Foi por medo de avião
Que eu segurei
Pela primeira vez a tua mão
— Belchior—
Que eu segurei
Pela primeira vez a tua mão
— Belchior—
Fechou o livro de Bach.
Destacara-se como um dos melhores cadetes, mas, naquele momento, temeu. A aeronave tremeu, e despencou quase um quilômetro. Fernão tinha conhecimentos técnicos de navegação aérea, teoria de voo aerodinâmico e medidas de segurança a serem usados em momentos críticos. Fora preparado para tomar decisões acertadas em situação de emergência, e naquela hora, não pôde evitar que uma constipação o apanhasse subitamente. Não sabia se era emoção por aproximar-se o momento de ter em mãos o seu brevê, ou de estar no mesmo voo com Nathalie.
Calma, Fernão — disse-lhe a voz interior — Em situações de emergência é preciso ter calma. Fazer da forma mais segura tudo que tem que ser feito.
Ele compreendeu. E dirigiu-se ao toalete. No corredor da aeronave, seus olhos se depararam com imagens dos tempos de colégio.
— André, é você?
— Sou André Albuquerque.
— Não te lembras de mim? Fomos colegas no Joaquim Nabuco em Recife.
— Gaivota! Quanto tempo!...Não te importas mais com este apelido, não é mesmo?
— Claro que não! Até tenho muita saudade do colegial. Recordo-me de estar pronto para te dar um soco, quando, suavemente, me deste um tapinha nas costas... ‘Brincadeirinha, amigo!’
— Lembro perfeitamente, disse André.
— Pois é. A maturidade zomba do tolo. E já não se tem mais tempo para dar atenção a tolices. Apelidos nem sempre são pejorativos. Eu muito gostaria de ser uma gaivota. Ter asas para voar e não me ver na condição de viajar enlatado num metal que voa. Mas como não temos asas; voamos em placas rebitadas que podem ser desprendidos pelo vento.
— Assim você me assusta.
Ouviu-se uma explosão que não era de riso. E alguém gritou:
—Vamos estourar!
— Coisa passageira — disse outro.
Desfeito o susto, Sivory permanecia segurando a mão de irmã Paola. Ela disse com maciez de voz: pode soltar. A turbulência passou.
Limitado como cavalgadura adornada com antolho, o jogador do Saint-Etienne manteve-se em silêncio e não soltou a mão da freira.
— A vocação para a vida eterna é sobrenatural, e alcança casados, viúvos, solteiros, velhos e jovens. Solte minha mão. Não tenho permissão ainda para abandonar o hábito.
Outro passageiro consultou o relógio. Estavam voando há cinquenta minutos sem darem uma palavra, até que um deles irrompeu o silêncio.
— Conheço o senhor de algum lugar — disse Carrero.
— Fui bancário, tive uma vida cigana. Naveguei por este Brasil urbano e caboclo, à procura do caminho das índias e mesmo aposentado, nunca parei de ticar as partidas dobradas nas curvas do meu caminho. Moro em Brasília. Não sei até quando a Disney Brasileira me suportará.
— Vais ao encontro no Salon Du Livre?
— Apresentarei ‘Música para Pensar’ É a minha mais recente obra. Produzi também outras na juventude que, hoje, renego, e seria capaz de escrever nelas: ‘incorrigível. Só o fogo!’ Sou um professor que escreve. Nisto também me assemelho a Afrânio Peixoto, se bem que Afrânio tinha outros títulos que não alcancei.
— Gostei de ‘Musica para Pensar’, também no sentido de cuidar das feridas da alma e do coração. A música tem uma linguagem própria de dizer aquilo que é impossível à língua do mortal vivente. Pode auxiliar na cura da ansiedade, angústia, estresse e até depressão. A boa música é um acalento para a alma.
— O amigo me pareceu maestro não só das letras, também das notas musicais.
— A música é meu chão, e o livro o mundo por onde viajo carregando um universo de indagações.
Muitas indagações, repete Gilson Chagas e é assim que funciona: Primeiro vem a inspiração e depois o suor escorre no talhar da pedra bruta.
— Verdade.
A obra é feita de toques e retoques. Se o papel não se dobra, jamais chegará à forma geométrica alguma. Não raras vezes, executamos um monumento como se o edificássemos em bronze, e ao sopro de uma crítica desfavorável, nosso edifício é levado para o mundo do esquecimento.
