Casamento das Palavras
Casamento de Palavras
A manhã mal começara e lá estava ela, perdida
no devaneio de suas palavras.
Adorava escrever, desde menina, aprendera
sozinha. Os avós da roça diziam que aquilo tinha sido
obra do capeta, mas, ela nem ligava, escrevia em tudo o
que via, o que na primeira infância lhe renderam boas
palmadas, devido ao estrago feito nas paredes.
Quando ficou moça, não demorou a se enamorar
de um rapaz do colégio, e logo os dias eram preenchidos
nas linhas das enormes cartas de amor, que causavam
frisson, em ambas as partes, quando escritas e quando
lidas, e, assim Narinha foi vendo sua juventude
avançar, em meio a Lápis, borrachas, papéis e livros,
nem se dando conta de que a vida corria e de que o
ingrato tempo já incomodava os pais, que temiam que
a menina, tão estudada, não arrumasse um casamento,
pois, naquele tempo, não era muito apreciado uma
mulher em que as ideias pudessem estar recheadas de
caraminholas.
Em uma manhã nublada, a mãe de Narinha entrou
aflita no quarto, abrindo as janelas e mostrando-se
apressada.
Levanta Narinha, rápido!
Narinha ainda assustada senta-se na cama com o
coração disparado:
_ O que houve? Morreu alguém da família?
_Vire essa boca pra lá, menina! Deus é mais!
_Para me acordar desse jeito às 6:00 da manhã,
algo deve ter acontecido de gravidade.
_Nada aconteceu.
Retrucou a mãe :_ Simplesmente,
seu pai conseguiu um noivo para você e ele vem
almoçar conosco hoje e quero que prepare o almoço.
_ Noivo? Mas eu não estou à procura de um
noivo. E tem mais... esqueceu que eu não sei cozinhar?
A Mãe sacudiu-a pelos braços:
_ Levante-se logo, irei fazer o almoço desta vez,
mas, na segunda visita, irá se virar, pois, moça que não
sabe cozinhar, não se casa, e você nem pra Titia fica,
pois, não tem irmãos, então se esforce para agradar,
pois quando a terra engolir a mim e a seu pai, irá
chorar sem um ombro para a consolar.
Contrariada, Narinha levantou-se e foi sentar-se
na Sala para aguardar o seu pretendente.
Olhava para o pequeno diário, onde rascunhava
suas poesias, quando o velho calhambeque parou na
porta do casarão, e desceu um homem corpulento, que
parecia mais velho até que seu pai.
Narinha imaginou ser o noivo e já ia abrindo
a boca para reclamar, quando desceu do carro um
homem mais velho ainda, e aquele, sim, era o noivo,
franzino, com idade para ser o avô de Narinha, essa,
não pôde esconder a sua decepção com a péssima
escolha dos pais. Foi para a cozinha batendo o pé.
_Como podem achar que eu vou casar com
alguém mais velho que Painho? Me digam?
A Mãe colocou o dedo indicador em frente à boca
e disse: _ Silêncio! Ele pode ouvir.
_ Não fique escolhendo a dedo não, pois nem
bonita você é! Disse a mãe em bom tom, e, além do
mais, você tem esse problema de ficar lendo e escrevendo
que nada nesse mundo lhe dá jeito.
_E isso lá é problema, Mainha? Isso é qualidade,
eu não vou casar com nenhum velho jeca, que
escolherem para mim. Não vou, Não vou e não vou!
A Mãe pegou a frigideira quente e ameaçou até
agredi-la com a panela se não falasse mais baixo.
Passada a primeira hora e o primeiro impacto, a
família estava reunida na sala saboreando o almoço,
que, supostamente, fora feito por Narinha, quando o
velho noivo exclamou:
_ Está tudo perfeito! Moça prendada!
Narinha ouvindo aquilo, incomodou-se:
_ A Mamãe sempre foi muito prendada mesmo,
sempre cozinhou muito bem, não é papai?
A mãe corou de vergonha, e o pai não sabia onde
enfiar a cara.
O velho, percebendo que a menina era ousada,
perguntou ao pai.
_ Se ela não sabe cozinhar, o que sabe fazer... que
mal lhe pergunte?
_ Sei Escrever e ler muito bem!
Respondeu
Narinha sem travas na língua.
O velho ficou tenso e o pai começou a engasgar-se.
_ A culpa é da senhora minha esposa, que nunca
soube educar essa menina, fazia todo serviço de casa
para ela ficar enfurnada dentro do quarto escrevendo
sabe deus o que? Alegou o pai.
A Mãe enfureceu-se.
_Culpa minha? Quem ensinou ela a ler? Fui eu?
Que nem sei?
_ Eu que não fui, isso deve ter sido mesmo obra
do Cão, respondeu o pai.
E, assim, a confusão se instalou na hora mais
sagrada da casa da família Epitácio Leão.
O velho estava de olho na Menina, e decidiu
acalmar os brios.
_Não se preocupem, se Narinha é uma moça
inteligente, ao ponto de ter aprendido a ler sozinha,
com certeza, aprenderá a ser uma boa esposa mais fácil
ainda, vamos aguardar. Viajo por 10 dias e, quando eu
voltar, voltamos a conversar e venho experimentar o
cozido de Narinha.
