Sons do coração
SI, LÁ, SOL.
Após a última nota, toda a plateia pôs-se de pé, efusivos aplausos ressoando por todo o anfiteatro por intermináveis sessenta segundos. Levantei-me do piano ao som das palmas e saudei os presentes da maneira tradicional, curvando-me diante de todos enquanto as cortinas se fechavam à minha frente.
Os aplausos, agora, sediam lugar aos murmúrios e aos passos vagarosos até as saídas. Eu, então sozinho atrás das cortinas vermelhas, caminhava apressado rumo ao camarim.
Joguei-me no sofá, já sem o smoking tão formal que eu deixei sobre uma cadeira qualquer. Não fosse o ar-condicionado, eu estaria derretido em suor naquele momento. Soltei a gravata borboleta que me sufocava como uma coleira apertada fazia com um cachorro, tirei os sapatos ali mesmo, coloquei as pernas sobre o estofado e puxei uma garrafa de whisky de cima da mesinha de centro, sobre onde um copo com gelo estava pronto para ser usado. Contudo, tomei um gole direto do bico.
Deixei-me embriagar e ali fiquei a noite toda. Pelo décimo dia seguido eu repetia a mesma apresentação, nostálgica e dolorosa, que me remetia àquela que eu havia perdido meses antes. A música era, de fato, lindíssima. Muitos iam às lágrimas com ela, inclusive eu, no meu interior, molhando os cacos do meu coração despedaçado.
Em algum canto da sala, meu celular vibrava com as mensagens dos fãs nas redes sociais, postagens sobre o concerto, matérias nos mais diversos jornais do país, mas nada atraía minha atenção.
Na manhã seguinte, levantei-me, ainda cambaleante e embriagado, e fui para a garagem, onde meu motorista particular me esperava.
"Noite difícil, senhor?" Ele me perguntou ao abrir a porta do carro.
"Vamos para casa, Thiago", eu respondi, mal ouvindo o que ele falava.
No caminho, não tirei o olho da janela por um segundo. Conforme o sol subia ao céu e as luzes dos postes se apagavam pela cidade, cartazes com meu nome anunciavam a apresentação da próxima noite, a décima primeira em claro.
Fazíamos sempre o mesmo trajeto, eu exigia. Letícia passava todos os dias por aquelas ruas para ir ao trabalho. Passávamos pela mesma banca onde ela lia jornal toda manhã, pela mesma padaria onde ela tomava seu café, pela mesma floricultura onde ela comprava para si mesma uma rosa branca, sua favorita. Eu não queria perdê-la da memória.
Chegamos em casa e, como em todos os dias anteriores, fui para meu quarto, ilhado do mundo, isolado de todos. O álbum de fotos de nossas viagens ainda repousava sobre a cama, aberto em nossa ida a Viena, quando me apresentei nas maiores óperas da história. Como o sorriso dela era lindo. Páginas para frente, uma foto faltava, a foto que fora levada com minha amada para debaixo da terra, a foto de nosso quinto aniversário de casamento, no ano anterior, quando descobrimos que ela estava grávida. Infelizmente, não tive tempo de segurar minha filha nos braços. O acidente levou-a junto com a mãe.
Agora, sem ninguém no mundo, o que me restava era a música, uma das poucas coisas para a qual eu tinha o dom. Meu som original me levou aonde eu estava hoje, mas sem Letícia nada mais tinha sentido, nem mesmo as notas do piano.
Eu continuava, porém, tocando, na esperança de um dia me reencontrar no mundo. Era isso que ela me falava: quando se perder, a música te devolverá ao caminho. Não a tinha mais comigo, mas suas lembranças não me abandonavam. E isso me fazia seguir, mesmo sem forças, e começar, mais uma vez, o novo concerto: "L'amore vive qui", que escrevi em sua homenagem. SOL, FÁ, DÓ.