Carrero desafivelou o cinto.
A vida é uma ficção que se escreve em livros.
E sentiu o cheiro de cravo e canela, escorrendo na caneta de Jorge que, embora amado, teve também seus dias de suplicio na masmorra do exílio.
Carrero abriu a bagagem de mão e retirou dela um livro. "Isso aqui é meu mundo.”
Reclinou o assento buscando conforto no pequeno espaço entre as poltronas. E prosseguiu.
A literatura virtual tem muita patacoada, mas não há dúvida de que também há boa medida, calcada, sacudida e transbordante de bons talentos. Tu mesmo penetraste bem com Jacó na tenda de Labão. Abençoaste Raquel, sem excomungar Lia. Camões fez o mesmo em sua lira de 14 cordas. A Internet aproxima o homem do mundo distante, mas, afasta o próprio homem de si mesmo, e daquilo que lhe é próximo. Tudo com um simples ‘clicar’ de teclas. É faca de dois gumes, um lado amolado e outro cego.
Gilson fica imaginado qual seria o efeito produziria no homem pelo lado cego da internet. E o cortante. Ele ainda divagava sobre os dois gumes, quando Carrero retoma a palavra: " Não acha perigoso disponibilizar tua imagem neste universo virtual?"
— Talvez sim, talvez não! Começamos a morrer a partir dos primeiros segundos de vida. O livro da vida tem seu preço. Algumas páginas foram escritas com suor, lágrimas e sangue.
Depois de um meio-sorriso, Carrero comenta: " Li um artigo de Francisco Miguel sobre Prosopagnosia. Que doença estranha! Não reconhecer o rosto das pessoas?... ‘E aí começava meu martírio’ — diz Miguel."
—É... O Chico é mesmo estranho no ser e no fazer. Foi meu grande incentivador no caminho das Letras.
— Foi? Não incentiva mais ou já morreu?
— Cada minuto vivido a mais é um minuto de vida a menos. Ele tem mais de oitenta janeiros nos couros. Rogo a Deus que eu possa também chegar a essa idade e que o Chico ultrapasse, em muitos anos, o marco até agora alcançado.
— Somos pedras que se consomem — diz Carrero — Meu livro, isso aqui, isso aqui é meu mundo, meu universo. Isso aqui é minha maravilha! Eu gosto tanto disso aqui! É como namorar. Tem dia que me sento só pra namorar! Olhar pra livro...
Fernão olhou de soslaio. Lia muitos livros, mas nunca pensara em escrever um. Poesia, muito menos. Apesar de que, quase todo jovem se sente poeta do amor. Mas, seu mundo era diferente! Não se apegava a outra coisa, senão às suas miniaturas de fórmula 1. E se irritava quando o colegas o chamavam de gaivota:“Fernão Capelo tem pena de gaivota em vez de cabelo.” As afrontas, embora ingênuas, feriam sua autoestima, e, apesar dessas lembranças, sentia saudade dos tempos de colégio. A galhofa que lhe faziam do nome, deixou marcas que permaneceram na vida adulta. Por causa delas, só se apresenta como Fernão ou como Noronha. Nunca Fernão de Noronha, tampouco Fernão Capelo, para evitar associação ao pássaro de Bach.
Preocupado com as frequentes turbulências, Fernão de Noronha Capelo, acionou o serviço de bordo. A comissária aproxima-se:
— Deseja alguma coisa, senhor?
— Tenho a impressão de que voamos baixo demais...
— Estamos em nível de cruzeiro.
— Vejo o azul do mar sob meus pés.
— O céu é lindo porque é azul da cor do mar. Fique tranquilo, o comandante Hemor é muito experiente.
Flash...
Acenderam-se a luzes de alerta e uma voz feminina anunciou: Senhoras e senhores! Este é o voo ABS 815, com destino a Paris. Nimbos se aproximam. Por favor, mantenham a poltrona em posição vertical e apertem os cintos. Obrigada!
A voz era de Nathalie.
