A unha encravada

Noite alta, quando Jeremias chegou à casa (que era de Francisca, mas onde ele passava a maior parte do tempo agora), e a encontrou no escuro, na sala de visitas, soube que algo de grave havia acontecido. Sentou-se aos pés da parceira, instalada na mesma cadeira de braços onde, mais de um ano atrás ela recebera os visitantes após a morte de Arthur, e beijou as mãos que ela lhe estendeu, expressão absorta.

- Como foi seu dia de trabalho? - Indagou ela finalmente.

- Bem... e sua visita à Juliana?

Francisca suspirou.

- Bem. Ela concordou com a nossa parceria.

Em outras circunstâncias, a notícia teria sido motivo de comemoração, mas o belo rosto de Francisca deixava transparecer que havia um alto preço a pagar. Jeremias hesitou, mas tinha que fazer a perguntar.

- Sob quais condições, posso perguntar?

- Pode - Francisca inclinou a cabeça e acariciou os cabelos do homem aos seus pés. - Ela quer Alice em troca.

- Como?! - Exclamou Jeremias, indignado. - Juliana quer a nossa filha? Para quê?

- Para criá-la, segundo disse.

Jeremias parecia genuinamente perdido.

- Mas... ela nunca demonstrou qualquer interesse em conhecer a sobrinha! Por que faria questão de criar a menina? E com quais intenções?

Na penumbra da sala, o olhar de Francisca era de tristeza.

- Eu conheço minha irmã; acredito que será uma excelente mãe para Alice... mas também acredito que se ela sair desta casa, nós vamos perdê-la, de um jeito ou de outro. Desde que cheguei, estou aqui pensando num modo de evitar isso... e, ao mesmo tempo, que ela concorde em oficializar nossa parceria.

- Você tentou fazer isso via Grande Conselho, lembra? - Redarguiu Jeremias. - E a resposta foi negativa por conta da sua idade... temem que se tivesse outra criança, ela pudesse nascer com problemas.

- Eu precisava tentar... por nós - retrucou Francisca com um sorriso pálido. Mas agora... eu não sei... estou remoendo ideias e não consigo atinar com nada que possa usar para sair dessa situação.

- Situação na qual você foi colocada pelo Grande Conselho! - Protestou Jeremias, encarando a amada.

Francisca tomou as mãos dele entre as suas e as apertou com força, testa franzida.

- Não exatamente pelo Grande Conselho... por uma pessoa... a reverenda ministra Samara!

Soltou as mãos de Jeremias e ficou de pé, subitamente tomada por um ímpeto que fazia crer que a Francisca determinada que ele conhecera, estava de volta.

- A reverenda Samara... ela vai ter que me ajudar a sair desse impasse!

* * *

A reverenda ministra Samara recebeu Francisca em seu gabinete na Congregação. Uma noviça de hábito cinza abriu a porta para que a visitante entrasse, e esta deparou-se com a religiosa aguardando por ela de pé, junto a lareira acesa com nós de pinho. Trocaram beijos protocolares no rosto e Samara convidou-a a sentar-se numa das duas cadeiras junto ao fogo, aboletando-se na outra.

- A noite está fria, não é? - Disse com um sorriso simpático.

- Sim... para esta época do ano - acedeu Francisca.

- Imagino que vir aqui hoje, à minha procura tenha alguma relação com Jeremias...

- Sim... e também com Alice.

Fez um resumo de sua visita à irmã e das condições que ela impusera para aceitar a parceria com Jeremias. Samara ouviu, impassível, mãos entrelaçadas no colo.

- E o que você quer que eu faça? - Indagou finalmente. - Não posso obrigar sua irmã a aceitar o seu pedido, da mesma forma que você não está obrigada a aceitar os termos dela.

Francisca lançou-lhe um olhar duro.

- Reverenda ministra... lembro-me de quando foi à minha procura, logo após a morte de Arthur e me disse que eu estava em falta... não com o Grande Conselho, mas com você, especificamente.

Samara balançou a cabeça, em concordância.

- Sim, foram as minhas palavras exatas. Você tem boa memória... mas o que isso prova? Eu estava em missão oficial. Naquela noite, na sua casa, eu era o Grande Conselho!

Francisca inclinou o corpo para a frente e encarou Samara nos olhos.

- Pois eu cumpri a minha parte no nosso trato; tive a filha que você, reverenda ministra, determinou que eu tivesse. O que peço agora é que honre a sua parte e me permita criá-la com o homem que me foi designado, antes mesmo que eu houvesse decidido ficar com Arthur.

A religiosa deu-lhe um olhar de aprovação.

- Você defende bem os seus pontos de vista, tenho que reconhecer. Mas a minha responsabilidade no que tange à sua situação, esgotou-se no momento em que lhe foi negada a possibilidade de ter uma segunda filha com Jeremias. Legal e eticamente não há nada que eu - ou o Grande Conselho - possa fazer para solucionar a questão nos seus termos. Todavia...

Parou de falar por um instante, para avivar as chamas da lareira com um atiçador de ferro.

- ... posso fazer uma análise de como vejo a sua pendência com Juliana, e como poderá resolvê-la. Isso se você quiser realmente MUITO manter Alice e Jeremias sob o mesmo teto que você, e reconquistar o amor da sua irmã.

- Eu quero - afirmou Francisca, punhos cerrados.

Samara balançou a cabeça.

- Vai precisar querer de verdade. Sabe o que é uma unha encravada?

- Apenas teoricamente... - Francisca estava receosa do rumo que a conversa estava tomando, mas fora longe demais para recuar agora.

- Pois então... você tem essa unha encravada... essa mágoa e esse ressentimento em relação à sua irmã, embora ela tenha também todos os motivos plausíveis para sentir o mesmo em relação a você. Você conviveu muito bem com a sua unha doente, e provavelmente nem lembrava mais que ela existia... até que Juliana fez sua proposta. E aí, foi como se você houvesse acertado o dedão do pé... aquele com a unha encravada... numa pedra. Posso até admitir que Juliana provavelmente vem sentindo essa dor da topada há muito mais tempo e muito mais forte do que você... só que agora ela gritou um palavrão, bem alto, com toda a força dos pulmões. E isso deve ter tido um efeito catártico, imagino.

Francisca ouvia, em silêncio. A reverenda ministra estava sorrindo da sua própria analogia.

- E você também está querendo soltar esse grito de dor que está preso em você, para que a dor passe... ao menos, momentaneamente. Mas esse não é o remédio adequado, nem para você, nem para ela.

- E qual é o remédio, reverenda ministra?

- O remédio é admitir que ambas estão doentes e buscar a cura, não o desabafo, o alívio temporário. Enquanto não buscarem esse tratamento, de modo sincero e efetivo, tudo o que farão será machucar-se uma a outra, mais e mais.

Francisca nada disse, cabisbaixa. No seu íntimo, ela sabia que a reverenda ministra tinha razão.

- [27-08-2018]