A OUTRA METADE DA LARANJA

A ninguém é fácil encontrar sua outra metade da laranja. Afinal, são mais de catorze bilhões de meias-laranjas, todas embaralhadas no imenso balaio planetário. O que faz dessa busca não só uma loteria, mas a loteria mais difícil do mundo! É comum ouvirmos pessoas que dizem ter encontrado sua outra metade, sua alma gêmea... Mas isso nem sempre, ou quase nunca, reflete uma verdade, e sim um desejo, uma esperança de que acertaram na escolha. São metades parecidas de duas laranjas diferentes, cujos encaixes parecem perfeitos. Contudo, essa aparente perfeição, no mais das vezes, é apenas de superfície, não se confirmando no interior da laranja. Muitas parcerias se formam a partir desses encaixes inexatos, resultando, às vezes, em relacionamentos até quase felizes.

Léo, entretanto, encontrou numa pequena cidade do norte mineiro sua outra metade exata. Ele, que veio do Sul para realizar um trabalho na cidade, onde devia demorar-se por duas semanas, inesperadamente esbarra com aquela que seria, segundo ele acredita, o seu complemento. Encantado, estendeu sua permanência ali para três semanas, durante as quais viveu os dias mais intensos e felizes de sua existência! Aos vinte e seis anos, encontrou numa adolescente de dezessete a parceira ideal.

O primeiro encontro deu-se na agência dos correios, onde ele entrou para enviar um telegrama. Concluída a tarefa, caminhava para a saída no momento em que ela entrava. Ela sorriu, ele também. Ele saiu e ficou na calçada, esperando a vez de ela sair. E quando saiu, seguiram juntos para a praça central da cidade, bem perto dali e da casa em que ela morava. No trajeto, conversaram como se velhos conhecidos fossem.

Naquela mesma noite, ele foi a um evento onde ela, a rainha disco do lugar, se apresentaria. Se conhecê-la causou-lhe grande impacto, vê-la dançar o pôs literalmente a seus pés. Daquele momento em diante, grudaram um no outro e só desgrudaram no dia em que ele precisou voltar para seu estado. Que ela esperasse. Ele voltaria. Mas não voltou, porque a vida nem sempre obedece aos nossos desígnios.

O capítulo seguinte ocorreu três anos depois, se é que de fato ocorreu. Ele tomou um voo em São Paulo, com destino a Cuiabá. Sua poltrona ficava na parte anterior do avião, um pouco à frente da asa. Algum incidente, que ele nunca soube o quê, fez com que olhasse para o fundo da aeronave. Foi então que vislumbrou uma silhueta feminina, a retirar algo do bagageiro. É ela! Quando desembarcarmos, vou esperá-la passar por aqui e falarei com ela - pensou. Nos trinta minutos que ainda durou o voo, ele não conseguiu mais ler nem ouvir música. Ansiava por falar com ela.

O avião pousou em Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá, e por alguma razão, os passageiros da parte posterior tiveram que desembarcar por uma porta situada atrás. Formou-se um pequeno tumulto no corredor e ele não conseguiu vê-la desembarcar. Na fila da bagagem ela não estava. De modo que ele saiu do aeroporto sem conseguir vê-la, muito menos falar com ela.

Pegou um táxi para a estação rodoviária, onde tomaria um ônibus para Diamantino. Soube que o próximo ônibus demoraria duas horas para partir. Então, comprou um jornal e procurou um local onde pudesse tomar um café, enquanto lia. De repente, viu alguém que subia a escada para outro piso da estação. Era ela! Largou o café pela metade, atirou o jornal sobre a cadeira e subiu a escada. Lá estava ela, com a mesma blusa que usava no avião. Aproximou-se devagar, antegozando um reencontro tão tardio quanto inesperado. Queria ver sua cara de surpresa, sua alegria, o sorriso mais iluminado deste mundo! Já ia tocá-la, mas ela virou-se e o fez murchar como um balão espetado por alfinete. Não era ela! Pediu desculpa, sem que a pobre moça sequer entendesse por que, e fastou-se profundamente decepcionado.

