Voltar a Viver
In the dark of the night
Those small hours
Uncertain and anxious
I need to call you
No fim da tarde a música By My Side da banda INXS, preenchia a sala, na penumbra. Em dias frios e chuvosos, carregados de melancolia, Chris sentava no seu jardim de inverno. Regava as flores, depois servia uma taça de vinho e abria sua elegante caixa de fotografias antigas.
Haviam vasos de flores enormes que se destacavam no jardim. Cada um deles, batizado com o nome de uma pessoa inesquecível, que fizeram parte da sua vida.
A solidão não é uma companhia somente para as pessoas solitárias. Ela gosta, maldosamente, de presentear os corações onde ainda sangram feridas abertas.
Chris olhou a chuva batendo na vidraça e engoliu o resto do vinho. Segurou a fotografia de um jovem de olhos miúdos, com uma covinha na bochecha, que segurava um pacote de Ruffles. Colocou-a sobre um vaso de jasmim, com o nome Yan, e sentiu o perfume que a flor exalava, saturando o ambiente.
A foto seguinte era de uma menina loira, tão linda que poeta algum ousaria descrevê-la. Colocou-a no vaso de orquídeas, com o nome Cléo.
Nem tudo pode ser filmado ou fotografado. Numa saudosa época, em que não existiam meios tecnológicos, as pessoas se preocupavam mais em viver os momentos, do que registrá-los. Momentos nunca registrados, que revivia nesses dias chuvosos.
Serviu mais vinho e encarou as fotografias nos vasos do seu jardim. Fechou os olhos e lembrou da Fazenda Alvorada…
* * *
As férias haviam começado naquele início de 1990. Chris viajou para a fazenda do seu tio Horácio, com a companhia de Yan e Cleo, de quem nunca se separava.
Os dias na fazenda começavam cedo, e todos faziam questão de ajudar o fazendeiro na lida. Durante as tardes tomavam banho em um açude, na divisa com as terras vizinhas. Lá passavam a maior parte do tempo, banhando-se e jogados ao sol.
Tio Horácio proibia que se afastassem dos arredores da fazenda:
— Há algo perigoso na floresta! Proíbo vocês de irem lá!
Chris sempre ouvia falar do “lugar proibido”, uma área no meio da floresta densa, além do horizonte das fazendas; que deveria ser evitado pelos moradores.
Quando a curiosidade se tornou incontrolável, Chris sugeriu que fossem escondidos, desvendar o segredo que estava além do horizonte. Cleo se opôs a procurar o lugar proibido, mas prometeu guardar segredo, caso não desistissem da ideia.
Na manhã seguinte, nem o temporal que se preparava para cair, conseguiu fazê-los mudar de ideia.
Enquanto arrumavam suas mochilas, Yan colocou uma fita cassete no seu Walkman e apertou o play. A banda INXS começou a tocar By My Side, e ele cantarolava alegremente.
Chris lembrou de colocar sua máquina fotográfica na mochila. Mas desistiu da ideia, ao perceber que só restava uma única pose no filme.
— Não precisa tirar mais fotos! – disse Yan, mascando seu chiclete Ploc Monsters de tutti-frutti — Na sua casa já tem um monte delas… Me dá aqui… - pegou a máquina.
Yan fez uma bola de chiclete, quando seguravam pacotes de Ruffles, então apertou o disparador. A foto ficaria legal, se conseguisse o enquadramento certo. Mas só descobririam quando o filme fotográfico fosse revelado, na loja da Kodak, no final das férias.
Saíram escondidos pela porta dos fundos, subiram em suas bicicletas e pedalaram o máximo possível. Desceram uma ruela em alta velocidade e atravessaram a propriedade vizinha. Logo viram uma floresta sombria, com árvores grandes e copas fechadas.
Chegaram onde deveriam caminhar por trilhas estreitas. Esconderam suas Calois e seguiram a pé. Penetraram na floresta, a claridade diminuindo à medida que se afastavam. O som dos trovões ecoava entre a vegetação.
A tempestade logo chegou, terrível. Chris e Yan se esquivavam dos galhos e do vento, mas a água fustigava seus corpos.
Depois de correr sob a chuva, encontraram uma velha cabana abandonada. Improvisada no meio da mata. Era precária, mas poderiam se proteger da tempestade. Quando a noite avançava, a ventania balançava as paredes da cabana, dando a impressão de que voariam a qualquer momento.
Deitaram em caixas de papelão, enquanto a tempestade caía. A aventura valeria a pena. Mesmo que não existe um “lugar proibido” e fosse apenas uma brincadeira do fazendeiro, para despertar sua curiosidade.
Yan acordou antes de Chris e devorou o seu pacote de batata frita. A chuva já tinha acabado e o sol radiante os esperava. Apenas as poças de água lembravam a tempestade da noite passada.
Se embrenharam na floresta, atolando no lodo e se arranhando nos galhos das árvores. No meio da mata densa, ela se abria numa enorme clareira.
Haviam perdido a noção do tempo e da distância percorrida. Mas finalmente chegaram onde queriam. Surpresos, contemplavam à sua frente o segredo da floresta. O lugar proibido era um enorme lago, plácido e verdejante.
— Nossa aventura chegou ao fim! Encontramos nosso tesouro! – disse Chris, antes de saltar no lago, mergulhando em suas águas frias.
O lugar paradisíaco não poderia ser proibido. Talvez fosse uma brincadeira do seu tio Horácio, para instigar a curiosidade e os conduzir até lá.
Chris pulava dos ombros de Yan, depois dava cambalhotas no ar, caindo na água indo até o fundo. Não se cansavam de mergulhar nas profundezas verdejantes.
