Obsessão de Milo I
Fora em uma segunda-feira nublada quando pela primeira vez, os olhos de Ulisses encontraram-se com os de Catharina, dentro de seu consultório.
- Doutor Ulisses? – Catharina entrava em seu consultório.
- Sim, pode entrar. – Ele respondeu – Josephina?
Catharina entrava acompanhada de uma senhora de aproximadamente sessenta anos de idade, cabelos quase brancos, meio ruivos, em uma cadeira de rodas.
- Eu sou Josephina. – a senhora respondeu, ríspida.
- Claro, me desculpe. E quem lhe acompanha é?
- Sou Catharina! – a moça de aproximadamente vinte e cinco anos aproximava-se para apertar-lhe a mão, cabelos longos, ruivos e volumosos. Tinha uma beleza que envolvia a todos que lhe prestassem atenção – Sou filha da paciente, muito prazer!
- Igualmente! – ele retribuiu o aperto de mãos, sorrindo, sem tirar os olhos por um segundo se quer da moça formosa em sua frente – Muito bem, o que lhes trazem ao meu consultório?
A senhora na cadeira de rodas, gentilmente, puxou a barra de sua longa saia que lhe cobria os pés. Um deles parecia estar em estado avançado de decomposição, já gangrenado e fétido, desde as pontas dos dedos até pouco antes do tornozelo.
- Hum... – ele examinava curioso – Não me parece nada bom. Há quanto tempo está assim?
- Pouco tempo. – respondeu a senhora, ríspida – Eu disse à Catharina que não deve ser nada grave, mas ela insistiu para que eu viesse me consultar...
- Não faz pouco tempo, mamãe! – a moça ruiva respondeu séria – Doutor, já faz alguns meses. Eu não percebi antes porque ela passou a esconder, mas quando vi que ela mal conseguia caminhar, notei que algo estava errado...
- Fez bem em trazê-la. – ele disse, adiantando-se de volta à sua mesa – Preciso de algumas informações sobre a senhora – ele virou-se para a senhora de cadeira de rodas – A senhora é diabética?
- Sim.
- Possui algum problema cardíaco ou respiratório?
- Não.
- Alimenta-se corretamente com uma dieta controlada para diabéticos?
- Sim – a senhora respondeu.
- Ela está mentindo! – a moça jovem interveio – Sempre a vejo comendo doces escondida, e isso é bem freqüente!
A senhora na cadeira de rodas fechou a cara, mas não se manifestou.
- É fumante?
- Sim. – respondeu a senhora.
- Bebe?
- Às vezes.
Ele olhou para a jovem, que confirmou com a cabeça que as afirmações estavam corretas.
- Muito bem... Como começou tudo?
- Com uma faca... – começou a senhora – Caiu no meu pé e fez um corte. Fiz um curativo, mas percebi que nunca cicatrizava, e aos poucos percebi que se espalhou por quase todo o pé.
- Certo. Vou passar algumas medicações e marcar o retorno para daqui a duas semanas. – ele adiantou-se, prescrevendo uma receita – Isso cessará a dor momentaneamente. Desejo-lhes melhoras.
- Obrigada doutor. – Catharina guardou a receita em sua bolsa – Espero vê-lo em breve.
- Eu também, volte sempre! – ele respondeu, e logo depois pensou melhor sobre sua resposta, mas ela já havia se retirado de seu consultório.
*****
Duas semanas se passaram, quando a bela moça de cabelos ruivos adentrou ao consultório do Doutor Ulisses novamente, acompanhando sua mãe em uma cadeira de rodas.
- Catharina! – o doutor estendeu a mão para cumprimentá-la.
- Como vai, Doutor? – ela retribuiu o aperto de mãos.
Dona Josephina não dissera uma palavra até então. Encontrava-se na cadeira de rodas, olhando pela janela, de braços cruzados. Catharina delicadamente puxou a barra de seu longo vestido de tecido florido, abaixou-se à altura de sua mãe e fitou-a nos olhos.
- Mamãe, sei que a senhora está chateada, mas precisamos mostrar ao doutor como está reagindo às medicações!
A senhora de cabelos quase totalmente brancos levantou a barra de sua saia, quase como que por obrigação, e contra sua vontade, deixou que o médico lhe examinasse o estado de seu pé. Não houve progresso algum, pelo contrário: estava gangrenado até a canela e cada vez mais fétido.
- Lhe receitarei outra medicação, dessa vez mais forte – ele disse à senhora, que mal encarou-o nos olhos, parecendo muito concentrada na janela do consultório do doutor.