No ônibus para Diamantino, sentou-se ao lado de um monsenhor, auxiliar do bispo da diocese local.Conversa vai, conversa vem, perguntou ao religioso se, aos vinte e nove anos, alguém podia tornar-se seminarista. (Podia sim!). Mas omitiu que era casado, separado e esperava o desenrolar do divórcio. Refletia que seu casamento era a junção da metade de uma laranja com a metade de um limão. E se não era possível juntar as metades corretas, melhor era o celibato. Manteria contato com esse monsenhor. A ideia do seminário ganhava espaço em seus pensamentos. O divórcio arrastou-se por vários anos. A mulher não abria mão do único bem que o casal possuía: a casa. Por ele, já teria aberto mão disso na primeira audiência. Mas o advogado sempre o desaconselhava. Por fim, entendeu que o causídico estava a beneficiar-se financeiramente da situação. Ofereceu-lhe um honorário extra, para encerrar de vez aquilo, e o divórcio se concretizou. A mulher ficou com a casa.

A ideia do seminário o tempo encarregou-se de transformar em cinzas.

Passados outros três anos, e vivendo então numa capital da região Norte, a empresa em que trabalhava o mandou a Belo Horizonte, para um curso em organização & métodos. Chegou a Beagá numa quinta-feira e lá permaneceria por duas semanas. À noite, no hotel, bolou um plano para o fim de semana. Ir à cidade dela, no interior do estado. Se não a encontrasse, pelo menos saberia notícias. Imaginava como ela devia estar linda, no esplendor dos vinte e três anos! Estava decidido: sexta-feira à noite viajaria para o norte de Minas, onde passaria o fim de semana. De noite, os planos parecem tão fáceis! A gente se enche de coragem e toma decisões que, ao amanhecer, revelam-se absurdas.

Dia seguinte, no intervalo do almoço, pediria ao moto-boy que comprasse uma passagem para Montes Claros, de onde tomaria outro ônibus, ou um táxi, para a cidade dela. Mas a luz do dia o fez raciocinar mais claramente. E se ela não estivesse mais na cidade? E se estivesse casada, noiva ou namorada de alguém? E, mesmo se não o estivesse, será que ainda o receberia? E, pior: se ela o odiasse por nunca mais ter dado notícias, além de umas dezenas de cartas nos dois primeiros anos que se seguiram à despedida? Desistiu.

Décadas se passaram. Ele às vezes se flagrava a pensar em como estaria ela, se ainda viveria. Afinal, somos todos mortais. Mas sem perder a convicção de que, se havia mesmo outra metade da sua laranja, essa metade era - ou teria sido - ela. De forma que empreendeu uma busca nas redes sociais. Busca essa que se estendeu por vários anos, até finalmente a encontrar. Soube, depois, que essa busca demorou tanto porque ela estivera casada e, enquanto durou o casamento, adotou o sobrenome estrangeiro do marido.

O reencontro virtual coincidiu com um período em que ela estava de férias no Brasil. Isso permitiu que se comunicassem com bastante frequência naqueles dias, já que ela agora dispunha de tempo. E, nesses contatos, ele descobriu que nunca a esquecera; que jamais deixara de amá-la; que seu sentimento estivera em estado de hibernação, mas agora reacendia, se revigorava e preparava-se para o reencontro real.

Mas ela assustou-se com a empolgação dele. Advertiu-o de que não era mais aquela adolescente que ele conhecera no passado; que era hoje uma mulher de meia idade; que ele podia decepcionar-se num encontro real. Ele contra-argumentou que ela talvez não soubesse, mas o que sentia por ela ia além do físico, do material, e até do emocional, adentrando a casa do espiritual. Que ele sabia que ela não era mais uma adolescente, mas que isso não o fazia desistir do reencontro. Queria vê-la, dar-lhe um abraço, conversar com ela, matar a saudade...

Contudo, o tempo - aliado às latitudes e longitudes - a separá-los; os diferentes caminhos percorridos por um e por outro, nesses anos todos; e as personalidades que se forjaram em distintos moldes e ambientes, produziram seus efeitos. Eles já não eram os mesmos. Numa atitude de autopreservação, ainda que talvez subconsciente, ela optou por dar-lhe um gelo. No começo, ele se fez de desentendido. Por fim, rendeu-se à força da realidade e recolheu-se, quem sabe pela última vez, ao seu iglu. Ainda não está de todo convencido, mas toma corpo em sua mente a ideia de que talvez não passe de lenda essa história de "a outra metade da laranja".

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 06/08/2018
Reeditado em 09/08/2018
Código do texto: T6410998
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