Uma taça de vinho

- Uma taça de vinho, por favor!

O jovem detrás do balcão olhou para ele como quem não entendesse o pedido. Ele repetiu, pausadamente, uma-taça-de-vinho. O jovem, como que saindo de um torpor, se movimentou em frente as prateleiras e pegou um copo americano e uma das inúmeras garrafas e despejou um líquido lilás até quase a borda. Empurrou na direção do homem. Ele pegou e sorveu um pequeno gole, fez uma careta e em seguida tomou o restante do conteúdo de uma golada só. Outro desses ele disse. Aquilo não era vinho, ele percebeu, tão pouco aquilo era uma taça, o que não tinha importância, era o que ele precisava. Ruim o suficiente para derrubá-lo e livrá-lo da dor. Mas, se não funcionasse, ele faria de outro jeito. Pularia do prédio. Não, do quinto andar, que era onde ele morava. Só queria esquecer. Teria jeito? Só morrendo, ele pensou. Outro!, ele gritou ao sonolento garçom. O bar estava vazio, às moscas se ali tivesse moscas. Onde estaria ela, naquele momento? Com o outro, o maldito amante. Ele se contorceu como se algo doesse em seu corpo, uma pontada um pouco abaixo do peito. Dizem que a dor emocional as vezes dói fisicamente, ele preferia que fosse o coração querendo parar, ou parando definitivamente.

Ele ainda tinha nas mãos o buquê de rosas vermelhas. Paixão. Ele era apaixonado por ela, loucamente apaixonado, ele sempre dizia. Ela sempre dizia que também o amava. Ele acreditava. A surpresa das flores, no meio da tarde, na galeria em que ela trabalhava, voltou-se contra ele. O amante estava lá, amando-a como ele nunca fizera, fazendo o que ele sequer imaginou. Ele não disse nada, saiu como entrou, em silêncio, ela não viu. Ele andou pelas ruas feito um louco, os cabelos desgrenhados, o buquê de flores na mão sem que ele sequer percebesse que ainda o levava. Agora estava ali no bar, tentando aliviar a dor. Não sabia porque pedira vinho, ele nem gostava de vinho, talvez por isso. Queria provar o que não gostava, para esquecer o amor ferido.

Dois anos antes eles se encontraram. Ela estudava História da Arte; ele, Literatura. O professor dizia que era errado o que algumas meninas faziam para poder custear o curso que frequentavam. A princípio ele não soube do que o professor estava falando. Mas alguns amigos, mais entendidos do assunto, lhe disseram que ele se referia ao fato de algumas meninas se prostituírem para poder bancar o curso. Ele achou graça e disse que não acreditava nisso. Fabrício, que era seu melhor amigo naquele tempo, disse que lhe apresentaria alguém que estava disposta a fazer isso, que fazia com frequência. Ele não queria conhecer ninguém assim, não era seu perfil. Mas, à noite, no meio da festa, Fabrício apareceu acompanhado de uma linda menina loira. Disse em seu ouvido, essa é uma daquelas moças de que o professor falava. Ela disse que topa sair com você. Por uma quantia x, claro, disse Fabrício, sorrindo. Ele pensou em se recusar, mas a moça era tão bonita, que lhe faltou ânimo. Quando se deu conta, estava com ela na cama. Meu nome é Alice, ela disse entre um beijo e outro.

Quando ele acordou no outro dia, Alice não estava mais lá. Ele ficou aliviado, mas naquele mesmo dia, se viu pensando nela. Sentiu um forte desejo de encontrá-la novamente. Recorreu a Fabrício, que arranjou o encontro para alguns dias depois. Ela, além de estudar muito, pinta e ainda tem outros encontros, Fabrício disse. Ele sentiu um pouco de ciúme, mas disfarçou. Sentir ciúmes também não era do seu perfil, mas ele estava experimentando coisas novas todos os dias e aquilo lhe pareceu normal. Assim ele passou aqueles dias, pensando nela sem que ela sequer lembrasse dele, pois estava muito ocupada com coisas mais interessantes.

Mas no dia que se viram novamente, ela estava com um vestido vermelho decotado, tão linda que ele se apaixonou perdidamente quando a viu. Ele era um homem fraco para o amor. Ela ficou impressionada com a forma como foi tratada, pois nunca a trataram tão bem quanto ele o fizera. A partir daquele dia eles passaram a se encontrar periodicamente. Dormiam juntos todas as noites. Alice prometeu não mais fazer aquele tipo de coisa, se precisasse de dinheiro, ele lhe daria. Agora, ali no bar, ele recordava alguns acontecimentos que lhe faziam pensar que ela nunca parara de fato, que ela mantivera aquela vida todo o tempo. Ele fora um tolo, ainda o era. Estava ali, enchendo a cara, pensando em se matar por causa de uma vadia. Aquele pensamento era ofuscado por um mais forte, o de que não queria viver sem ela, de que aquela traição não seria esquecida nunca e que o castigaria toda vez que lembrasse.

