Para depois do café?
Dizem que foi por um acidente que nos encontramos. Já tinha dado sua hora como balconista/ atendente daquele Café, mas ela foi atender mais um. Na sua disposição parecia estar começando o dia. O sorriso era só simpatia. Seus olhos sorriam. Seus gestos pareciam reverenciar o mundo.
-Um café e pago quanto quiser pelo seu segredo.
-Como?
-O segredo desta tua felicidade- ela sorriu.
-Não tem segredo. É só ser agradecida.
-Mas eu sempre digo "Muito obrigado" e nem por isto meus poros ficam exalando esse perfume que alegria como ficam os seus...-ela sorriu meio encabulada.
-Não é este agradecimento. É outro mais geral, amplo e irrestrito.
-Me fale sobre ele...
-Tenho que bater o ponto. Meu chefe não gosta de pagar hora extra.
-Você está saindo?
-É, mas vou avisar para cuidarem do seu pedido. Café expresso? Algum acompanhamento?
-Na verdade eu queria um bem lento. O acompanhamento podia ser você uma conversa descontraída - não sei, não me perguntem, pois não tenho ideia de onde tirei coragem para o galanteio. Na verdade sou meio tímido. Acho que senti que não podia perder aquela oportunidade. Como meus amigos dizem para me encorajar: "O não você já tem!"- o café não pode ser expresso, tem que ser um carioquinha um pingado. Do que você gosta?
-Gosto de com leite e creme, mas tenho pouco tempo. Daqui a pouco vou para a faculdade...
-Isto é um sim? Nossa este teu perfume de felicidade é contagioso. Já estou sentindo em mim - e para cercar qualquer objeção arrematei - dois destes. Tomamos rápido.
-Ok, espere um pouco. Vou tirar esse avental e já volto.
Quando a moça voltou, não fosse pelo sorriso talvez ele não reconhecesse. Os cabelos, que estavam num coque preso por uma redinha, agora mostravam toda sua imponência, disfarçados num desleixo programado. Ela era morena, olhos de caju. Trouxe numa bandeja o pedido.
-Ok, Qual o seu nome? Não costumo tomar café com estranhos.
-Nivaldo e o seu?
-Jussara, não viu na plaquinha?
-Na verdade não. Acho que eu não consegui desviar seus olhos.
-Você está me paquerando? - fiquei com medo de responder por uns segundos angustiantes engolindo seco fui buscar no cérebro alguma forma de escapar daquela situação. A brincadeira era a forma que eu me sentia mais à vontade:
-Não, Eu participo de um grupo de estudos sociológicos que buscam a explicação para a felicidade de certas pessoas. Quando te vi, achei a pessoa certa para avançar nos estudos.
-Tipo assim um rato de laboratório padrão? - ela riu querendo da frase um pedido de explicação.
-Tudo pelo bem da ciência, mas temos esteira circulares e não vai faltar ração. - o seu jeito divertido me encorajava a continuar a brincadeira.
-E se fizer parte do estudo ver até onde vai minha felicidade racionando cada vez mais o alimento?
-Não tinha pensado nisto, mas se racionarmos sua ração você poderá fugir entre as grades. Não sei se é bom negócio. Perderíamos um belo espécime.
A conversa seguiu no ritmo leve e entre banalidades fomos nos conhecendo. Fiquei sabendo que ela fazia letras e que tinha vontade de ser jornalista. Morava com a mãe que era viúva.
O papo estava bom e ela levou um susto quando olhou para o relógio.
-Nossa! Não vi a hora passar. Já perdi a primeira aula. Acho melhor eu ir. Esteve muito boa a conversa e o café. Qualquer dia podemos repetir.
-Que tal amanhã?
-Você é rapidinho né?! Amanhã eu não posso. Depois de Amanhã é minha folga. Que tal?
-Não sei se vou aguentar, mas ok. O que você acha de almoçar?
Do almoço vieram outros encontros. Nossas ideias também foram se encontrando. Vi muita coisa em comum. Um dia pedi se podia acompanhá-la até sua casa. Na despedida, no portão, o primeiro beijo selava um namoro que me deixava no céu. Foram 4 meses maravilhosos até que um dia ela chegou com um ar sombrio e disse que tínhamos que conversar. Ela que sempre enviava currículos para toda parte e tentava tudo quanto é concurso recebeu um convite para estágio num jornal americano e a proposta parecia irrecusável. Poderia ficar fluente no inglês e ainda trabalhar no que sempre sonhara e conhecendo outra cultura. Um sonho de vida contra um namoro de poucos meses. Era muita coisa em jogo para que se fizesse a cerimônia em acabar um namoro. Da minha parte um aperto no coração. O egoísmo da minha felicidade ou o querer bem que se alegrava com a felicidade de Jussara?
Na frente o altruísmo venceu. Engoli o choro e procurei tirar o peso que ela poderia sentir pela ruptura daquele namoro. Dei força e disse que ela deveria seguir os seus sonhos e que se no futuro aquele sentimento que nos uniu num namoro se confirmasse o destino daria um jeito de nos manter juntos. Se fosse diferente é porque não era para ser.
