O beijo 2
(Contado por Sofia)
Meu dia começou com minha mãe me dizendo que não devia me envolver com pessoas de classe social inferior, que devia namorar gente da alta sociedade e essa conversinha de novela das nove. Estava muito brava, mas a amava demais para admitir que sentia raiva dela naquele momento, então resolvi sair e andar até que a raiva passasse e eu pudesse voltar e continuar amando-a como sempre. Sai a pé mesmo pelo bairro classe A que morávamos. Caminhava lentamente tentando não pensar em nada, o que era muito difícil, pois a vida impunha certas coisas impossíveis de compreender e aceitar.
Estava com fome, já eram quase onze horas da manhã e não havia tomado café antes de sair. Fui até uma lanchonete próxima, que estava quase vazia naquele horário. Fui atendida por uma menina que parecia ser mais jovem do que eu, porém tão triste quanto. Pedi um lanche qualquer, comi devagar, tentando não pensar mais na conversa que tivera mais cedo com minha mãe. Depois pedi a conta, paguei e junto com o pagamento deixei uma gorjeta generosa para a moça, como a imitar as personagens de filmes americanos. Não esperei para ver sua reação, mas creio que tenha ficado contente.
Fazendo justamente o contrário do que minha mãe queria, peguei um táxi e sai rumo à periferia da cidade, fui até onde Miguel trabalhava. Não queria incomodá-lo em seu serviço, mas senti saudade e queria vê-lo; além de sentir sua reação, pois na noite anterior, depois da festa não podemos conversar direito e embora eu ache que ele tenha gostado do beijo, não tenho certeza, pois ele ficou muito calado o resto da noite e o assédio das pessoas sobre mim meio que o afastou, como se ele não quisesse ou não pudesse partilhar das conversas que surgiam.
O táxi seguia por ruas estreitas e eu não tinha certeza se encontraria o lugar em que ele trabalhava, pois nunca tinha ido lá, apenas sabia o endereço e sabia que era uma oficina de automóveis onde ele era ajudante. O carro entrava por ruas e mais ruas como num labirinto infinito e impossível de distinguir o que era o quê, mas com a experiência do motorista cheguei até o pequeno prédio em que funcionava a tal oficina. Era uma casa pequena para um ambiente que prestava serviços, mas devia ter alguma coisa mais para os fundos do imóvel; um espaço maior, pensei.
Paguei o táxi e desci. Percebi que as pessoas me olhavam com curiosidade, como se um objeto estranho tivesse pousado ali naquele momento. Meu coração batia acelerado e eu não sabia bem o porquê, mas desconfiava que era a aproximação do lugar em que eu julgava que ele estivesse. Cheguei à oficina e perguntei a um rapaz que mexia num carro velho, tão velho que talvez não tivesse mais jeito, pensei. O homem tinha um jeito simples e as roupas estavam muito sujas de graxa, sua barba grande parecia fazer parte de um conjunto de sujeira que lhe percorria todo o corpo, indo de baixo para cima, até chegar ao rosto. Ele disse que Miguel estava consertando um carro nos fundos da oficina, que eu podia entrar, que a casa era minha.
Passei por entre sucatas e mais sucatas até me deparar com um pátio razoavelmente grande, considerando que a fachada mais parecia um barraco, de tão pequena. Ali também tinha algumas sucatas e outro carro muito velho que, pensei eu, já tinha sido abandonado. Tinha mais dois carros com o capô para cima, como se em processo de conserto e outro, mais novo, que estava sendo consertado naquele momento. Descobri isso ao perceber que havia alguém sob ele, pois dava para ver os pés de uma pessoa para fora. Falei então, sem muita certeza:
“Gostaria que desse uma olhada no meu carro”. Esperei.
Uma voz conhecida respondeu apenas:
“Agora não posso, tô muito ocupado aqui com esse, o Ismael não está aí?”, perguntou.
“Mas só aceito se for você, não confio em mais ninguém”. Falei, tentando fazer uma voz sexy.
Ele se moveu e começou a deslizar de baixo do carro. Sua vista estava embaçada por causa da luz, mas ele logo me reconheceu e o seu sorriso me disse tudo o que eu mais queria saber.
“Oi”, ele disse.
“Oi”, disse eu.
“Não sei se você sabe, mas eu sou apenas um ajudante”.
“Eu sei, mas eu confio plenamente em você”.
Ele se levantou e foi chegando mais perto de mim, estava igual ao outro, completamente sujo de graxa, mas não me afastei, fiquei parada, esperando. Ele disse calmamente:
“Você está muito bonita! Talvez tudo isso seja um sonho, pois uma coisa tão boa não acontece na vida real”.
“Não é um sonho, pode me tocar, se quiser”, eu disse, estendendo o braço para que ele tocasse.
Ele segurou minha mão e eu senti seus dedos apertarem os meus com calma e calor ao mesmo tempo. Ele tinha uns olhos tristes, mas sinceros como poucos que já havia visto. Tinha força e coragem e tudo isso meio que explicava o seu nome, como se sua vida se ligasse à simbologia do mesmo, e tudo estava intimamente unido. Eu não tinha certeza de nada naquele momento e mesmo os argumentos, que sempre foram algo de bom em mim, sumiram e as coisas passaram a acontecer sem que eu tivesse qualquer controle.
Estávamos muito perto e eu podia sentir o calor do seu hálito. Nossos lábios se tocaram lentamente e já era a segunda vez e tudo indicava que não seria a última, pois meu coração estava sossegado e feliz como nunca, e a vida fazia sentido, e as explicações se tornaram irrelevantes. O medo passou, como se a existência ganhasse outro significado e o mundo que eu conhecia tivesse, enfim, ficado para trás.