TERRAMOTO

Os repórteres de vários jornais e cadeias de televisão, italianas e internacionais, começaram a chegar a Amatrice ao final da manhã daquele dia 24 de Agosto. O cenário de destruição era bem visível, casas desmoronadas, escombros escondiam vítimas que as equipas de salvamento se esforçavam por recuperar, na esperança de achar pessoas com vida. Alguns gemidos, ténues pedidos de socorro, a par de latidos dos cães pisteiros sempre que davam conta de sinais de vida, transmitiam alguma esperança aos que ali trabalhavam incessantemente para resgatar sobreviventes.

António Esposito chegou pouco depois do meio-dia. A sua equipa de TV, com operador de câmara e um ajudante, estavam cheios de fome e de sede, a viagem fora muito difícil, pois para além do calor, algumas estradas perto do lugarejo estavam bastante danificadas, dificultando o acesso à martirizada localidade. Dirigiram-se ao centro de apoio, um pequeno hospital de campanha para primeiros socorros, uma vez que o hospital propriamente dito havia desmoronado e soterrado muita gente. Ali se acumulavam muitos feridos, alguns, mais graves, à medida que iam sendo encontrados e tratados em primeiros socorros, eram muito lentamente transferidos de helicóptero para o hospital da cidade mais próxima.

Beberam bastante água e comeram umas sofríveis rações de campanha, era o que havia.

Para além da reportagem, deixada para segundo plano e querendo ser úteis, António e os seus colegas colaboraram nas pesquisas para encontrar gente viva naquele ambiente de destruição. Numa das ruelas adjacentes, a equipa de salvamento onde se integraram encontrou sob muitos quilogramas de pedras, vários mortos. Vivas estavam duas outras pessoas, quase irreconhecíveis pelo pó que as cobria. Os voluntários dos serviços de saúde constataram que uma delas, a mais idosa, tinha um braço e várias costelas partidas, para além de outras lesões menos visíveis. A outra, estava em choque pelo sucedido, falava aos soluços. António reparou nas feições dela, pois dera-lhe água para poder limpar o rosto. Era bonita, sem dúvida. Ainda mal refeita do imenso susto, contou aos que a rodeavam que era a terra onde sua mãe nascera e decidira, em férias, meter-se à aventura e vir conhecê-la. Sabia que era longe, mal servida de acessos e com o calor a dificultar ainda mais a viagem, fora precisa muita determinação para se meter a caminho. A senhora que fora descoberta com ela era a dona de uma pensão onde ficara hospedada e pelos vistos só as duas haviam sobrevivido.

António mostrou-se mais interessado por ela, soube que se chamava Cristina e tinha quase a idade dele, trinta e dois anos. Deixou-lhe algumas palavras de conforto e acompanhou-a para que se agrupasse com outras pessoas que, entretanto, se iam acumulando no hospital de campanha.

A equipa de TV foi dando a volta à povoação, praticamente toda destruída e por isso a paisagem era ainda mais desoladora.

O mosteiro, ex-libris da terra, havia desabado quase por completo, restando apenas a fachada. As freiras que ali viviam decerto haviam perecido perante a avalanche de pedregulhos.

Mais tarde, juntamente com outros órgãos de comunicação social, entrevistaram o presidente da câmara, que desde logo adiantou uma contagem de mais de cem vítimas mortais. Transmitiu mensagens de pesar que, entretanto, recebera de importantes figuras do estado italiano, nomeadamente do próprio presidente da república.

O calor não abrandava, assustava a frequência das réplicas, pondo o coração das pessoas em sobressalto. Por fim foram sendo de tal forma espaçadas e pouco expressivas que todos sossegaram um pouco. As mais de três centenas de pessoas que ali se aglomeravam comeram rações militares e foi-lhes servida sopa, o único prato quente possível de ser confeccionado, dadas as parcas condições existentes.

António procurou Cristina no meio da pequena multidão, discretamente para não chamar a atenção dos colegas. Achou-a num extremo da tenda, algo encolhida, tal como animal assustado. Os seus olhos brilharam quando o viu. Ele sentou-se junto dela, dando-lhe um amistoso toque no ombro.

- Então, já se sente melhor?

Ela desatou a chorar.

– Tanta gente que ainda ontem aqui estava, respirando saúde e com boa disposição, está agora morta…

- É mesmo a vida! Não me julgue insensível, é coisa que não sou, mas nestas situações há que ser pragmático. Já viu? Se toda a gente que aqui labora como voluntária, dando o seu melhor, perdesse a fé e ficasse desanimada, o caos que aconteceria?