Fernão fitou-a demoradamente e percebeu nela o rosto cheio, e o corpo mais gordinho. Sentiu Cezar Ubaldo sussurrar em seu ouvido: “Carregamos no ventre a hóstia consagrada em partos menores... No ventre carregamos vida, então!... Carregamos no ventre o sol da manhã, a manhã irmã...” Ele, Fernão, nunca desejara tanto ver o sol da manhã, da tarde..., ou mesmo ainda que apenas uma nesga de luz, um sinal qualquer de vida fora das paredes da aeronave... Queria contemplar o semblante de rostos amenos, diferentes daqueles espavoridos de seus companheiros de voo. E, embora tentasse acalmar os passageiros, logo que o sorriso fabricado se desfazia, Nathalie voltava a afundar-se em pensamentos pouco nobres. Pobre alma! Felizmente, com esforço sobrenatural, afastou sentimentos de rancor e ódio contra Fernão, afinal, eram eles passageiros da agonia.
Sentiu tontura.
Apoiou a mão na fuselagem da aeronave e impostou a voz: Senhoras e senhores, estamos sob forte turbulência, por favor, mantenham a calma. Preparem-se para um possível pouso de emergência. Utilizem os assentos flutuantes. Obrigada! Desligou os canais de comunicação e acenou para Fernão com gestos carregados de novos significados, como se lhe dissesse: "Vamos morrer." Ele compreendeu que estavam em situação de emergência. Ouviu o mar bramindo debaixo de seus pés, e se sentiu na pele da Gaivota de Bach, em choque contra o rochedo. Retirou o paletó, amarrou o salva-vidas ao tórax e vestiu por cima uma camisa branca. Afrouxou os sapatos.
Os passageiros estavam com a cabeça sobre os joelhos e os tripulantes, mostravam-se compenetrados, vasculhando procedimentos de segurança para uma situação de perigo. Levantou-se. Suas pernas tremiam e o coração queria saltar do peito. Assentou-se outra vez. Deixou que se passassem alguns segundos, minutos... Queria ser uma gaivota voando a 1200 quilômetros por hora. Repreendeu seu pensamento: Gaivotas não voam a mil e duzentos quilômetros. A essa velocidade, seu corpo seria arrastado como uma folha seca tocada pelo vento.
Folha seca?...
"Sim, Fernão. Se tiveres a ousadia de dar um salto para o infinito, poderás salvar tua alma. Coragem! Se não tens asas para voar; contenta-te em dar passos largos.”
— O vento rasgará meus olhos e arrancará minha pele. “Role como uma folha seca.” Disse a voz de seu interlocutor invisível.
Talvez pudesse laçar-se de paraquedas, mas as cordas não suportariam a tensão. Desejou ser uma gaivota. Ainda assim, com certeza, àquela altitude, desceria a uma velocidade meteórica, e em pouco tempo, se esborracharia contra o chão ou o espelho das águas. Sentia-se como que acorrentado no porão de um navio negreiro. Se fosse uma gaivota, superaria seus limites voando a uma velocidade nunca atingida por sua espécie e se chocaria no paredão das águas, dura como pedra. Não tinha jeito.
Cenas do Armagedom desfilaram em sua mente.
Viu sete anjos e sete candelabros em volta de suntuoso trono. No meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do homem, dizia: ‘É chegada a hora! Escreve, pois, o que viste, tanto as coisas atuais como as futuras.
O anjo abriu o sétimo selo e em vez de silêncio, ouviam-se gritos, alaridos e pedido de socorro. Muitos fizeram o que não podia ser feito: levantaram-se, tentaram arrumar a bagagem que caia sobre suas cabeças e foram atirados contra a fuselagem. O primeiro anjo apocalíptico tocou a trombeta. Saraivada de fogo percorreu o interior da nave. Em êxtase, Fernão viu-se sentado a uma mesa no panteão da memória com o livro da vida aberto no colo. Diante de seus olhos páginas amarrotadas e o rascunho de sua vida que esperava ser reescrita. Pesava-lhe a dor de ver tantas páginas em branco... Quantas vezes virara o rosto para esposa e maculara a pureza dela com infâmias e desdéns!... Quantas vezes teve a oportunidade de refazer a própria história, e não o fez... Desejou abraçar Nathalie e sentiu-se na pele de Melenau viajando no mesmo barco com Páris.
***
Trecho de "Estrela que o vento sorou."
