Um Alguém – parte II: E a estranha mania de doar seu coração

- “Lo digo, sin embargo, que a los corazones los dioses les dieron el raro poder de regeneración” – disse-lhe José Cárdenas.

Embora confiasse nas palavras do velho sábio, duvidava muito que tal fato por ventura se lhe ocorreria. Qualquer que seja de partícula que restara em seu coração lhe fora arrancadas. As que ficaram secaram, assim como secam os orvalhos expostos à luz do sol. Duvidava muito que qualquer forma de vida pudesse brotar no deserto que se fizera seu peito.

Entregou-se ao trágico destino de viver a vagar sem coração.

Vagou, como vagam os andarilhos sem coração cujo destino não tem cais, tampouco portos. (descobriu que havia portos quando se lhe apresentou uma lusitana, mas esta é outra história que merece ser contada a parte).

- “Cuando sentir que es hora de dejar de navegar, descubrirá que ya tiene un nuevo corazón” – alertou-o Cárdenas.

De fato, quando a lusitana disse-lhe que embora fosse preciso navegar, necessário também o era atracar o navio em algum porto, já havia brotado em segredo no seu peito um novo coração.

- “Venia de lejos”. Como previu Cárdenas. Embora não se soubesse aonde fora determinado, em pouco tempo ofereceu a “lejana” o peito para que cravasse o punhal e levasse consigo o seu novo coração.

Não era a lusitana, como talvez tenha pensado. Embora viesse de longe, não era a lusitana. Não lhe prometeu muito, apenas ofereceu-lhe o cais para que pudesse aportar o seu navio. Não pediu nada em troca. Mas ele, como o destino já houvera sentenciado não se sabe aonde, ofereceu-lhe o seu novo coração para levar consigo.

Num sábado, quando chovia sobre o cais do porto, ele mesmo, por conta própria, cravou o punhal no próprio peito, arrancou seu coração, colocou em uma bandeja e entregou-lhe.

Ocorre que ela não havia pedido nada em troca. Mas não haveria de recusar o presente, colocou-o em pote e partiu naquela mesma manhã chuvosa, levando consigo o cais e seu coração.

- "no hay puerto seguro" soava estridente uma teimosa voz em seu ouvido.

***Quando é madrugada, ou quando é tarde chuvosa de domingo, ela vai até a última gaveta do armário e tira de dentro de uma pequena caixa protegida por um cadeado um pote em que guarda imerso em álcool um ainda vivo coração.