Ela me abraçou como quem agradece por eu ter tirado um fardo das suas costas e umas dúvidas da sua cabeça. Naquele momento me senti um gigante. Um contraponto com o menino que na solidão e escuro do seu quarto abafava soluços no travesseiro encolhendo e ficando uma posição fetal, como quem quer rebobinar a vida e voltar para a segurança e o quentinho do ventre da mãe.
Passou o tempo e nas comunicações que eram constantes foram se espaçando. Eu perguntava sobre as novidades e ela começou a dizer que estava sem tempo e que depois me atualizava. Depois de algumas respostas do tipo eu me sentia como que atrapalhando e nossa falta de assunto chegou ao ponto em que o constrangimento era maior do que a vontade de saber do outro.
Um dia um amigo em comum que eu tinha conhecido através da Jussara me perguntou se eu tinha alguma novidade. Eu não sei se eu consegui disfarçar os sentimentos que estavam represados quando eu respondi:
-Nunca mais nos falamos. Na verdade não sei como anda a vida da Jussara.
-Perguntei porque vi que ela assinou matéria no jornal. É pequena, mas quem sabe não é um ensaio para assumir uma coluna.
-Sobre o que ela fala? - procurei acertar no tom de voz para disfarçar o interesse, parecendo ser uma simples curiosidade.
-Ela faz uma análise sobre um autor americano de contos.
-Nossa que bom! Jornalismo com literatura. Ela deve estar adorando...
-Por que você não pergunta para ela? - um buraco no espaço-tempo se abriu. Não tinha uma resposta. Queria chorar, mas minha educação de homem forte tratava de segurar as pontas. Não lembro a resposta que dei. Sei que ela veio junto com a lembrança de um compromisso urgente inventado para descontinuar aquela conversa.
Em casa pude despir aquela fantasia de durão e fui ter com o ombro daquele travesseiro amigo. Depois veio uma curiosidade sobre o texto que Jussara havia escrito. Uma pesquisa na internet e vi que ela discorria rapidamente sobre H.P. Lovecraft. Sua descrição era apaixonada e me fez ficar com vontade de ler algum dos seus contos.
No dia seguinte acordei decidido. Era sempre assim - os dias se repetiram em decisões que se diziam definitivas e eram alternadas por outras com uma pequena variância de 180 graus. Naquele decidi que para o bem da minha saúde mental eu devia me afastar de tudo que me lembrasse a Jussara.
É certo que tinha sido por acidente, mas acidentes deixam sequelas. Uma chaga no meu peito. No meu cérebro eu tinha certeza que uma parte tinha gravado seu sorriso como uma cicatriz de algo que tinha sido no passado um corte profundo que tinha mudado meus paradigmas. Seu jeito encantador parecia um vírus que teimava em se manifestar em toda a sinapse possível. O trabalho da cura seria duro, mas naquele dia e até aquela hora era minha decisão definitiva. Abstinência total, bloqueado/excluído seu telefone, interrupção radical da droga, parar de frequentar lugares que íamos juntos, tratamento de choque, parar de falar com amigos comuns.
Consegui manter a decisão no dia seguinte e como um tratamento de alcoolismo eu pensava repetindo para mim mesmo, num paradoxo sem igual: só por hoje eu não vou pensar nela.
...
Ele tinha deletado todos os seus arquivos de felicidade. O backup? Talvez só com Jussara. No seu tratamento foi se distanciando das pessoas e do mundo. Talvez como efeito colateral, junto com as coisas que lembravam ela, todo o resto fosse perdendo significado. Cada vez mais via tudo como "eles". O "nós" foi saindo do seu mundo e vocabulário. As pessoas percebiam a mudança, mas "eles" seguiam suas vidas. Ele também deveria ser um "ele" para eles e o mundo uma multidão de solitários.
...
Um dia, quando se sentia praticamente pronto para ter alta, foi num café da Biblioteca (ele teimosamente se negava incluir o café entre as coisas que poderiam criar sinapses com o amor da sua vida). Pediu o café e enquanto esperava foi até prateleira onde livros ficavam à disposição para leitura no local. Puxou um de lombada vermelha e um frio lhe percorreu a espinha. O título, “The Outsider”. O autor, “H.P. Lovecraft”. Titubeou. Sinapses borbulhavam querendo uma recaída. Um empurrão com força colocando o livro no seu devido lugar mandou uma mensagem para o cérebro, confirmando que aquela decisão lá de trás estava no comando. “The Outsider” continuaria no lugar e ele continuaria um Outsider. Isto era definitivo. Bom pelo menos até terminar aquele café e observar se sua borra não poderia trazer uma mensagem do além que mudasse tudo. Vai que lá estivesse escrito: “Vá atrás da Jussara!”
E você? Está esperando terminar o seu café?