CORAÇÕES SOLITÁRIOS
Como era costume sempre que estava de escala, Luciana saía de casa bem cedo, mais do que o necessário, para poder apanhar o metro sem se sujeitar a apertos. Chegava à clínica onde trabalhava como enfermeira estagiária mas antes de entrar, tomava o pequeno almoço numa cafetaria que se situava a poucos metros da entrada do estabelecimento de saúde.
Os dias decorriam mornos, sem grandes sobressaltos, a rotina era uma pasmaceira pois como ainda estava em início de carreira e apesar de aprender tudo sem problemas, as tarefas mais difíceis demoravam a ser-lhe atribuídas.
Ao fim de três meses, confiaram mais nela e passou a catalogar material de uso corrente, inventariando e suprindo as faltas através de requisições.
Foi num dia igual a outros tantos que ela conheceu Pedro. Estava sentado num banco comprido, junto à sala de espera para as visitas dos doentes de cardiologia e chorava convulsivamente. Meteu-lhe dó e sentou-se ao seu lado, tentando confortá-lo.
- Então o que se passa consigo?
- A minha mãe teve um AVC fulminante e já não fala nem se mexe…
- Tenha fé, ela ainda pode recuperar pois há casos que parecem milagre, mas as pessoas acabam por voltar lentamente à sua vida…
- Os médicos tiraram-me as esperanças…
Luciana esteve mais um pouco com ele e depois regressou aos seus deveres, não podia estar ali parada indefinidamente. A enfermeira-chefe era muito rigorosa e cabia-lhe a avaliação, não deixando passar um pequeno pormenor que fosse.
O dia passou e esqueceu o episódio pois a dor e o sofrimento eram uma constante, algo de vulgar naquela clínica ou em qualquer hospital.
Uma semana depois, encontrou Pedro junto ao guiché da secretaria. Notou que estava de luto, adivinhou o desfecho…
- A sua mãe faleceu? – ele assentiu – Os meus pêsames… - e tocou-lhe amigavelmente no ombro.
- O funeral foi ontem...
Pedro começou a chorar, estava inconsolável. Luciana lembrou o desgosto que tivera quando seu pai se finara devido a cancro dos pulmões, teimoso por nunca abandonar o vício do fumo. Entendeu que dificilmente o poderia reconfortar, o desgosto ainda estava demasiado presente.
Algum tempo passado, num dia de primavera, estava exultante pois a avaliação de desempenho dela tinha sido de Muito Bom, o que contava e muito para o seu currículo profissional. Foi com duas colegas à cafetaria em frente e quando se ia a sentar numa mesa, deparou com Pedro, olhos encovados, magro e triste, instalado num lugar afastado.
Ela foi ter com ele, perante o olhar curioso das colegas.
- Então, como vai reagindo?
- Custa muito viver assim, habitava só com a minha mãe, meus dois irmãos estão longe, emigrados na Alemanha e meu pai já morreu há muitos anos, era eu pequeno. Ainda me parece tudo um pesadelo. Só de ver todos aqueles retratos sobre os móveis, ela só e também com familiares…
- Vá lá, tem de reagir… Depois de um desgosto desses, pode ser que a vida lhe sorria de novo.
- Não acredito.
Luciana olhava-o e sentia imensa pena dele. Apesar de terem idades aproximadas (supunha) , Pedro despertava-lhe um sentimento quase maternal. Instintivamente, fez-lhe uma carícia no rosto, depois corou e baixou os olhos, percebendo que as colegas os olhavam divertidas.
Ele olhou para ela com os olhos rasos de água e balbuciou algumas palavras de agradecimento, quase inaudíveis.
- Fique com Deus – e dizendo isto, Luciana levantou-se da cadeira e caminhou para as colegas, o coração apertado, sentindo florir no peito um sentimento até aí desconhecido para ela.
Elas cercaram-na de perguntas, muitas mais diretas, outras indiscretas, malévolas.
Luciana bebeu o café e rapidamente saiu daquele amplo espaço, seguida das colegas. Antes olhou de soslaio para Pedro. Ele ficou ali, distante, num mundo estranho…
Ela debateu-se ao longo do dia com sentimentos contraditórios, estava distraída, com dificuldade de se concentrar. Não conseguia explicar a atração que sentia por ele, pois apenas se haviam encontrado três vezes e tinham trocado meia-dúzia de frases.
As colegas espicaçavam-na, incitavam a que o procurasse e se tornasse mais próximo dele, uma sugeriu que o levasse para a cama. Ela repudiou de imediato essa ideia e olhou a outra com ira.
O tempo passou e num dia de verão, calor em demasia, passeando pelos arruamentos quase desertos à beira-rio, junto a Belém, lembrou-se que ali perto ficava situado o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia. Caminhou até lá rapidamente e afogueada, dirigiu-se à bilheteira.
Na fila para adquirir o ingresso, percebeu que Pedro também lá estava, bem à sua frente, aguardando vez.
Após alguma indecisão, logo que comprou bilhete deu uns passos e chegou junto dele, que aguardava a vez para entrar.
- Olá, como tem passado?
O olhar dele iluminou-se e isso deu-lhe uma agradável sensação de bem-estar.
- Eu… lá vou andando… dei para a Cáritas toda a roupa da minha mãe e apenas conservei as fotos dela e alguns bibelôs. Os meus irmãos só vieram depois, trabalhavam no duro e as viagens a partir da Alemanha saíam muito caras, só nas férias. Eu desculpei-os, pois têm filhos e a vida por lá está difícil. Tem sido muito difícil superar esta falta...
Pedro parou de falar e olhou-a demoradamente.
- Há tempo que queria visitar este museu. E agora, num grande acaso, encontro-o aqui... – disse-lhe Luciana, com o bilhete na mão. Sentira-se olhada com ternura e isso deixou-a inexplicavelmente bem.
- Eu também sinto o mesmo, quer dizer, alegria por a encontrar – respondeu Pedro, atrapalhado.
Ela sorriu e então enfiou o braço no dele. Chegou-se mais e carinhosamente, sussurrou:
- Esperemos que não seja uma desilusão.
Luciana instintivamente fechou os olhos e lembrou o diálogo entre Claude Rains e Humphrey Bogart no final do filme Casablanca: - “Rick, espero que este seja o início de uma bela amizade…”