O último final de semana

O sol entrava intenso pela janela escancarada do quarto. Bruna estava de costas para a janela, olhando para o interior do guarda-roupa, parecia indecisa. Pegou algumas peças depois de vários minutos e as enfiou dentro de uma mala preta sobre a cama. Olhou para a escrivaninha, um computador e vários outros objetos, de fones de ouvido à vidros de perfume, preenchiam a superfície.

Se aproximou da janela. O céu estava num tom de azul maravilhoso e quase não haviam nuvens. Viu quando um carro se aproximou e buzinou por duas vezes. Pegou o óculos de sol de cima da escrivaninha e fechou a mala com um movimento ligeiro. Parou em frente ao espelho por um instante e ajeitou o cabelo, seu olhar adolescente brilhava. Pegou a mala e a arrastou até o lado de fora da casa.

Uma garota um pouco mais velha que ela a esperava encostada no carro. Bruna deixou a mala de lado e envolveu os braços ao redor de seu pescoço, beijando-a rapidamente. Bruna guardou a mala no porta-malas e adentrou o carro.

- Você avisou seus pais? - Perguntou a garota.

- É claro que avisei.

- Pelo jeito eles não estão em casa, você trancou a porta.

- Saíram bem cedo e não me disseram para onde iam. Acho que era demais para a minha mãe me ver saindo com outra garota. - Abrindo um minúsculo sorriso.

- E como estão as coisas entre vocês? - Perguntou olhando pelo retrovisor.

- Melhores. Ela ainda acha que é só uma fase.

- Dê um tempo para ela.

- O quanto ela quiser. E o que o seu pai achou de você passar um final de semana inteiro longe?

- Não gostou muito da ideia. - Olhando-a rapidamente. - Acho que essa é a primeira vez que fico longe dele desde que minha mãe morreu. - Pausa. - O que você quer ouvir?

- Menos os sertanejos do seu pai.

- Deixa ele ouvir você falando assim. - Sorrindo.

- Você também não gosta.

- Culpada. - Vasculhando o porta-luvas.

Puxou um pendrive e o girou na mão.

- Não lembro desse aqui.

- Que não seja do seu pai.

- Que não seja do meu pai.

Colocou o pendrive na entrada USB do rádio e logo começou a tocar Lorde.

- Se quiser trocar fique a vontade.

- Não, eu gosto dela. Nós vamos voltar no domingo de manhã?

- Depois do almoço. Por mim voltaria só na segunda, mas meu pai vai precisar do carro.

- Por mim eu nem voltaria. - Apertando sua perna um pouco acima do joelho.

Ela se contorceu.

- Não faça isso, sabe que tenho cócegas.

- Desculpe, era para ter sido um pouco mais para cima.

***

Bruna abriu a porta do quarto onde ficariam hospedadas. Tons de branco e pérola tomaram seus olhos. Se jogou na cama de casal e ficou olhando para a porta.

- Quer ajuda, Tati!? - Gritou.

- Não madame. - Surgindo na porta. Sua mala estava pendurada no ombro e arrastava a da namorada.

- Quer gorjeta? - Debochada.

- Eu quero o salário inteiro. - Deixando as malas no chão e deitando-se sobre ela.

A observou por alguns instantes e deslizou o dedo por sua boca, acompanhando o movimento com os olhos, em seguida a beijou.

- O que você quer fazer? - Quis saber Bruna.

- Eu pensei em darmos uma volta agora e deixarmos a praia para amanhã.

- Já está tarde para ir a praia.

- Eu vou no banheiro e a gente já sai. - Se levantando. - Você está com fome? - Perguntou ao retornar.

- Morrendo, eu ia sugerir exatamente isso.

- Lanche ou pizza?

- Lanche.

***

Tati estacionou o carro em frente a uma lanchonete praticamente vazia e saltaram. As paredes eram pintadas num tom de amarelo intenso, as mesas e cadeiras eram de um tom também amarelo porém mais fraco. Pôsteres de promoções e quadros com lanches apetitosos se espalhavam pelas paredes. Um rapaz se aproximou com dois cardápios em mãos assim que elas se sentaram. Anotou os pedidos e logo saiu. Bruna olhou ao redor rapidamente e pegou o celular de cima da mesa. Deslizava o dedo pela tela do aparelho quando sentiu um canudo a acertar no nariz.