O garçom cochilava com uma mão segurando o queixo, enquanto ele bebia apressado mais um copo de vinho. Vinho?, ele achava que não, mas continuava tomando. Pediu por fim a garrafa, que o garçom lhe entregou sem dizer nada. Poucos carros passavam pela rua, alguns jovens caminhavam abraçados pela calçada, sirenes ecoavam na distância como que embalando uma multidão de necessitados, mas nada ele percebia. Estava absorto, quase dormindo e ao mesmo tempo sem poder dormir, porque não conseguia esquecer. Lembrava cenas recentes e retrocedia ao passado mais longínquo. Lembrava de antes de conhecê-la e lembrava de depois, quando estavam juntos, quando passaram a viver na mesma casa, como marido e mulher, a felicidade que ela demonstrava e que, agora, ele sabia ser apenas fingimento. Ela nunca o amara, ela era incapaz de amar quem quer que fosse. Nem mesmo aquele maldito amante. Seria o único ou seria apenas mais um? Seria de agora ou dos tempos da faculdade? Aquelas dúvidas lhe enchiam a cabeça; mas, ao mesmo tempo, ele sabia que nada daquilo importava mais. O que importava era o que ele faria dali para frente, morrer ou continuar vivendo? Se entregar ou deixar o tempo passar até que tudo se perdesse nas sombras da memória? Havia outros caminhos, mas ele se via perdido naquele momento.

O tempo estava parado. Ele olhou para o relógio, mas não conseguiu ver as horas, estava embaçado. Seria sua vista? Já estava tão bêbado assim? Ele não tinha certeza, porém sabia que já era muito tarde. Teria que resolver o que faria em pouco tempo, o bar já estava quase fechando e o garçom mais dormia do que prestava atenção em qualquer coisa ao seu redor. Ela era tão linda, tão meiga e carinhosa, àquela hora já deveria estar preocupada, sem saber que ele já sabia de tudo. O saber nesse caso parecia mais ruim do que a ignorância. Ele preferia não saber, queria não saber, melhor seria se ignorasse o que de fato já sabia, mas não, conhecia os fatos e os fatos eram terríveis, para ele, pelo menos. Ela ainda não sabia, mas saberia em breve; ou não, ele contaria? Não tinha certeza. Ele sumiria naquela noite sem dizer nada. Ela ficaria atônita e se perguntaria por quê. Seria sua vingança, a dúvida. Ele sorriu feito um louco e pensou o quanto estava sendo ingênuo, ela nem ao menos se importaria, aproveitaria a vida como lhe aprouvesse, não precisaria mais se esconder. Levaria o amante para sua casa, a casa dele, a casa deles.

O garçom olhava para ele de vez em quando, entre um cochilo e outro, como se pedisse por favor, vai embora, quero fechar o bar. Ele não ligava, continuava na sua empreitada pela melancolia de longos pensamentos e reflexões infundadas, sobre amor e traição e permanência e tudo que envolvia o relacionamento entre um homem e uma mulher. Os dias juntos e agora os dias separados, se houvesse outros dias além daquele. O mundo estava despedaçado, a vida caíra num buraco e ele não conseguia vislumbrar saída. Tudo estava turvo ao seu redor. As luzes se apagaram.

Começou a chover forte agora, a energia se fora e o garçom acendia velas na tentativa inútil de iluminar o bar. Nada mais ali voltaria a brilhar, pelo menos não enquanto ele estivesse sentado naquela cadeira, tomando a imitação de vinho que o rapaz lhe servira. Bebendo e pensando na mulher amada-bandida-traidora, serpente que rastejara maliciosa até seus pés e o picara sem piedade e o levaria à morte em breve. Tudo estava ao seu alcance e ao mesmo tempo tudo lhe fugia das mãos. Ele tentava segurar a vida e a vida corria com passos rápidos em direção a um despenhadeiro logo a frente. Ele tinha medo e vontade, não sabia o que era mais forte, o que seria mais forte quando tivesse que decidir o seu destino. O seu destino, pensamento blasé, pra não dizer ingênuo. Puta que pariu, não era do seu estilo pensar assim, como um inocente qualquer, o que o amor lhe fizera, ele se perguntava de novo e sempre, como quem duvida e ao mesmo tempo acredita, sem saber em quê.

Enquanto o garçom acendia a última (?) vela, ele pegou a garrafa, depositou uma nota de cem sobre a mesa e saiu cambaleando porta à fora; saindo do bar, entrando na chuva e seguindo pela rua quase alagada. O buquê de rosas vermelhas ainda em sua mão, pendido como um filho desprezado pelo pai, sem destino certo.

Quando ele apareceu em casa com aquela novidade, a mãe teve um surto de felicidade, ou seria outro o nome do sentimento que a mãe lhe demonstrara? Ele ia morar com uma mulher que ela não conhecia, uma mulher que nem mesmo ele conhecia, a verdade era essa, mas a mãe não sabia disso, ele pensou. O importante era que ele a amava e isso era tudo, doce engano. Ele não a conhecia mesmo e isso é que era tudo na verdade.

