O preço
[Continuação de "O compromisso"]
A noite havia caído sobre o oásis de Harã. No terraço da residência de Irigibel, o mercador, sob a luz das estrelas, Belatsunat, a primeira esposa de Irshusin, e Monireh, a futura segunda esposa, estavam sentadas lado a lado num sofá de madeira e espaldar alto, coberto por uma pele de camelo. O encontro havia sido sugerido por Irshusin, para que ambas se conhecessem melhor e a primeira esposa instruísse a segunda sobre o que era esperado dela em sua nova vida em Babilônia.
- Eu tinha a sua idade quando fui desposada por Irshusin - principiou Belatsunat. - Mas não fomos abençoados com filhos... portanto, eu sugeri que ele tomasse uma segunda esposa capaz de lhe dar descendência.
- Desculpe perguntar, primeira esposa... mas Irshusin cumpre suas obrigações maritais? - Indagou cautelosamente Monireh.
Belatsunat deu uma risadinha baixa.
- Você está falando de sexo, Monireh? Sim, o seu futuro marido é perfeitamente capaz de cumprir seu dever conjugal, e assim tem sido desde que nos casamos. Talvez eu possa reclamar quanto à frequência, já que ele se ausenta muito em longas viagens de negócios, mas quando está em Babilônia, posso lhe garantir que nos divertimos bastante...
E diante da cara de expectativa da jovem:
- Irshusin é carinhoso, não se preocupe; saberá tratá-la com respeito e fazê-la feliz, da mesma forma que tem feito comigo por todos esses anos.
- Casamento é negócio... mas sinto que você o ama muito, primeira esposa - arriscou Monireh.
- Ele também me ama muito - declarou Belatsunat. - Tanto, aliás, que quis que estivéssemos juntos no momento do leilão para escolher a segunda esposa.
- E por que vieram para tão longe, primeira esposa? Não há leilões de noivas em Babilônia?
Belatsunat sorriu.
- Certamente que os há, Monireh. Viemos aqui por conta da previsão de um astrólogo...
Apontou para o céu estrelado.
- Veja como brilha Marduk! Nos foi dito que quando ele entrasse na constelação do Leão, como está agora, seria o momento propício de buscar a mãe dos futuros filhos de Irshusin.
- No oásis de Harã? - Insistiu Monireh.
- Harã tem um significado especial para Irshusin - comentou Belatsunat, expressão pensativa. - Foi aqui que a pessoa mais importante na vida dele foi comprada, décadas atrás...
- Uma escrava? - Indagou surpresa Monireh.
- Sim. E a mãe dele - replicou Belatsunat, encarando a jovem. - Entenda: a mãe de Irshusin era uma estrangeira, uma escrava, que foi comprada especificamente pela primeira mulher do pai dele para lhe dar filhos. Quis o destino que, de certa forma, a história se repetisse comigo... embora, claro, você seja uma pessoa livre. Mas se Irshusin é filho de uma mulher comprada em Harã, parece lógico imaginar que os filhos dele terão que vir de outra mulher desta mesma região. Aliás, foi o que sugeriu o astrólogo.
- Confesso que não entendo muito bem essa coisa de previsões astrológicas - admitiu Monireh. - Será que nosso destino está mesmo escrito nas estrelas?
- Talvez devêssemos estudar astrologia, - ponderou Belatsunat - para ao menos não dependermos de outros para ler o nosso futuro.
- Crê ser isso possível? - Questionou Monireh.
- Não sabe você ler e escrever? - Redarguiu Belatsunat.
- De fato - reconheceu a jovem.
A mulher mais velha parecia relutar em trazer à baila algo que a queimava por dentro. Repentinamente, segurou as mãos de Monireh e aproximou o rosto do dela, falando em voz baixa:
- Escute, Monireh... há algo que você precisa saber, e quanto antes o souber melhor. Somos duas completas estranhas, mas em breve estaremos vivendo sob o mesmo teto, portanto, terei que confiar em você, porque o que eu vou lhe revelar, embora tenha ocorrido comigo, lhe afeta diretamente, e até mais, talvez, do que a mim mesma. Fique certa, todavia, de que se essa história cair nos ouvidos de mais alguém, será a minha palavra contra a sua... e a partir desse dia, vou me dedicar a tornar a sua vida muito, muito desagradável. Estamos entendidas?
Monireh ouviu a exposição pálida de medo. As mãos de Belatsunat apertavam as dela, com força.
- Sim, primeira esposa... entendi perfeitamente - murmurou. - O que quer que me diga agora, morrerá conosco.
- Jure por Inanna - exigiu Belatsunat.
- Juro por Inanna - acedeu a jovem, trêmula. Só então, Belatsunat soltou suas mãos.
- Muito bem. Ouça com atenção...
Quando Belatsunat terminou de contar sua história, os olhos de Monireh estavam marejados de lágrimas. Não pelo que ocorrera com a outra mulher, mas pelo que potencialmente poderia suceder à ela, Monireh.
- O que foi que você fez? - Conseguiu balbuciar por fim.
- Coloquei minha vida em suas mãos - replicou secamente Belatsunat. - E de agora em diante, a sua também está nas minhas.
Enxugou os olhos da jovem com a ponta do seu véu de linho e a abraçou forte.
- Você não sabe como a confissão faz bem - sussurrou ela ao ouvido de Monireh.
[Continua em "A noiva relutante"]
- [30-11-2018]