este “berço” ficava vazio até o dia 24 de dezembro, quando à meia noite era trazida uma boneca de bebê pelada que era acomodada com toda cerimônia. Neste momento um Pai Nosso e uma Ave Maria davam o tiro de largada para a ceia, com um cardápio que nada mais era do que um almoço de domingo, com upgrade na sobremesa que era um bolo no lugar da tradicional gelatina e refrigerante no lugar do suco de pacotinho.
De qualquer forma era uma época especial e naturalmente acabava por criar toda uma expectativa. Depois da ceia as crianças poderiam pegar debaixo da árvore seus presentes. Não é preciso dizer que comiam muito rapidamente, apesar de que uma regra familiar determinar que somente após todos terem terminado o jantar é que poderiam ir buscar seus presentes. Assim se tivesse um mais atrasado era engolido pelos olhos dos irmãos que estavam esperando, numa pressão que diminuía a quantidade de mastigadas necessárias para a digestão, pelo retardatário.
A mãe era diarista e nesta época algumas de suas “patroas” separavam algumas roupas e/ou brinquedos para que ela desse para seus filhos.
Rivaldo que era o filho mais velho não acreditava mais em Papai Noel e já tinha sido advertido severamente pela mãe que não influenciasse os irmãos mais novos e que deixasse que eles descobrissem sozinhos, quando fossem mais velhos, assim como ele. A mãe incentivava, quando ele era menor, a escrever para Papai Noel. Ele ficava revoltado, pois sempre pedia uma bicicleta e a mãe já sabendo do seu desejo e a falta de condições para atendê-lo, ia tentando dissuadí-lo, justificando que talvez Papai Noel não conseguisse atender o seu pedido e que ele deveria pedir um brinquedo alternativo. A mãe do pequeno Rivaldo ficava numa saia justa quando ele falava da sua indignação com o “Bom Velhinho” que dava presentes bons para filhos de famílias abastadas e roupas usadas ou brinquedos simples para famílias mais pobres. Pelo menos sabendo que Papai Noel não existia, ele ficava mais conformado ou menos revoltado com a figura do Papai Noel, sobrando sua indignação para Deus e sua história de consolo, onde seu filho nascia numa manjedoura. Se Deus não cuidada nem do próprio filho, que dirá das outras crianças. E se Deus era bom por que deixava que algumas crianças recebessem bons presentes e outras nem chegassem a receber um?
De qualquer forma Rivaldo se sentia importante pela forma como sua mãe o tratava, pois ele já tinha comido da maçã do conhecimento e agora era chamado a tentar manter os irmãos menores no paraíso. Ele sentia que ela contava com sua ajuda. Então ele, mesmo que não acreditando em nada, incentivava os irmãos à escreverem uma carta para o Papai Noel. Quando eles perguntavam se ele já tinha escrito a dele, ele falava que sim, mas que tinha colocado no pé do pinheirinho e que ela tinha sumido no dia seguinte, creditando o seu sumiço a uma provável ação do Papai Noel e que eles deveriam escrever logo suas cartinhas para que não sobrecarregasse os serviços na fábrica de brinquedos. Via no olhar da mãe um abraço carinhoso de agradecimento.
Naquela noite, quando seus irmãos já tinham ido dormir, Rivaldo viu dois envelopes com as cartinhas dos irmãos para Papai Noel. Ele sabia que mais tarde sua mãe iria recolher as cartinhas e tentar, dentro do possível, atender aos pedidos dos filhos.