- Quantos anos você tem? - Pegando o canudo.

Tati gargalhava.

- Se pegar o celular de novo eu vou jogar o porta guardanapo. - Disse depois de vários minutos.

- Quer confiscar? - Estendendo-o em sua direção.

- Não, mas está avisada.

O mesmo rapaz que anotou os pedidos se aproximou com uma bandeja com os lanches e dois copos de suco. Tati a olhava com um meio sorriso.

Quando saíram da lanchonete o sol havia se escondido fazia algumas horas e as ruas estavam cheias de pessoas indo de um lado para o outro, rindo e conversando. Resolveram deixar o carro de lado e caminhar. Tati , um pouco mais a frente, gesticulou para que pulasse em suas costas, em seguida ziguezaguearam pela calçada.

***

O celular vibrava em cima de um criado mudo, insistente. Tati esticou o braço e tateou atrás do aparelho.

- Alô? - Sem abrir os olhos.

- Você ainda está dormindo! - Soou a voz do seu pai alta demais em seu ouvido.

- Estava. - Girando o corpo.

- Que horas vocês foram dormir ontem?

- Não tenho ideia. - Passando as mãos pelos olhos e bocejando.

- Muito tarde pelo jeito.

- Precisa de alguma coisa?

- Não. Um pai não pode apenas ligar para sua filha?

- Você sabe que não foi isso que eu quis dizer.

- Não esquece que eu vou precisar do carro no domingo. - Disse depois de um pequeno silêncio. - Estou com saudades.

- Também estou. Até domingo.

- Te amo.

- Eu também.

Encerrou a ligação e o colocou de volta no lugar.

- Era seu pai?

- O próprio. - Virando-se de frente para ela. - Bom dia. - Beijando-a rapidamente.

- Bom dia. Ele ligou para saber a que horas a bebezinha dormiu?

- Mais ou menos isso. - Sorrindo. - Depois do almoço a gente vai direto para a praia, tudo bem?

- Tudo.

***

Já era noite quando elas desabaram sobre a areia, exaustas. O céu escuro estava salpicado de estrelas brilhantes. Poucas pessoas ainda continuavam na praia. Elas ficaram em silêncio, apenas escutando o barulho das águas. Tati fechou os olhos por um instante e respirou profundamente, sentindo o ar fresco e úmido.

- Tá vendo aquela estrela? - Apontando-a com o dedo.

- O que tem ela?

- Talvez ela já esteja morta.

- Como assim?

- O brilho da estrela demora milhares de anos para viajar até a terra, dependendo da distância dela. Quando uma estrela morre, para nós, o brilho dela demora milhares de anos para se apagar.

- Não sabia que você gostava dessas coisas. - Encarando-a.

- O universo é fascinante.

***

Bruna estava jogada na cama com um livro aberto na frente do rosto, quando seu celular começou a tocar ao seu lado. Era a Tati.

- Já está com saudades? - Sorrindo.

- Nós precisamos conversar. - Sua voz estava embargada por lágrimas.

- O que aconteceu? - Se levantando. - Você está chorando?

- Meu pai.

- O que tem ele. Ele está doente?

- Não… ele foi transferido.

- Transferido para onde?

- Para outra filial da empresa.

- E como nós ficamos? - Sentiu um nó se formar em sua garganta.

- Você não entendeu, eu estou indo embora do Brasil.

- Embora… do Brasil?

- Eu sinto muito, mas não posso fazer nada.

Silêncio.

- Quando você vai?

- Amanhã cedo. Eu não queria que isso tivesse acontecido, eu realmente não queria.

- Também não. - Encarando a cama com o olhar absorto.

- Antes de ir eu vou passar na sua casa para me despedir.

- Eu te amo.

- Você sabe que eu também.

Bruna encerrou a ligação e jogou o celular sobre a cama. Apertou o travesseiro contra o rosto e sentiu as lágrimas molharem o tecido.

***

Doze anos depois.

Bruna pegou uma maçã da fruteira em cima da mesa da cozinha. Seu cabelo estava preso em um “rabo de cavalo” alto, tinha ganhado traços mais maduros e seu olhar continuava com o mesmo brilho de quando era adolescente.

- Você não vai tomar café? - Perguntou sua mãe sentada na sala, seus cabelos tinham ganhado alguns fios brancos.