Lei também:
Reinado dos maxixes II
Último voo do ABS 815
Heróis do terror e do medo
Contanto um conto
Um sorriso e uma lágrima
- ILHA DO MEDO
O VÉU DO TEMPLO
PEGADAS NA AREIA
- O FANTASMA (suspense)
- A paisagista
O canto da sereia - história de amor
Passageiro da agonia II
Caverna particular
Um sorriso e uma lágrima
Destacara-se como um dos melhores cadetes, mas, naquele momento, temeu. A aeronave tremeu, e despencou quase um quilômetro. Fernão tinha conhecimentos técnicos de navegação aérea, teoria de voo aerodinâmico e medidas de segurança a serem usados em momentos críticos. Fora preparado para tomar decisões acertadas em situação de emergência, e naquela hora, não pôde evitar que uma constipação o apanhasse subitamente. Não sabia se era emoção por aproximar-se o momento de ter em mãos o seu brevê, ou de estar no mesmo voo com Nathalie.
Calma, Fernão — disse-lhe a voz interior — Em situações de emergência é preciso ter calma. Fazer da forma mais segura tudo que tem que ser feito.
Ele compreendeu. E dirigiu-se ao toalete. No corredor da aeronave, seus olhos se depararam com imagens dos tempos de colégio.
— André, é você?
— Sou André Albuquerque.
— Não te lembras de mim? Fomos colegas no Joaquim Nabuco em Recife.
— Gaivota! Quanto tempo!...Não te importas mais com este apelido, não é mesmo?
— Claro que não! Até tenho muita saudade do colegial. Recordo-me de estar pronto para te dar um soco, quando, suavemente, me deste um tapinha nas costas... ‘Brincadeirinha, amigo!’
— Lembro perfeitamente, disse André.
— Pois é. A maturidade zomba do tolo. E já não se tem mais tempo para dar atenção a tolices. Apelidos nem sempre são pejorativos. Eu muito gostaria de ser uma gaivota. Ter asas para voar e não me ver na condição de viajar enlatado num metal que voa. Mas como não temos asas; voamos em placas rebitadas que podem ser desprendidos pelo vento.
— Assim você me assusta.
Ouviu-se uma explosão que não era de riso. E alguém gritou:
—Vamos estourar!
— Coisa passageira — disse outro.
Desfeito o susto, Sivory permanecia segurando a mão de irmã Paola. Ela disse com maciez de voz: pode soltar. A turbulência passou.
Limitado como cavalgadura adornada com antolho, o jogador do Saint-Etienne manteve-se em silêncio e não soltou a mão da freira.
— A vocação para a vida eterna é sobrenatural, e alcança casados, viúvos, solteiros, velhos e jovens. Solte minha mão. Não tenho permissão ainda para abandonar o hábito.
Outro passageiro consultou o relógio. Estavam voando há cinquenta minutos sem darem uma palavra, até que um deles irrompeu o silêncio.
— Conheço o senhor de algum lugar — disse Carrero.
— Fui bancário, tive uma vida cigana. Naveguei por este Brasil urbano e caboclo, à procura do caminho das índias e mesmo aposentado, nunca parei de ticar as partidas dobradas nas curvas do meu caminho. Moro em Brasília. Não sei até quando a Disney Brasileira me suportará.
— Vais ao encontro no Salon Du Livre?
— Apresentarei ‘Música para Pensar’ É a minha mais recente obra. Produzi também outras na juventude que, hoje, renego, e seria capaz de escrever nelas: ‘incorrigível. Só o fogo!’ Sou um professor que escreve. Nisto também me assemelho a Afrânio Peixoto, se bem que Afrânio tinha outros títulos que não alcancei.
— Gostei de ‘Musica para Pensar’, também no sentido de cuidar das feridas da alma e do coração. A música tem uma linguagem própria de dizer aquilo que é impossível à língua do mortal vivente. Pode auxiliar na cura da ansiedade, angústia, estresse e até depressão. A boa música é um acalento para a alma.
— O amigo me pareceu maestro não só das letras, também das notas musicais.
— A música é meu chão, e o livro o mundo por onde viajo carregando um universo de indagações.
Muitas indagações, repete Gilson Chagas e é assim que funciona: Primeiro vem a inspiração e depois o suor escorre no talhar da pedra bruta.
— Verdade.
A obra é feita de toques e retoques. Se o papel não se dobra, jamais chegará à forma geométrica alguma. Não raras vezes, executamos um monumento como se o edificássemos em bronze, e ao sopro de uma crítica desfavorável, nosso edifício é levado para o mundo do esquecimento.
Carrero desafivelou o cinto.
A vida é uma ficção que se escreve em livros.