Ele entregou a receita à Catharina, que agradeceu-lhe e prontamente guiou sua mãe na cadeira de rodas para fora do consultório.
- Catharina, será que posso conversar em particular com você? – ele perguntou à bela moça, que parecia mais preocupada que o normal.
- Claro! – ela olhou para sua mãe que parecia não ouvir a conversa, ou ao menos fingir que não ouvia – Vou levá-la para comer alguma coisa, volto em alguns minutos!
Dez minutos depois, ela adentrava novamente o consultório do doutor Ulisses.
- Catharina, isso pode parecer muito difícil, mas existe essa possibilidade, e gostaria de conversar com você primeiramente.
- Eu já imaginava- ela parecia saber do que se tratava. – A medicação não está surtindo efeito, está?
- Aparentemente, não – ele dizia com pena – Sinto muito, esta será nossa última tentativa. Caso não haja progresso em até duas semanas, infelizmente precisaremos amputar a perna de sua mãe do joelho para baixo.
Ela parecia atordoada, mas continuou em pé, tentando não demonstrar. Era mais forte do que parecia.
- Esses medicamentos – ela continuou – São fortes o suficiente para que exista a possibilidade de não precisar amputá-la?
- Eles são fortes, mas não posso garantir que funcionem. Em setenta e quatro por cento dos casos, junto com um tratamento rigoroso e uma dieta extremamente rígida, ele funciona. Mas para isso, você precisaria estar de olho nela vinte e quatro horas por dia, para garantir que de forma alguma ela quebre alguma regra do tratamento. Ou então, interná-la em um lugar onde seria observada e tratada forma mais adequada pra isso.
- Vocês fazem esse tipo de internação?
- Sim, fazemos. – ele parecia receoso – Mas você deve imaginar, é bem custoso. Eu posso tentar conseguir um desconto para lhes ajudar, mas como precisaria de uma observação vinte e quatro horas por dia, mais as medicações, não lhe garanto que o custo será baixo.
- Obrigada, doutor! – ela pegou sua bolsa e encaminhou-se para a porta, claramente muito abalada pela conversa.
- Catharina! – ele segurou-a delicadamente pelo braço – Eu sinto muito! Tentarei ajudar-lhe o máximo possível!
Ele olhou-a em seus olhos verdes, chorosos, prontos para despencar em lágrimas a qualquer momento e sentiu que seu mundo era triste quando ela estava triste. Ela nada disse, mas ele pode sentir a gratidão em seu olhar. Fechou a porta atrás dele e por poucos segundos, ele ainda podia sentir seu doce perfume em seu consultório.
- É uma pena! – ele pensava. Precisava ajudar a pobre moça, mas não sabia como. Não queria parecer invasivo ou até mesmo inconveniente.
*****
Eram duas horas da tarde na cafeteria do hospital, quando o doutor Ulisses terminava de tomar o seu café e ouviu seu nome ser anunciado.
- Doutor Ulisses, por favor compareça à sala de internação 21 com urgência.
Ele encaminhou-se rapidamente até a sala requisitada e abriu a porta. Seu coração bateu mais forte quando avistou os grandes cabelos ruivos e volumosos de Catharina, acompanhada de sua mãe, que já estava bem instalada na cama do hospital. Catharina parecia distraída e usava um vestido simples pouco acima do joelho, aparentemente costurado por sua própria mãe. Era a oitava maravilha do mundo. Ela virou-se rapidamente quando sua mãe apontou para a porta.
- Doutor! – ela estendeu o braço para cumprimentá-lo, e esse lhe retribuiu o cumprimento, sorrindo.
- Uau! – ele parecia impressionado – Fico feliz que tenham conseguido a internação!
- Obrigada! – ela sorria – É o melhor a se fazer nesse momento.
- Tenha certeza de que sua mãe está em boas mãos!
- Não tenho dúvidas!
Os olhos dos dois se encontraram e o coração de Ulisses pareceu encher-se de alegria. O sorriso de Catharina era a coisa mais bela que já tinha visto em toda a sua vida, e ele faria o possível e o impossível para que o mesmo nunca desaparecesse de seu rosto.
*****
Ele estava atrasado para o jantar da conferencia, com os mais renomados médicos e cirurgiões do país. Ainda assim, continuava sentado em sua poltrona vermelha, ao lado de sua estátua de Vênus de Milo, bebendo seu whisky enquanto acendia um charuto. Olhou-se no espelho da parede da sala. Via-se muito elegante com seu terno feito sob medida por um dos melhores alfaiates do país. Ulisses Muller era um homem de trinta e poucos anos, elegante, e atraente. Seus cabelos loiros contrastavam perfeitamente com sua pele clara e olhos castanhos. Tinha algumas poucas rugas em seu rosto, mas isso se devia ao fato de ser muito bem sucedido em sua carreira, e pouco bem sucedido em sua vida amorosa.