- Estou atrasada. Não vou almoçar em casa hoje.

- Vai com Deus. - Olhando-a.

- Fica com ele.

Ela fechou a porta atrás de si e enfiou a mão dentro da bolsa, procurando a chave do carro, enquanto seguia até o portão.

- Você ainda mora na mesma casa. - Disse uma voz feminina.

Bruna congelou. A dona da voz se aproximou.

- Tati? - Perguntou, não reconhecendo-a.

Ela assentiu, abrindo um ligeiro sorriso. Seus cabelos, antes loiros, agora tinham ganhado um tom de preto muito escuro, tatuagens pequenas coloriam seus braços e pescoço.

- Você está… diferente.

- É. - Enfiando as mãos nos bolsos de trás da calça.

Elas pareciam duas estranhas, como se nunca tivessem se encontrado antes.

- Você está de férias aqui?

- Não, vim para ficar.

Silêncio.

- As coisas mudaram muito por aqui. - Olhando ao redor.

- Anos se passaram. Você se importa de conversarmos depois? Estou atrasada para o trabalho.

- Desculpe, até mais então.

Tati se afastou um tanto sem graça e voltou para o seu carro. Bruna a encarou por alguns instantes e arqueou a sobrancelha.

Já era noite quando voltou para casa. Fechou a porta do quarto, colocou a bolsa sobre a cama e se deitou. Fazia pelo menos oitos anos que não tinha qualquer notícia dela e de repente a encontrou na porta de casa, não sabia direito o que pensar. Lembranças do último final de semana na praia que passaram juntas tomaram seus pensamentos, fazendo um pequeno sorriso surgir. Parecia que ainda podia sentir a frieza da água que Tati lançava contra seu rosto, aquele com certeza tinha sido o melhor final de semana da sua vida.

Pegou o celular de dentro da bolsa. Ainda mantinha fotos das duas guardadas. Encarou uma foto das duas sorridentes e de rostos colados. Guardou o celular e voltou a se deitar.

***

Bruna parou o carro em frente a uma casa toda murada e com o portão alto e escuro. Algumas poucas pessoas circulavam por ali. Saltou do carro e apertou o interfone.

- Oi. - Disse a voz da Tati do outro lado.

- Sou eu, será que a gente pode conversar?

- Claro, só um segundo.

Escutou o barulho do portão sendo destrancado e entrou. Tati surgiu na porta.

- Você sempre foi em casa, hoje eu vim até a sua.

- Como você descobriu?

- Essa casa é de um amigo meu.

- Pode entrar. - Abrindo espaço para que entrasse na casa. - Tem algumas caixas espalhadas pela casa ainda.

Bruna passou pela porta e logo viu duas caixas empilhadas no canto. Os sofás eram de um tom de cinza quase preto e a estante retangular estava vazia.

- Faz tempo que você voltou? - Sentando-se.

- Dois dias.

- E o seu pai?

- Quer beber alguma coisa?

- Não, obrigada.

- Meu pai morreu tem três anos. - Sentando-se ao seu lado.

- Sinto muito. - Colocando a mão sobre seu braço, mas rapidamente a tirou. - Foi por isso que você voltou?

- Também. Lá eu era apenas uma sombra do meu pai, aqui eu sou ou pelo menos era alguém.

Silêncio. Bruna olhou ao redor e respirou profundamente antes de voltar a falar.

- Eu nunca consegui ficar com ninguém depois de você.

- Eu também não. Eu não queria ter ido embora. - Pausa. - Eu tentei me despedir mas você não estava.

- Desculpa por isso, Eu não ia conseguir me despedir de você.

- Achei que estava com raiva.

- Não, claro que não.

- Você quase não respondia minhas mensagens.

- Eu queria apagar você da minha vida. - Voltando o olhar para o chão.

- E conseguiu? - Olhando-a com se dissesse “não diga que me esqueceu”.

- Não.

- Você quer dar outra chance para nós? - Colocando sua mão sobre a dela no sofá.

Bruna olhou para suas mãos unidas.

- Eu pensei que esse dia jamais chegaria. - Sorrindo.

Seus dedos se entrelaçaram e seus olhares se encontraram com o mesmo brilho apaixonado de anos atrás.

Alice Moraes
Enviado por Alice Moraes em 04/09/2018
Reeditado em 26/11/2018
Código do texto: T6439493
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