E sentiu o cheiro de cravo e canela, escorrendo na caneta de Jorge que, embora amado, teve também seus dias de suplicio na masmorra do exílio.
Carrero abriu a bagagem de mão e retirou dela um livro. "Isso aqui é meu mundo.”
Reclinou o assento buscando conforto no pequeno espaço entre as poltronas. E prosseguiu.
A literatura virtual tem muita patacoada, mas não há dúvida de que também há boa medida, calcada, sacudida e transbordante de bons talentos. Tu mesmo penetraste bem com Jacó na tenda de Labão. Abençoaste Raquel, sem excomungar Lia. Camões fez o mesmo em sua lira de 14 cordas. A Internet aproxima o homem do mundo distante, mas, afasta o próprio homem de si mesmo, e daquilo que lhe é próximo. Tudo com um simples ‘clicar’ de teclas. É faca de dois gumes, um lado amolado e outro cego.
Gilson fica imaginado qual seria o efeito produziria no homem pelo lado cego da internet. E o cortante. Ele ainda divagava sobre os dois gumes, quando Carrero retoma a palavra: " Não acha perigoso disponibilizar tua imagem neste universo virtual?"
— Talvez sim, talvez não! Começamos a morrer a partir dos primeiros segundos de vida. O livro da vida tem seu preço. Algumas páginas foram escritas com suor, lágrimas e sangue.
Depois de um meio-sorriso, Carrero comenta: " Li um artigo de Francisco Miguel sobre Prosopagnosia. Que doença estranha! Não reconhecer o rosto das pessoas?... ‘E aí começava meu martírio’ — diz Miguel."
—É... O Chico é mesmo estranho no ser e no fazer. Foi meu grande incentivador no caminho das Letras.
— Foi? Não incentiva mais ou já morreu?
— Cada minuto vivido a mais é um minuto de vida a menos. Ele tem mais de oitenta janeiros nos couros. Rogo a Deus que eu possa também chegar a essa idade e que o Chico ultrapasse, em muitos anos, o marco até agora alcançado.
— Somos pedras que se consomem — diz Carrero — Meu livro, isso aqui, isso aqui é meu mundo, meu universo. Isso aqui é minha maravilha! Eu gosto tanto disso aqui! É como namorar. Tem dia que me sento só pra namorar! Olhar pra livro...
Fernão olhou de soslaio. Lia muitos livros, mas nunca pensara em escrever um. Poesia, muito menos. Apesar de que, quase todo jovem se sente poeta do amor. Mas, seu mundo era diferente! Não se apegava a outra coisa, senão às suas miniaturas de fórmula 1. E se irritava quando o colegas o chamavam de gaivota:“Fernão Capelo tem pena de gaivota em vez de cabelo.” As afrontas, embora ingênuas, feriam sua autoestima, e, apesar dessas lembranças, sentia saudade dos tempos de colégio. A galhofa que lhe faziam do nome, deixou marcas que permaneceram na vida adulta. Por causa delas, só se apresenta como Fernão ou como Noronha. Nunca Fernão de Noronha, tampouco Fernão Capelo, para evitar associação ao pássaro de Bach.
Preocupado com as frequentes turbulências, Fernão de Noronha Capelo, acionou o serviço de bordo. A comissária aproxima-se:
— Deseja alguma coisa, senhor?
— Tenho a impressão de que voamos baixo demais...
— Estamos em nível de cruzeiro.
— Vejo o azul do mar sob meus pés.
— O céu é lindo porque é azul da cor do mar. Fique tranquilo, o comandante Hemor é muito experiente.
Flash...
Acenderam-se a luzes de alerta e uma voz feminina anunciou: Senhoras e senhores! Este é o voo ABS 815, com destino a Paris. Nimbos se aproximam. Por favor, mantenham a poltrona em posição vertical e apertem os cintos. Obrigada!
A voz era de Nathalie.