Yan parecia ter câimbras enquanto nadava. Deu um grito de dor e se debateu até conseguir sair da água. Deitou-se no gramado massageando a perna, e reclamando das fortes contrações no músculo da panturrilha.
* * *
Um trovão ecoou pelo jardim de inverno, e Chris voltou ao presente.
Ainda sentia seu corpo molhado sobre a grama e o perfume adocicado de jasmim; vindo de um arbusto de flores brancas e delicadas, ao redor do lago.
Atiçou o fogo na lareira e bebeu o vinho no gargalo. Ergueu um brinde silencioso às duas fotografias sobre os vasos de flores, e se transportou novamente ao passado.
* * *
Os olhos de Chris foram ofuscados pela luz do sol, que surgia e sumia por entre as nuvens, numa luminosidade roxa resplandescente. Quando se abriram, Yan estava deitado ao seu lado. Antes que pudesse reagir, ele segurou seus braços e olhou fundo nos seus olhos.
Ficou por um tempo analisando seu rosto, e se aproximou, dando um beijo. Um beijo explorador, suave, mas, ao mesmo tempo, cheio de desejo. Sufocado durante anos de desejos reprimidos, que aflorava naturalmente naquele momento.
Chris o empurrou e ele rolou na grama, dando uma sonora gargalhada; divertindo-se com o que tinha acabado de fazer. Puxou-lhe a mão, até que entraram no enorme lago, sentindo a água gelada molhando seus pés.
— Aposto, que eu chego mais rápido no outro lado! – propôs Yan — Mergulhando!
— Enlouqueceu? Sem equipamentos?
— Nosso fôlego, é o equipamento! Quem não aguentar, volta a superfície, e toma ar.
Antes de Chris responder, Yan lhe empurrou no lago, saltando depois. Veloz como um peixe, ele logo estava em vantagem.
O lago de águas verdes, mansas e profundas, não despertava a menor suspeita de seu perigo.
Chris nadou o quanto suas forças permitiam, mas queria desistir. Dava braçadas fortes e gritava para que Yan retornasse. Ofegava sentindo os braços formigando, e dores nas costas.
— Desisto! – gritou.
Yan não ouvia e nadava com força, para longe. Mergulhava e emergia com rapidez e desenvoltura. Gritava de satisfação, como meninos tolos, se vangloriando de suas proezas.
— YAN! – gritava, já se aproximando da superfície — Volte!
Cada vez mais distante das beiradas, ele pareceu perder a velocidade. Submergia e demorava para voltar à tona. Ficava mais tempo sob a água.
— YAN! YAN! – gritava com mais força.
Subindo para tomar fôlego, ele tentava voltar para onde tinha saído, desistindo do seu desafio. Fazia esforços para continuar, mas era possível perceber no seu rosto, os sinais de que havia algo errado. Levantava os braços e afundava engolindo água, tentava nadar novamente, mas não conseguia sair do lugar.
— Yan! Está bem? – o grito de Chris ecoou na clareira, e fez com que os pássaros se assustassem, levantando voo dos galhos das árvores.
Ele ainda ergueu os braços, num último pedido de socorro, antes de afundar e não mais vir à tona.
— SOCORRO!
Mas o grito foi inútil. Sua dor e desespero travaram suas pernas. Não sabia o que fazer, enquanto o via afundar. Sua sensação de impotência, jamais seria perdoada. Mesmo não sabendo nadar tão bem, sempre se culparia, por não ter pulado na água para tentar salvá-lo.
* * *
Chris soluçava diante dos fotos sorridentes no jardim. Sempre chorava ao lembrar a melhor fase da sua vida. Das amizades, da descoberta do amor e das dores de perdê-lo.
Tio Horácio chegou ao local horas depois. Chris em estado de choque, olhava fixamente para paisagem tranquila e paradisíaca na sua frente.
— Desculpe! – foi tudo que conseguiu falar, em estado de torpor.
O fazendeiro não disse uma única palavra. Apenas lançou um olhar fulminante. Tão brutal, como um soco no estômago.
Yan foi encontrado, já em decomposição, três dias depois do afogamento. Estava preso em uns galhos, nas profundezas do lago. Seu rosto irreconhecível atacado dos peixes, que comeram seus olhos e a pele macia.
O lago tão belo quanto traiçoeiro, levava consigo todos que penetravam em suas águas.
* * *
Vinte e oito anos se passaram desde aquele dia.
Cleo morreu em 2010 num assalto à mão armada, em frente a sua casa.
Tio Horácio partiu há mais tempo. Sua fazenda foi vendida.
O maldito lago ainda está lá…
Chris nunca se casou ou teve filhos, e agora sem o frescor da juventude; ninguém mais se interessaria pelo seu corpo, ou seus sentimentos.
As dores foram substituídas pelas melhores lembranças seus amigos. E enquanto sentisse um perfume de jasmim, lembraria de Yan. Assim voltaria a viver.
Chris olhou a tempestade pela janela. Por um instante, pareceu ouvir as paredes daquela velha cabana, estalando com o vento novamente. Olhou para as flores vivas e perfumadas no seu jardim particular, e sentiu uma dor na alma. Todas as pessoas que lhe amaram de verdade, estavam mortas, enterradas no seu jardim.
In the dark of night
These faces they haunt me
Well, I wish you were so close to me
Yes, I wish you were
By my side
(By my side - INXS - Compositores: Andrew Farriss / Kirk Pengilly Letra © Warner/Chappell Music, Inc, Universal Music Publishing Group)
Amigo Leitor,
Espero que tenha gostado do conto acima.
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Abraços!