O melômano

Sou um fanático por música. Minha namorada não é. Agora é ex. Sem falsete. Enquanto eu canto árias ou assovio tercinas em sustenidos e bemóis, ela reclama. Nunca vivemos em dueto. Não tenho voz virtuosa, mas consigo trazer o ouvinte em tenuto ou trêmulo, quando entramos no mesmo compasso. Tenho eufonia, bem sei. No entanto, ela só faz caretas. Sempre mal humorada. Uma linguagem cifrada de quem não quer bem. Pergunto, lento e largo, porque tanta aversão.

- Acaso seus ouvidos doem? Ralentando no seu pensar, demorou um tempo para dar resposta.

- Qualquer canção me faz lembrar momentos infelizes, não importa o seu compositor ou intérprete.

Fiz um arranjo para insistir no assunto, num pianíssimo, num agrado, afinal o relacionamento precisa ser sonoro, sem ter agressividade.

- Impossível isso, minha bela soprana. Deve existir uma melodia que a deixe alegre na minha entonação.

Totalmente dissonante, ela me responde:

- Esquece disso, este papo está uma ópera buffa. Não me chama de soprana! Disse assim, crescendo e, na regência gestual, ensaiou uma ofensa ainda maior.

Lembrei que no começo do namoro, quando eu a chamava carinhosamente de "soprana", ela emendava, ligeira, o apelido inverso de "bequadro", remetendo-me a uma lembrança infantil de meus traumas de apresentação. A tempo e, ainda rindo, apenas por fora, digo:

- Eu sou mais é um andante na vida, tá ligado! Sou fortíssimo. Me movimento como melodia, sem contratempos. Levo a vida com vibração. Tenho pulso! Você entra em acompanhamento na minha partitura para ficarmos afinados no andamento ou vou seguir em carreira solo. Melhor assim.

Com esse comentário, ela veio de armadura para o ataque:

- O que? Você forte? Pulso? Seguimento de que ? Acorde ! Você não tem abertura para tanto. Você é um castrado! Castrado! Castrado!

Golpe baixo, mais que acidente, foi proposital. Houve um silêncio. Pensei, putz, como a ausência de qualquer som é cruel. Não que eu não o merecesse o solfejo dessa alcunha. Sabia disso. Minha voz tinha mesmo um raro timbre agudo para minha idade, quando, em geral, um garoto fica com a voz cada vez mais grave. Agora dizer isso e assim? Jogar na cara a condição que deve proporcionar esse meu dom ?

Àquela altura, veio a minha resolução. Aproveitei o momento, liberei meu meio de expressão, em alto e estridente som, no mesmo diapasão dela:

- A duração entre nós não tem sustentação. Atingiu a escala menor. Nós não temos o mesmo ritmo. Já não existe cadência entre nós. Você não quer ter harmonia. Fazemos uma pausa para refletir o tema ou até um intervalo mais longo ? Aliás, pensando bem, tchau! Andiamo via!

De presto, meio que esperando a sua entrada em improviso, ela expressa um recitativo:

- A vá. Troca o disco. Você não consegue me deixar. Entra em síncope.

Sem mim, você não faz qualquer trinado, rapaz!

Foi a última vez que a vi. De saída, executei o desfecho:

- Tem certeza? Eu não quero mais interlúdio, nem mesmo um "da capo" com você.

Coda, bem merecido. Seu nome é Misandra. Aquela que odeia a felicidade masculina. É uma garota sem sal, sem fermento e sem açúcar. É a figura de um eclipse para qualquer um, que, no seu íntimo, acompanha a música do PINK FLOYD em todas as suas notas, floreios e tonalidades: realmente não há um lado escuro da lua. De fato, toda ela é escura!