Fernão fitou-a demoradamente e percebeu nela o rosto cheio, e o corpo mais gordinho. Sentiu Cezar Ubaldo sussurrar em seu ouvido: “Carregamos no ventre a hóstia consagrada em partos menores... No ventre carregamos vida, então!... Carregamos no ventre o sol da manhã, a manhã irmã...” Ele, Fernão, nunca desejara tanto ver o sol da manhã, da tarde..., ou mesmo ainda que apenas uma nesga de luz, um sinal qualquer de vida fora das paredes da aeronave... Queria contemplar o semblante de rostos amenos, diferentes daqueles espavoridos de seus companheiros de voo. E, embora tentasse acalmar os passageiros, logo que o sorriso fabricado se desfazia, Nathalie voltava a afundar-se em pensamentos pouco nobres. Pobre alma! Felizmente, com esforço sobrenatural, afastou sentimentos de rancor e ódio contra Fernão, afinal, eram eles passageiros da agonia.
Sentiu tontura.
Apoiou a mão na fuselagem da aeronave e impostou a voz: Senhoras e senhores, estamos sob forte turbulência, por favor, mantenham a calma. Preparem-se para um possível pouso de emergência. Utilizem os assentos flutuantes. Obrigada! Desligou os canais de comunicação e acenou para Fernão com gestos carregados de novos significados, como se lhe dissesse: "Vamos morrer." Ele compreendeu que estavam em situação de emergência. Ouviu o mar bramindo debaixo de seus pés, e se sentiu na pele da Gaivota de Bach, em choque contra o rochedo. Retirou o paletó, amarrou o salva-vidas ao tórax e vestiu por cima uma camisa branca. Afrouxou os sapatos.
Os passageiros estavam com a cabeça sobre os joelhos e os tripulantes, mostravam-se compenetrados, vasculhando procedimentos de segurança para uma situação de perigo. Levantou-se. Suas pernas tremiam e o coração queria saltar do peito. Assentou-se outra vez. Deixou que se passassem alguns segundos, minutos... Queria ser uma gaivota voando a 1200 quilômetros por hora. Repreendeu seu pensamento: Gaivotas não voam a mil e duzentos quilômetros. A essa velocidade, seu corpo seria arrastado como uma folha seca tocada pelo vento.
Folha seca?...
"Sim, Fernão. Se tiveres a ousadia de dar um salto para o infinito, poderás salvar tua alma. Coragem! Se não tens asas para voar; contenta-te em dar passos largos.”
— O vento rasgará meus olhos e arrancará minha pele. “Role como uma folha seca.” Disse a voz de seu interlocutor invisível.
Talvez pudesse laçar-se de paraquedas, mas as cordas não suportariam a tensão. Desejou ser uma gaivota. Ainda assim, com certeza, àquela altitude, desceria a uma velocidade meteórica, e em pouco tempo, se esborracharia contra o chão ou o espelho das águas. Sentia-se como que acorrentado no porão de um navio negreiro. Se fosse uma gaivota, superaria seus limites voando a uma velocidade nunca atingida por sua espécie e se chocaria no paredão das águas, dura como pedra. Não tinha jeito.
Cenas do Armagedom desfilaram em sua mente.
Viu sete anjos e sete candelabros em volta de suntuoso trono. No meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do homem, dizia: ‘É chegada a hora! Escreve, pois, o que viste, tanto as coisas atuais como as futuras.
O anjo abriu o sétimo selo e em vez de silêncio, ouviam-se gritos, alaridos e pedido de socorro. Muitos fizeram o que não podia ser feito: levantaram-se, tentaram arrumar a bagagem que caia sobre suas cabeças e foram atirados contra a fuselagem. O primeiro anjo apocalíptico tocou a trombeta. Saraivada de fogo percorreu o interior da nave. Em êxtase, Fernão viu-se sentado a uma mesa no panteão da memória com o livro da vida aberto no colo. Diante de seus olhos páginas amarrotadas e o rascunho de sua vida que esperava ser reescrita. Pesava-lhe a dor de ver tantas páginas em branco... Quantas vezes virara o rosto para esposa e maculara a pureza dela com infâmias e desdéns!... Quantas vezes teve a oportunidade de refazer a própria história, e não o fez... Desejou abraçar Nathalie e sentiu-se na pele de Melenau viajando no mesmo barco com Páris.
***
Trecho de "Estrela que o vento sorou."
Lei também:
Reinado dos maxixes II
Último voo do ABS 815
Heróis do terror e do medo
Contanto um conto
Um sorriso e uma lágrima
- ILHA DO MEDO
O VÉU DO TEMPLO
PEGADAS NA AREIA
- O FANTASMA (suspense)
- A paisagista
O canto da sereia - história de amor
Passageiro da agonia II
Caverna particular
Um sorriso e uma lágrima