O velho pegou seu chapéu e saiu da casa deixando
um “Redevu” tremendo.
O Pai explicou a Narinha que precisava fazer
aquele acerto, pois, devia um dinheiro ao Cel. Afrânio
e ficaria de bom grado exterminar a dívida em favor do
casamento.
Narinha não estava feliz em contrariar os pais,
mas não se via casada com aquele homem de jeito
algum, mesmo que fosse a mulher mais feia do planeta,
sabia que o amor um dia bateria em sua porta.
A Mãe decidiu levá-la ao médico da cidade, achava
que um bom calmante poderia dar jeito na personalidade
forte da menina, até que o dito “Noivo” voltasse.
_ O que ela tem?
Perguntou o médico.
_ Tenho ideias! Sei ler e escrever, escrevo versos,
declamo-os para mim mesma, responda-me Doutor,
isso é alguma doença grave?
O médico, que era até um homem jovem, ficou
estupefato com a delinquência da mãe em procurá-lo
para cuidar da filha, que, de doente, nada tinha, apenas
uma qualidade de poucas mulheres naquela época.
Pediu que Narinha voltasse no dia seguinte que
iria analisar o caso.
No dia seguinte voltaram as duas.
Narinha ficou quase duas horas dentro do
consultório e, de fora, a mãe ouvia sua voz lendo seus
versos, e achava que o tratamento poderia, realmente,
dar certo, e, assim, nos quatro dias, que se seguiram, a
peleja da mãe começava cedo, levando a jovem para o
centro da cidade, para ficar horas declamando dentro
do consultório.
No quinto dia, Narinha estava mais calma, e,
quando saiu do consultório, pediu à mãe que a levasse
na biblioteca da cidade, pois iria procurar um livro de
receitas e, assim, o coração da mãe se aquietou.
Naquela semana, mais que nunca, Narinha estava
perdida em suas palavras,
Acordava em sua Sintaxe de Sono, espreguiçava
em sua semântica, ria em sua metáfora, almoçava em sua
linguística, descansava em sua morfologia e, para os pais,
ela era uníssona, e só dirigia a estes resmungos monossilábicos,
” Sim, Não, Talvez! “ ela agora se fez verbo.
A Mãe pensava: _Ela se acalmou, eu tinha razão,
o médico resolveria.
O Pai pensava:
_ No fundo, ela gostou da ideia de
se casar, afinal... que moça quer ficar encalhada?
Os dez dias passaram rápido, e no dia marcado,
o alvoroço começou cedo, novamente.
Cortinas abertas, passos apressados na Tábua
corrida do Piso, Galo cantando.
_ACORDAAAA Narinha!
E lá foi Narinha para a cozinha.
A mãe e o pai faziam sala para o coronel, para
que este comprovasse que o almoço estava sendo feito
por Narinha.
E até que, da cozinha, começava a vir um aroma
perfumado de ervas.
A mãe começou a se acalmar e, em pensamentos,
acreditava: “ Tudo dará certo!
Passada a primeira hora, todos foram para a mesa,
para esperar o cheiroso cozido da novata cozinheira.
E ela veio com a Caçarola Fumegante e colocou
na mesa.
Quando abriram a panela, a imediata surpresa, o
ensopado estava azul.
Os pais tentaram disfarçar como se fosse de
praxe, e Narinha pegou a grande concha de metal
fundido, e enfiou na caçarola para servir orgulhosa
seu quitute. E começou a distribuir nos pratos, fartamente,
a sopa, que, ao invés de legumes, apresentava
uma textura diferente.
O pai disfarçou, não querendo perder o negócio
e engordar a dívida e deu a primeira colherada, e,
depois, soltou, animadamente, uma exclamação de ter
gostado: _ Hummmm!
O Velho coronel levantou sua parte com uma
colher e, todos, na mesa, se espantaram, quando o
velho gritou:
_ Essa sopa é feita de papel!
Narinha orgulhosa assumiu:
_ Essa sopa é feita do que eu sei fazer de melhor...
de Palavras! O tom azul é, apenas, a tinta, que saiu no
cozimento, mas todos vocês ignorantes podem agora se
fartar dos meus conhecimentos, comam e se lambuzem!
E foi aquele prá-prá-prá... O pai socou a mesa,
jogando a sopa para o alto, que caiu quente em cima
do pobre do Coronel, aliás, pobre não, Rico Coronel,
que estava todo de branquinho e saiu azul e fumegante
de raiva, com a cara queimada.
A Mãe pegou Narinha pelas orelhas e trancou-a
no quarto, de castigo.
Mas Narinha não chorou... ao contrário.
Abriu a janela dos fundos, soltou sua alma poética,
atravessou o abismo da ignorância, desceu do Penhasco
da inutilidade, subiu o pódio da liberdade, e, com sua
maleta, entrou no automóvel do Doutor, que a esperava
do outro lado da porteira, sedento para cair nos braços
de seus versos e deliciar-se pela vida em sua prosa.