O beijo

(Contado por Miguel)

“Eu não faço parte desse mundo”, disse.

“Verdade. Nem você nem ninguém. Isso é apenas uma projeção, ou um pastiche. As pessoas, todas, só vivem de cara limpa quando estão completamente sozinhas, fora isso, no convívio social, usam máscaras para se parecerem umas com as outras, para serem aceitas”. Falou ela com um tom filosófico.

“Você pode ir embora quando quiser, e tirar essa máscara social que está usando. Mas precisa saber que ela vai acompanhá-lo sempre, toda vez que falar com alguém, que tiver que conviver com o outro. Essa é uma regra que não podemos quebrar, porque existe além de nós, por isso não depende de nossas atitudes ou vontades; nem mesmo da vontade deles, pois também existe além deles”.

Ela falava devagar, mas de forma ininterrupta, como se não quisesse perder o fio de seus argumentos. Além disso, havia certa tristeza em sua voz e em seus olhos. Aquele ambiente era mesmo depressivo. Queria sair dali, levá-la a outro lugar; mas, como ela havia dito, não podia fugir simplesmente, se eu saísse teria que deixá-la, porque ali estava seu verdadeiro mundo.

“Eu quero ir, mas não sem você”.

“Então não poderá ir”, disse ela.

“Só queria que as coisas não fossem assim tão complicadas. Que pudéssemos viver no mesmo mundo, numa realidade igual para nós dois”.

Seus olhos brilhavam intensamente, como se em vez das luzes artificiais iluminarem o imenso salão, eles o fizessem naquele momento. Pensei em dizer isso, mas achei muito irreal e simplório, ela merecia algo melhor de mim.

Ela entendeu o que eu disse, mas argumentou mesmo assim.

“Nossas realidades são as mesmas; nossos mundos, também. Talvez as circunstâncias que não. Mas, quando sairmos desse ambiente, poderemos enfim nos despir desses trajes, você pelo menos poderá, e então voltará a ser mais sincero consigo mesmo. Acho que você tem medo, não das pessoas que estão aqui neste salão, mas de não poder fugir depois, para o seu próprio mundo”.

“Pode ser”, admiti, “mas essas pessoas bem vestidas, com ar esnobe, me olham como se estivessem com pena, e olham para você como se você não tivesse juízo. Tudo isso meio que me joga para fora do seu mundo e me coloca no meu lugar, que acham que não seja aqui”. Foram palavras tolas, sei disso, mas tinha que dizê-las.

“Eles não olham para você como se estivessem com pena, eles realmente estão. Mas até aí tudo bem, eles não enxergam muito além dos seus próprios narizes. O problema está em você sentir pena de si mesmo, de se fazer de vítima como se o mundo lhe devesse algo, quando o contrário seria mais condizente com a verdade”.

As palavras deslizavam de sua boca como água a cair de uma cachoeira, palavras sensatas demais, como se ela fosse tão mais velha do que realmente era. Mas ela era apenas uma menina de família rica, que queria viver sua própria vida, sem que os pais lhe dissessem o que fazer.

Sofia se calou naquele instante, pois seu pai se aproximava. Ele chegou de forma muito cortês, para usar uma palavra já com os dias contados. Era alto, cabelos grisalhos e olhos parecidos com os dela, sem a mesma luz, mas com a mesma força. Perguntou meu nome ao me estender a mão para um cumprimento, Sofia se adiantou e disse que eu era um amigo da faculdade. Eu apertei a mão dele e fiz alguns comentários sobre possíveis vezes em que ela havia falado nele, sempre coisas positivas, o que pareceu não ter-lhe convencido, mas ele retribuiu com um sorriso amistoso. Parecia muito contente com tudo e me tratou com respeito e sem deboche, apesar de perceber que meus trajes destoavam muito dos usados por outros convidados. Acredito que não estava pensando em coisas tão simples, como o relacionamento de sua filha com alguém de uma classe bem inferior a sua, por considerar isso um evento passageiro na vida dela, eles sempre pensam isso. Ela nos olhava naquele momento, ficou sem piscar por um tempo, depois sorriu como se concordasse com alguma coisa em que estava pensando. Eu não estava completamente seguro, nem suficientemente à vontade, mas mantinha a máscara no lugar e fingia contentamento, era a realidade do instante se sobrepondo à realidade da vida. Não tinha certeza porque fazia tudo aquilo, mas desconfiava que aqueles olhinhos negros que me olhavam atentamente eram os verdadeiros motivos.

Ele disse que ia dá atenção aos outros convidados, antes, apertou minha mão novamente, beijou o rosto de Sofia com ternura e se foi pelo salão de festas, que estava completamente cheio.

Ficamos em silêncio por um momento, Sofia e eu, até que “a meninice brincou de novo nos olhos dela”. Naquele momento eu percebi que ela tinha razão no que dissera, eu tinha medo de não poder fugir depois, não que eu quisesse isso, mas se as circunstâncias me obrigassem, não saberia o que fazer.

“Você me apresentou como amigo”, eu disse, “pensei que fôssemos namorados”, completei.

“Não somos”, ela sorriu, “você ainda não me beijou”. Dessa vez fui eu quem sorri.

Estávamos muito perto e a música que tocava era qualquer coisa instrumental completamente sem graça. Mas eu já não ouvia nada, somente minha própria respiração e tudo em mim estava concentrado nela e no que ia acontecer. Peguei sua mão e senti seus dedos apertarem os meus com calma e calor ao mesmo tempo. Encostei meu corpo no dela e fui aproximando meu rosto lentamente, sentindo sua respiração em mim e o seu cheiro era natural demais, como se nela nada fosse artificial, só os brincos e a roupa que usava. Nossos lábios se tocaram e tudo estava completamente parado. Não sei se alguém nos olhava, mas sei que a vida estava se refazendo naquele instante e tudo fazia sentido para mim, pois meu coração estava sossegado e feliz.

João Barros
Enviado por João Barros em 20/07/2018
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