Cristina assentiu, olhando-o de novo. Aquele olhar acelerou o coração de António. Era mesmo bonita, a moça! Aqueles belíssimos olhos castanhos endoidaram seu coração, sentiu um forte desejo de a abraçar, de a proteger, sem segundas intenções. No entanto, o bom senso manteve-o sossegadinho...

Ela estava preocupada porque não tinha notícias de fora, os familiares e amigos não sabiam se estava viva ou morta…

Ali raramente havia rede de telemóvel de jeito e agora ainda pior, as torres dos retransmissores decerto tinham sido destruídas com o cataclismo.

António tentou junto de um oficial de operações que lhe cedesse um dos aparelhos de comunicação por satélite, o que o outro,

compreensivelmente, recusou. Por fim, condoído com o estado muito pesaroso de Cristina, que via a chorar a alguma distância, disse-lhe que no dia seguinte talvez fosse possível, mas a título muito excepcional. António comunicou a boa nova a Cristina, animando-a um pouco.

Já a noite ia adiantada e o silêncio tardava, com os homens das equipas de socorro falando alto uns para os outros, a par do forte barulho de algumas máquinas trabalhando incessantemente, revolvendo os escombros.

António então disse-lhe para se deitar na cama de campanha que ele a custo tinha conseguido arranjar para ela. Ele estaria por perto, qual cavaleiro andante… Ela sorriu-lhe pela primeira vez, agradecida.

Durante a noite a descoberta de corpos foi prosseguindo, rareando cada vez mais os sobreviventes encontrados.

De manhã foi distribuído café instantâneo e pão com manteiga. Era o possível face à falta de condições. Água para lavar a cara tinham, mas o duche retemperador só depois de regressarem à “civilização”, isto é, a uma cidade sem problemas.

Ao final da tarde, António foi contactado pelo oficial de operações da véspera que lhe cedeu, durante alguns minutos, um aparelho de comunicações via satélite, para rápida utilização de Cristina.

Foi imensa a alegria com que ela falou de forma expedita com os pais e o irmão. Mais contatos ficariam para outra ocasião.

Ambos agradeceram a gentileza ao oficial, essa exceção que compreendiam e agradeciam.

As réplicas entretanto foram sendo menos frequentes mas mesmo assim ainda provocaram alguns desabamentos nas poucas construções ainda de pé, assustando todos os habitantes e forasteiros. Felizmente, não houve mais mortos.

A contagem provisória cifrou-se em perto de trezentos mortes e mais de trezentos de cinquenta feridos.

Dado que, entretanto, os grupos de trabalho de telecomunicações tinham conseguido restabelecer algumas linhas, a equipa de António, tal como outros órgãos de comunicação, iam conseguindo comunicar todas as novidades, as boas e as menos boas, cumprindo o seu dever de informar.

Mais um dia passou e Cristina soube que poderia ir para Bolonha no dia seguinte, junto com outras pessoas, em camiões do exército especialmente destinados para esse fim.

Entretanto a povoação estava cheia de gente, havia progressivamente mais condições de vida, com as forças de segurança muito empenhadas em dar um mínimo de conforto às pessoas.

Nessa noite, António e Cristina conversaram de forma mais próxima, sabendo mais coisas um do outro e embora fossem de cidades diferentes, saberem-se mais chegados em termos afetivos deu-lhes uma forte alegria interior.

Na manhã do dia seguinte, despediram-se um do outro com um longo, infindável abraço, onde a emoção falou mais alto.

Ambos prometeram comunicar-se logo que possível e ela deu-lhe um afectivo beijo no rosto, molhado com uma lágrima de saudade desde já sentida.

António ficou a ver o camião a deslocar-se pela estrada sinuosa, poeirenta e orlada de pedregulhos, até que sumiu na curva lá longe.

Lá ia ela…,mas talvez não ficassem separados por muito tempo…tinha fortes esperanças nisso.

Assim animado foi ter com a sua equipa.

Nota: As personagens são fictícias, mas o acontecimento foi mesmo real. O centro da Itália foi martirizado diversas vezes nesse ano de 2016, e também em outros anos, com uma sucessão de terramotos que provocaram muitas centenas de vítimas.

Este conto também se constitui como homenagem a essa gente martirizada por capricho do planeta azul.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 12/12/2018
Reeditado em 06/01/2019
Código do texto: T6525006
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