Olhou em seu grande relógio de pendulo antigo, herança de seus avós, e constatou que já passava da hora de sair de casa. Ajeitou seu terno e pegou a chave do carro e dirigiu-se até à casa de sua amiga e colega de classe, Amélia. Esta já o esperava do lado de fora da casa, com um grande e elegante vestido de cetim azul, estufado da cintura para baixo.
Amélia tinha aproximadamente trinta e cinco anos, uma mulher muito elegante, morena dos olhos azuis. Eram grandes amigos de longa data, e ela seria sua acompanhante no jantar. Ele segurou-lhe sua mão direita, envolta em um belo par de longas luvas azuis em um gesto de cavalheirismo, e abriu-lhe a porta do carro.
- Você está fantástica! – ele lhe disse, sorrindo.
- Igualmente, doutor! – ela sorria – Nervoso?
- Um pouco.
Levaram aproximadamente meia hora até chegarem ao salão onde seria organizado o jantar. Muitas limusines encontravam-se estacionadas no local, grandes jornalistas e pessoas importantes davam entrevistas.
- Doutor Ulisses, o que o senhor tem a declarar sobre o amputamento da paciente Angelina Tobias? – os jornalistas o filmavam e tiravam fotos.
Ele entrava rapidamente com sua acompanhante, cercados de seguranças. As câmeras pareciam focar apenas nele agora.
- Ainda é questionado sobre a Angelina? – Amélia perguntou, enquanto entravam no salão.
- Bom, é meio difícil evitar o assunto quando se tem um processo nas costas – ele respondeu.
O salão encontrava-se cheio de pessoas importantes e vestidas de traje a rigor. A decoração era antiga, com muitos detalhes vermelhos e dourados. Um excelente pianista e violinista podiam ser ouvidos tocando musica clássica ao lado do palco.
- Doutor Ulisses Muller e acompanhante – um funcionário recolhia seus convites – Mesa número 11, permita-me acompanhá-los!
O funcionário os guiou até a mesa predestinada e em seguida retirou-se. A mesa de oito lugares estava ocupada por três médicos (quatro, contando com ele) e suas respectivas acompanhantes.
- Doutor Ulisses – um médico lhe estendia a mão.
- Doutor Alberto, é um prazer revê-lo!
Todos se cumprimentaram e ocuparam seus respectivos lugares, com exceção de uma das cadeiras que ainda encontrava-se desocupada ao lado do doutor Alberto.
- Então doutor Ulisses – o doutor Alberto parecia animado e curioso – Vejo que ainda é constante o questionamento sobre a paciente Angelina Tobias.
- Aparentemente a mídia não vai deixá-lo em paz tão rapidamente assim – um dos médicos à mesa pronunciou-se – Mas acostume-se: já tive dois processos em meus trinta anos de carreira, é provável que não seja o seu último.
Ulisses parecia desconfortável com o assunto, mas não pronunciou-se. Um garçom aproximava-se da mesa enquanto isso:
- Cavalheiros, boa noite. Já decidiram o que vão tomar? - ele perguntava cordialmente.
- Pode anotar o pedido deles, eu vou esperar minha acompanhante – o doutor Alberto falava, enquanto acendia um charuto – É falta de educação pedir a bebida sem a dama à mesa. Ela foi ao banheiro, não deve tardar.
Alguns minutos depois, uma bela dama de vestido sereia, preto de cetim, encaminhava-se em direção à mesa do doutor Ulisses. Tinha seus longos cabelos ruivos presos em um elegante coque, e seus braços envoltos em uma longa luva de pelica, preta. Todos os homens à mesa levantaram-se quando ela se aproximou e o doutor Alberto puxou-lhe a cadeira em um gesto de cavalheirismo.
- Permita-me apresentar-lhe minha acompanhante, doutor Ulisses: Lorena.
- Encantada! – Catharina estendeu-lhe a mão como se nunca o tivesse visto anteriormente. Ele apenas beijou-lhe cordialmente a ponta dos dedos e fitou-lhe em seus olhos verdes por poucos segundos. Seu coração parecia disparar rapidamente ao vê-la ainda mais linda do que nunca, se é que isso fosse possível.
[Continua]
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