O leilão
Irigibel, mercador de Harã, começou a retirar de uma caixa tabuinhas de cerâmica cobertas de caracteres cuneiformes, e a empilhá-las sobre a mesa da cozinha. Sua mulher, Ia, apenas observava em silêncio. Quando a movimentação acabou, ela atreveu-se a perguntar:
- São nossas contas atrasadas?
Irigibel balançou afirmativamente a cabeça, sentando-se à mesa.
- Sim... nossa situação não é nada boa; principalmente depois que o barco com a carga de azeite afundou no Mar Vermelho.
- Como vamos fazer para pagar os empréstimos? - Ia pegou uma das tabuinhas, com várias colunas gravadas.
- Está de cabeça pra baixo - alertou Irigibel, virando o objeto na posição correta.
- Continua parecendo ruim - comentou Ia.
- Eu ia mesmo conversar com você... - disse o mercador cautelosamente. - Talvez tenhamos que leiloar um dos nossos bens mais preciosos.
Ia o encarou, inquieta.
- Espero que você não esteja falando das nossas filhas.
- Temos quatro - relembrou o mercador. - Se vendermos uma...
- Leiloar - corrigiu a esposa.
- Leiloar, que seja... poderemos pagar as dívidas e talvez levantar algum dinheiro para comprar outra carga de azeite.
Ia cobriu o rosto com as mãos.
- Não consigo acreditar que teremos que levar uma de nossas filhas para ser avaliada por um leiloeiro... como se fosse uma vaca!
- Uma vaca talvez nos desse mais dinheiro - ponderou Irigibel.
* * *
O leiloeiro, Yanzu, avisou que iria à residência de Irigibel para, segundo suas palavras, "avaliar a mercadoria".
- Só vou colocar uma das meninas em leilão - apressou-se em informar o negociante.
- Tudo bem, mas se você quer obter o melhor preço possível, deixe que eu faça a escolha - atalhou Yanzu. - Afinal, eu sou o profissional da área.
Resignado, Irigibel concordou.
No dia marcado, as filhas do mercador - quatro adolescentes entre 14 e 18 anos de idade - vestidas e maquiadas como se o dia do leilão já houvesse chegado - foram apresentadas à Yanzu. Os pais aguardaram nervosamente a avaliação.
- Todas são muito bonitas - declarou o leiloeiro, para alívio geral. - Não creio que será difícil conseguir bons lances. Mas, como sabem, apenas uma será indicada. Podem começar dizendo seus nomes, da mais velha para a caçula, e o que sabem fazer.
- Eu sou Tauthe - apresentou-se a primogênita. - Sei cantar e dançar.
- Eu sou Aralu - disse a segunda filha. - Falo egípcio e hebraico fluentemente.
- Meu nome é Monireh - falou a terceira. - Eu sei ler e escrever.
- Me chamo Rubati - disse a caçula. - Sei fiar e tecer.
Yanzu bateu palmas, extasiado.
- Que jóias preciosas! Se eu fosse Enkidu, levava vocês todinhas...
- Mas já que não é, por quem se decide? - Indagou Irigibel, impaciente.
Yanzu ergueu os sobrolhos.
* * *
- Eu sabia que isso poderia acontecer - disse o rapaz em tom resignado. - Essa sua insistência em aprender a ler e escrever, atraiu atenções sobre você.
- Como posso ser uma poetisa sem saber ler e escrever? - Protestou a garota. - Mas, você tem razão: nunca imaginei que esses meus dois talentos fossem ser postos à venda por duas minas.
- Lance inicial? - Indagou o rapaz.
- Lance mínimo - replicou a garota.
- Meu pai não consegue levantar nem metade disso - avaliou o rapaz, desanimado. - Por que não fugimos para um reino estrangeiro, longe das leis da Babilônia?
- E vivermos como eternos fugitivos, sem jamais podermos voltar à terra natal? - Questionou a garota. - Além disso, eu tenho o dever moral de ajudar meus pais e minhas irmãs: se o leiloeiro acredita que valho duas minas, isso poderá reverter a falência de meu pai.
E diante da expressão dúbia do rapaz, acrescentou, dedo em riste:
- E nem ouse insinuar que outra das minhas irmãs poderia obter um lance mínimo igual ou superior!
- Eu não ia dizer nada - contemporizou ele. - Pra mim, você vale o seu peso em prata...
- Quanto isso daria em shekels? - Questionou ela.
[Continua em "O compromisso"]
- [19-11-2018]