Você quer ser meu par?
Din-don! Despertei-me com a campainha tocando. Abri os olhos, ainda inchados de sono, e sentei-me na cama. Em um bocejo demorado, espreguicei-me e pensei, seriamente, em voltar a dormir. Din-don, tocou novamente a campainha.
Vesti as pantufas, tão quentes e confortáveis, apanhei o roupão e joguei sobre o corpo, arrepiado pelo frio inesperado daquela manhã. Desci as escadas com aquela preguiça costumeira de todo sábado e abri a porta. Era o carteiro.
"Correspondência para a senhora... Só um segundo... Não tem o nome, apenas o endereço."
"Müller", respondi, pegando a carta de sua mão. "Maria Antônia Müller. Obrigada!"
Fechando a porta, olhei o verso. Era dele. Há quanto não recebia notícias daquele homem? Cinco anos? Talvez dez?
Rasguei um envelope como um animal faminto faz com a presa. Sem muito cuidado, rasguei um canto da carta. Não fazia mal. Desdobrei-a para ler.
"Teatro Carlos Drummond de Andrade, 20h".
Isso era tudo o que estava escrito. Como ele podia saber de minha apresentação àquela noite? Será que ele estaria lá? Eu não estava preparada para um reencontro. Não depois de tanto tempo sem notícias, sem cartas trocadas. Mas eu não podia simplesmente não ir. Há muito tempo aguardei pela chance de dançar lá, no maior teatro da cidade. Respirei fundo e joguei a carta no lixo. Ele não estragaria tudo novamente.
Nunca me esqueci de como foi na primeira vez. Éramos jovens e tínhamos acabado de nos conhecer no colegial. Ele, lindo, atlético e famoso na escola. Eu, uma estranha, recém chegada na cidade, uma deslocada. Trombei com ele uma ou duas vezes pelos corredores do colégio, desastrada. Derrubei seus livros e ele me convidou para jantar. Envergonhada e, acima de tudo, surpresa, eu levantei e corri sem dar uma resposta. Ali começamos a trocar cartas. Deixei a primeira dentro de seu armário, desculpando-me por derrubar seus livros e aceitando o convite para o sair.
Por semanas, trocamos bilhetes comentando sobre aquela noite. Eu, romântica irreparável, guardei todas as dele e cópias das minhas. Eu estava apaixonada.
De uma hora para outra, tão repentino quanto o adormecer, ele parou de me escrever. Não respondia mais minhas cartas, não aparecia mais na escola, seus amigos me evitavam como se eu tivesse cometido algum crime. Nenhuma notícia, até que um dia uma das garotas me avisou que ele havia se mudado de estado, estava casado e seria pai.
Meu mundo acabou. Tranquei-me por dias em meu quarto, lendo e relendo cada carta que ele me mandara. Por que não me contou? Por que mentiu para mim? Igual a todos os homens, eu pensei. Um canalha!
Nunca mais confiei em ninguém do sexo masculino. Nunca me casei, nem me apaixonei novamente. Ter o coração partido uma vez era o suficiente.
De volta ao agora, passei o resto do dia pensando na possibilidade de reencontrá-lo. Será que eu o reconheceria?
A noite se aproximava cada vez mais rápido e eu já me preparava para ir ao teatro. Às oito em ponto o show começaria. A sapatilha repousava sobre a cama e a ansiedade saltava em meu peito. Parti em direção aos meus quinze minutos de fama.
Sete e cinquenta e oito, eu já ouvia as vozes inquietas da plateia. Atrás da cortina, eu estava em posição, um show solo, a representação do drama e da solidão de minha vida até então. Sete e cinquenta e nove.
Respirei fundo uma, duas, três vezes. Fechei os olhos e esperei. Uma voz à minha frente anunciava o início do espetáculo, as cortinas se abriam e a música começava. Jetés, pliés, adágios. Jogo de olhares, suspiros, movimentos de mãos, pés e pescoço. Era a dança da minha vida, o meu momento. A cada segundo, a dança ganhava mais emoção, mais explosão e o coração acelerava. O drama ganhava vida, o mundo parecia não mais existir, era eu e o ballet. Meu corpo transpirava sentimento. Oito e sete. Fim!
Acabou-se a música e eu abri os olhos. O público, ao delírio, aplaudia. Cumprimentei a todos e saí para que a próxima bailarina pudesse se apresentar.
Eu estava satisfeita comigo mesma, feliz, realizada, sequer me lembrava da carta que recebera aquela manhã, até abrir a porta do camarim. Raul me esperava lá dentro.
Não sabia se chorava, se corria ou se socava aquele rosto perfeito. Ele não havia mudado nada. Os mesmos olhos castanhos, o mesmo cabelo bagunçado, os mesmos lábios convidativos.
"Dançou como Pavlova."
Em uma confusão de sentimentos, dominada pela frustração de tê-lo perdido anos antes, mesmo sabendo que me entregava a um caminho sem volta e cheio de sofrimentos, lancei-me em seus braços como em um Grand Jeté e o beijei.