Contávamos ratos
Naquele tempo os casamentos eram arranjados pelos pais. Filhos e filhas tinham seus destinos matrimoniais escolhidos e organizados pelos progenitores. Era um tempo diferente, como vê. E cabia a nós apenas aceitar, submissos, porque nos era ensinado que a união dessa espécie deveria ser promulgada pela experiência daqueles que nos viram crescer.
Muitos casos, no entanto, não eram pautados nesse termo, o termo da experiência dos pais. Muitos casos envolviam interesse e olho grande da parte deles. Contudo, por moral e por sorte, meu destino e o do meu marido não se encaixou nesse pecado. Por outro lado, se encaixou em outro, o da falta de sensatez.
Não é com orgulho que conto a você, leitor, a minha falta de amor pelo meu marido. É com sinceridade. Mas não é com sinceridade que revelo a falta de amor do meu marido para comigo. É com dor. E posso garantir que sendo ele a narrar essa história, diria a mesma coisa a você, apenas invertendo os sentimentos.
Nossa história começou simples e obstinada, como muitas das histórias da época começavam. Nós, minha família, morávamos em uma pequena roça, próxima à curva do estradão que ia para a cidade. E não muito distante dali, moravam os Fernandes, o pai, a mãe e o filho, um menino dois anos mais velho que eu.
Nossas famílias se conheciam, acho, desde sempre. Desde que me entendo por gente, tenho lembrança dos Fernandes e dos Pereira juntos. E em todos esses momentos de convivência, dos que lembro, pelo menos, vem-me à memória a voz rouca do meu pai dizendo que me casaria com o José. E em contrapartida, o pai do José respondia que aceitaria com grande alegria e abraço a pequena Maria como nora.
As afirmações eram constantes e cheias de energia e fé. Naquelas terras havia outros meninos e outras meninas, no entanto, segundo nossos pais, para Maria só serviria José e para José só serviria Maria. E cabia a nós apenas aceitar, submissos, e nem em sonho poderíamos contar que não gostávamos um do outro, apesar de que nem precisaríamos, porque era nítido para todo ser vivo. Para Maria só serviria João e para José só serviria Teresa.
O lado estranho do nosso desgosto um pelo outro é que não tínhamos explicação para ele. Certa vez, quando já éramos jovens, eu com quatorze e José com dezesseis, enquanto íamos para a escola, um lugarzinho do outro lado do rio, mantido por um rico fazendeiro, conversamos sobre o assunto com muita sinceridade. Lembro-me muito bem que no meio de uma fala José disse o seguinte:
— Maria, você é bonita, doce, sabe fazer as coisas de casa, porque vejo como ajuda sua mãe, mas não gosto de você.
E eu, sem nenhuma maldade e sentimento covarde, respondi:
— José, você é bonito, valente, sabe tocar boi, tirar leite e arar a terra, porque vejo como ajuda seu pai, mas não gosto de você.
Como dito, foi uma conversa sincera.
Três anos mais tarde veio nosso casamento. Fora organizado com muita simplicidade e rapidez. Quando dei por mim, eu já estava na minha própria casa, olhando para a cara do José e pensando em uma forma de seguir com aquilo que era tudo, menos um casamento.
Como esperado, não demorou muito e José se retirou dos limites dos meus olhos e entrou para o quarto. Mas, não, não dormimos juntos aquela noite e, na verdade, em nenhum outra que veio depois.
Dormíamos sempre em quartos separados, comíamos em cômodos diferente, eu cantava uma música e ele cantava outra. Nossas roupas eram lavadas em dias distintos, eu lavava a minha e ele a dele. Tinha dia em que sequer eu o via. Só o percebia porque vez ou outra fazia algum barulho nas portas ou na água de beber. Nunca sorrimos por nossa união. Por outro lado, sempre houve respeito honesto e mútuo.
O curioso é que, mesmo sem cumplicidade nos demais espaços do nosso matrimônio, desenvolvemos uma tradição que acabou por se tornar algo interessante, e se estendeu por trinta e cinco anos.
Quando a noite dos sábados chegavam, José preparava um café forte e amargo, porque era assim que gostava, e, sentado num banquinho da cozinha, ficava de guarda, mirando o vão entre o telhado de palha e a parede de barro.
A primeira vez, ficou sozinho. A segunda, me convidou para sentar ao seu lado, em outro banquinho de madeira. A partir desse dia, passou a sempre me chamar, até se tornar uma tradição.
Então, durante as noites de sábado, ficávamos eu e ele, unidos no mesmo propósito, e nesse momento, somente nesse momento, parecíamos um casal. Às vezes, quando era oportuno e a espera era grande, eu deitava minha cabeça em seu ombro e sorria sem querer.
Agora conto essa história, por meio de um amigo letrado da cidade, porque faz um ano que José faleceu. E só resolvi narrar pois, sendo hoje sábado, seria o dia de estacionar um banquinho do lado do outro. Nunca houve amor, paixão e cumplicidade, mas nesses dias, somente nesses dias, para nos sentirmos unidos e felizes, ficávamos juntos, um do ladinho do outro, e, mirando o vão entre o telhado de palha e a parede de barro, contávamos os ratos que ali passavam.