A SANTA E A PECADORA.
Por razões diversas fui uma criança precoce. Houve sim incentivo dos pais e tias paternas. Desde bebê teve de ser assim, minha mãe esquecia-se de me amamentar; ao receber das tias a mamadeira, arregalava os olhos e a agarrava, era a chance do alimento, sugava até a última gota ! Cresci assim dividido, pelos pais era tratado como adulto e pelas tias, criança:
Seria redundância afirmar qual era o lugar preferido. A educação que meus pais tentaram impor foi, no mínimo , cretina, e o pior é que desde pequenino pensava assim, mas havia uma diferença entre Papai e minha mãe: Ele era Papai; ela, minha mãe... Papai acreditava no diálogo e exemplo, para ele, J. S. Bach tinha respostas para tudo, tese que confirmei mais tarde: Quando não consegui entender trigonometria, ouvi a Tocata de Bach e nunca mais liguei para trigonometria ! Minha mãe era truculenta, ignorante e chantagista emocional: Iria para o Inferno caso a desobedecesse... nunca a obedeci, decerto suportarei bem o diabo
após o estágio com ela. As tias, porém, sempre carinhosas, quando fazia reinações, o que era bem frequente, era admoestado verbalmente.
Mamãe era nordestina, veio criança para São Paulo como retirante de uma forte seca que acometeu Pernambuco nos anos 40. Aqui, em São José dos Campos,justo quando tinha fama de terra curadora de tuberculosos,meu avô contraiu a doença e morreu. No ano de sua morte nasceu tia Aparecida, em 1950. Pouco depois, vovó voltou para Angelim e levou todos os filhos, exceto minha mãe, que ficou sob os cuidados da avó, Maria Lya.
-"Não guardo rancor, não sou rancorosa", dizia minha mãe da avó e mãe : Mentia, não admitia sê-lo porque não ficava bem uma católica guardar rancor, ela era "sentida". Guardar "sentimentos" não é o mesmo que rancor? Foi educada ( não sei se é bem esse o termo) com rigor por minha bisavó, que impediu-a de estudar e ser alfabetizada, para que não trocasse bilhetes com homens. Desde cedo, oito anos, foi posta para trabalhar como doméstica e , por ser criança, pagavam menos e Lya ficava com todo o pagamento.
Enquanto isso, tia Aparecida criou-se livre no interior de Pernambuco, desde criança frequentou forrós, no que é exímia dançarina. Era muito namoradeira, uma sensualidade natural, espontânea, olhar insinuante, que atraía homens facilmente e, além de tudo, era bonita.
Em 1968 fomos visitar a avó em Pernambuco. Fomos de ônibus,jamais esqueci do rio São Francisco, pedaço de céu na Terra...Minhas mãe e avó não se viam desde 1950. Na volta trouxemos tia Aparecida, moraria conosco.
Em poucos dias titia empregou-se como doméstica numa casa no CTA, de um engenheiro professor do ITA, ali trabalhou por quase 3 anos. Eu a adorava, toda manhã deixava-me moedinhas no cantinho da mesa para que comprasse doces na escola, saía bem cedo, bem antes de mim, sob a névoa fria, nunca faltou. No fim de tarde jogávamos frescobol ou peteca na rua Genésia B. Tarantino, competíamos dando gritos de prazer ao realizarmos defesas difíceis ou, então, íamos ao playground e ela me balançava por horas, quanto mais alto melhor.
Passeios dela só eram permitidos sob minha escolta, com a tácita incumbência de vigiá-la e relatar se paquerou. Rápida, livre e espontaneamente propus à tia um trato, faria vistas grossas contanto que me comprasse doces e presentes, jamais relatei qualquer coisa sobre as dezenas de rapazes que se aproximavam para conversar, ocasião em que ela me mandava ir comprar pipocas e doces. Fui o guardião mais relapso e corruptível da paróquia ! sabia que se desse com a língua nos dentes perderia passeios, doces e pipocas.
Veio a fase de namoros e o primeiro foi um partidão, estudante de engenharia do ITA, chamava-se Prnn (pronuncia-se Prim). Estranhei tanto o nome que o batizei Pena, claro que antes disse a razão, que seu nome era ridículo. Na verdade ele gostava muito dela, mas minha mãe desaprovou :" É estudante, vagabundo, demorará para ter emprego e não se casará com uma doméstica quando for importante". Enganou-se,
Prnn casou-se mais tarde com outra doméstica, com quem vive até hoje, mais de 40 anos depois, num palacete na zona nobre da cidade rodeado de netos.