A chuva caía cada vez mais forte e ele ficava pensando em tudo, mas não tinha certeza se um dia compreenderia todas as nuances daquela história. Quando de fato passou a ser um homem tão fraco, um menino que não conhecia o mundo como deveria. Que não entendia as pessoas e suas motivações. Tudo isso ele pensava enquanto as ruas se enchiam de água e algumas pessoas tentavam se proteger sob marquises e varandas que pareciam diminuir a cada novo refugiado que aparecia buscando abrigo. Ele, por sua vez, adentrava cada vez mais no lamaçal, buscando não um refúgio mas um meio de se aniquilar sem que fosse obrigado a sentir dor ou remorso. As roupas completamente encharcadas e os cabelos deslizando sobre a testa, mas as flores continuavam em suas mãos, embora ele não desse por isso. Aquele fato incomum, um homem bem vestido com um buquê na mão, não passava despercebido para quem só queria chegar em casa depois de um dia de trabalho e observava irresoluto a chuva só aumentar.

Jorge, seria esse seu nome? Qualquer nome que tivesse não seria lembrado quando ele partisse dali pra o lugar que ele pretendia ir. Ele tinha a impressão de que tudo seria estranho a partir do momento em que sua vida findasse e o ciclo do desamor se reiniciasse numa outra história, que não a sua. A mesma história insana que ele não queria mas tinha que lembrar, porque não sabia como esquecer. Mesmo sabendo que seguia um padrão, ele sempre achara que poderia fazer diferente, que deveria fazer diferente e estava fazendo até o dia em que aquela mulher entrara em seu subconsciente e fizera dele apenas mais um num mundo de estúpidos. Qualquer que fosse o caminho que seguisse dali em diante, não estaria mais conectado ao mundo como estivera antes. Mesmo que ele simplesmente se jogasse do alto do prédio ou de cima de alguma ponte no meio do caminho, ele não estava mais inserido na rotina da vida. Mesmo que ele não fizesse nada, apenas ficasse pensando em tudo e se desviando da verdade para sempre, ele já estava ausente e aquilo era irremediável. A vida lhe roubara a vida. Um paradoxo estranho, que ele definitivamente não compreendia.

Sem perceber ele chegara ao prédio onde morava. O porteiro cochilava mas ele nem viu. Foi entrando cambaleante e errôneo, tropeçando nas próprias pernas e nos pensamentos que levava consigo. Pensamentos de morte e de medo. Subiu pelas escadas, muito lentamente, um degrau por vez. Acho que os contava, na verdade. Só não sei dizer porque o fazia. Mas fazia. E isso é quase tudo, mas não, nem chega perto. Tudo é o que vem depois. Enfim o corredor, passos trôpegos, algumas luzes queimadas, porta do apartamento. Porta enfadonha, a cor da porta. Nem saberia dizer qual era, se lhe perguntassem. Ele pegou a chave, abriu com dificuldade, depois de inúmeras tentativas de encaixá-la na fechadura. Entrou silenciosamente, ela estava no sofá, dormindo de qualquer jeito, esperando por ele.

Decidido a não falar com ela, ele fez de tudo para que ela não acordasse, mas ela acordou e correu pra ele e o abraçou com força. Falando rápido, o que houve?, por onde você andou?, já é muito tarde..., um amontoado de informações que ele nem sequer prestou atenção, apenas se desvencilhou e seguiu para o quarto enquanto ela olhava atônita para ele, ainda com o buquê na mão, molhado e sujo, se jogando na cama sem dizer uma palavra, dormindo imediatamente.

*****

Alice pegou o buquê das mãos de Jorge e jogou no lixo, não gostava de rosas vermelhas, já havia dito várias vezes. Tirou os sapatos dele e depois, com dificuldade, as roupas molhadas. O cobriu e deitou-se ao seu lado sem, no entanto, conseguir conciliar o sono. Ficou pensando nos acontecimentos do dia e se perguntando o que Jorge teria feito o dia todo e porque chegara tão tarde, bêbado, ainda por cima. Coisa que ele nunca tinha feito, pois sempre seguira um roteiro que incluía acordar, tomar banho, se vestir, tomar café, ir para o trabalho e voltar sempre no mesmo horário. Não havia alteração nessa rotina, mas algo acontecera naquele dia. Ela estava intrigada, se perguntando o que poderia ter sido. Ela desistiu de adivinhar e o abraçou muito forte, para protegê-lo, dele mesmo e, principalmente, dela. Ela era uma mulher linda, todos que a viam sabiam que ela nunca seria de apenas um homem. Jorge era tolo demais para compreender.

Talvez quando acordar ele vá embora, talvez aceite o que aconteceu e tente esquecer. Talvez se jogue do quinto andar, que é onde mora. Por enquanto, ele apenas dorme, abraçado pelo seu amor, alheio ao mundo e à tristeza que o espera.

João Barros
Enviado por João Barros em 27/07/2018
Reeditado em 27/07/2018
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