Como já fazia parte do mundo dos adultos, pegou a cartinha dos irmãos para ler. Viu na cartinha do Raimundo que ele começava a desconfiar da história do Papai Noel, pois já acreditava que cada família tinha o seu e como a família era pobre, ele não podia pedir presente caro. Mas a cartinha mostrava também que Raimundo tinha um pouco de medo de ser verdade e pedia perdão pelo dia que puxou o cabelo da Rosária e dizendo que “no geral” até que ele tinha se comportado. Por fim dizia que o Papai Noel o deixaria muito feliz se lhe trouxesse uma bola de capotão oficial de couro, tamanho 5, com 32 gomos. Rivaldo pensou é um presente caro, mas acho que o Papai Noel da família consegue dar um jeito. Dobrou cuidadosamente a cartinha e colocou no envelope e deixou no mesmo lugar embaixo da árvore, para que sua mãe pudesse pegá-lo. Pegou o envelope da Rosária abriu e desdobrou cuidadosamente para ler. Enquanto ia lendo a cartinha com uma letrinha sofrível de quem tinha aprendido à pouco a ler e escrever seu rosto foi esquentando. Ali nas mau-traçadas linhas tinha uma menininha que acreditava piamente no Papai Noel e que perguntava por que ele nunca deu a bicicleta para o Rivaldo. Ela dizia na carta que com certeza o Papai Noel era muito atarefado para atender todas as crianças do mundo e que eventualmente alguma poderia não receber seu brinquedo. Então ela pedia para o Papai Noel não perder tempo para atender o seu pedido e construir na sua fábrica a bicicleta do Rivaldo. Seu coração se espremeu. Parece que aquela cartinha tinha algum tipo de gás lacrimogêneo: seus olhos começaram arder. Deu uma esfregada nos olhos e com as mãos meio que tremendo foi dobrando a cartinha, guardou no envelope e o colocou debaixo do pinheirinho.
Rivaldo não sabia como a mãe iria lidar com aquilo. Sua preocupação era com o sofrimento da mãe e a desilusão de Rosária com a falta de consideração que o Papai Noel teria com o seu pedido. Especulando com a irmã descobriu que ela amava uma bonequinha que aparecia nos comerciais de TV. A mãe disse que iria conseguir comprar os brinquedos dos dois e perguntava o que o Rivaldo queria. Rivaldo queria que Rosária não ficasse desiludida e disse que ele deviria fazer alguma coisa. Pensou em deixar uma cartinha junto com o presente de Papai Noel da Rosária onde ele simularia uma resposta de Noel para Rosária, explicando que já estava preparando a bicicleta do Rivaldo, quando recebeu a cartinha do Rivaldo onde ele falava do amor que tinha pelos irmãos e que estava muito feliz e que este ano não ia pedir uma bicicleta e que uma camisa do time do seu coração o deixaria muito mais feliz. De caso pensado com sua mãe, que compraria uma réplica de uma camisa oficial em algum camelô, presente dentro das possibilidades financeiras da família.
No dia após a ceia foram todos para o pinheirinho e se via em Rosária um certo ar de decepção. Ela sabia que uma bicicleta não poderia ser disfarçada por qualquer pacote e temia que Papai Noel não tivesse atendido seu pedido. Ela olhou para o pinheirinho e viu um embrulho redondo que faria os olhos de Raimundo brilharem e gritando de alegria abraçava a mãe rasgando o pacote e descobrindo que o papai Noel tinha acertado em cheio no seu presente.de Natal. Viu para sua surpresa um pacote com o seu nome. Ela não queria que Papai Noel perdesse tempo com ela. Talvez por isto ele não tivesse tido tempo de trazer a bicicleta de Rivaldo. Viu que junto com seu presente tinha uma resposta de Noel – aquela que Rivaldo tinha pensado. Rivaldo pegou seu pacote e fingindo estar surpreso deu um grito de felicidade com a camisa do clube. Aquela felicidade de Rivaldo junto com a cartinha de Noel tratavam de acalmar o coraçãozinho daquele anjo de sete anos. De repente aquele menino que não acreditava em nadas destas “baboseiras” se via como um defensor fervoroso do Espírito do Natal.
A bicicleta veio três anos mais tarde, mas o coração do Rivaldo exultava naquele Natal, onde viu o amor da sua irmã superar a vontade de ganhar um presente.
Feliz Natal!