Namorar era importante para titia, queria casar-se e estabelecer-se em definitivo no estado de São Paulo, paquerava bastante, mas o tom dela mudava de figura caso o sujeito manifestasse a intenção de compromisso. Prnn foi assim, do mesmo modo Diego e Odálio. Diego conheceu-a num baile, era mulato e morava em Guarulhos. Namoraram escondidos. Um dia esqueceram-se da hora e por isso ele chamou um taxi, justo o de tio João, irmão de minha mãe... mas ele gostou de Diego, ao ponto de convidá-lo para uma feijoada no fim de semana e ficou de conversar com minha mãe. Após a feijoada e muita conversa,titio levou-os até minha casa para apresentar o rapaz. Ao vê-lo pela janela, minha mãe recusou-se a recebê-lo e disse bem alto que não admitiria a irmã namorando gente de cabelo ruim. Titia teve o grande problema de sempre se abater com as críticas e intromissões da irmã, não só se abatia como rompia com os pretendentes, mas com Odálio foi diferente.
Ignoro como e quando se conheceram, só sei que era garçon em São Paulo. minha mãe o odiou, não sei bem a razão. Ridiculamente ( e mais tarde fez algo do gênero comigo), minha mãe tentou dar uma de casamenteira e apresentou à titia o que entendia como "bom partido": Um quarentão gordo, calvo , banguelo dos dentes frontais e açougueiro - Tia Aparecida e eu rimos na cara dele ! Fui mais adiante e ri na cara de minha mãe, apanhei.
Pouco depois, mudamo-nos para um bairro melhor e tia Aparecida arrumou emprego num dos três únicos edifícios de apartamentos na cidade, em frente ao jardim do Sapo, mas foi só por uns dias, num deles sumiu. Após ir a hospitais, delegacias, minha mãe foi ter com a patroa de minha tia e lá soube de uma carta, na qual titia se desculpava com a patroa e avisava que fugira com o noivo para a Capital. Minha mãe ficou possessa e eu, às escondidas, fiz como o Mutley do Dick Vigarista...
Ficamos meses sem notícias e minha mãe não achou engraçado quando chamei sua irmã de tia Desaparecida... parecia marido traído, com toda a carga melodramática que a comparação possa conter. Sempre fui glacial em circunstâncias assim, no fundo, achei que titia fizera o certo, tinha mesmo de casar e deixar de ser empregada doméstica. Seis meses depois visitou uma tia e por acaso nos encontramos, indagou-me sobre o que minha mãe dizia dela, disse-lhe a verdade, puta, e acrescentei não pensar o mesmo, que ela tinha direito de ser feliz e escolher as coisas de sua vida,beijou-me em lágrimas, eu tinha dez anos.
Teve um filho com Odálio, Cláudio,e a união não durou mais que três anos. Seguiram-se outras, muitas, tanto em São Paulo quanto em Pernambuco, não sei nem quantos filhos teve, só ficou com o Cláudio.Para usar de franqueza, houve um período no qual nem se sabia de seu paradeiro. Ignoro o que fez para sobreviver, até que bem mais tarde, quando eu já era um rapaz,voltou a morar conosco. Minha mãe era arrumadeira de hotel e colocou-a no trabalho, pois era muito respeitada, tanto que aceitaram minha tia grávida. Uns dois meses depois veio a reclamação, tia Aparecida prostituía-se, mesmo com um barrigão enorme,com os hóspedes.
Antes de ouvir qualquer sermão, titia veio para casa, arrumou às pressas as malas e deu o fora com o Cláudio, fugiu para Pernambuco com o dinheiro da prostituição. Dessa vez não ri, tive pena de minha mãe, que pediu demissão cheia de vergonha, lamentei isso e ajudou o fato de que ficaria dentro de casa me enchendo o dia todo.
Anos depois , titia voltou a morar conosco, mas dessa vez houve um trato claro, seria por algumas semanas até alugasse sua própria casa. Pouco após sair, casou-se e até hoje vive com o marido, com quem teve dois filhos.
Quando minha mãe morreu foi tia Aparecida quem mais chorou, chegou a sentir-se mal; os maldosos comentaram que por remorsos, o que discordo - Chorou porque tem bom coração, ao ponto de deixar moedinhas no cantinho da mesa para o sobrinho pobre comprar doces e, apesar dos pesares, por ainda estimar a irmã: A santa é que devia desculpas à pecadora!