*POR JUSTA CAUSA
 
              Ela saiu cedinho, véu preto na cabeça, coração palpitando, olhar furtivo. Não podia ser reconhecida. Direito de sair de casa só na quaresma. Ia para a casa de Deus. Lugar sagrado, confiável. Ali, ninguém peca, mas a causa é justa, Senhor, pensava a mulher, necessitava de um filho. Homem rico, sem filhos, a herança vai, com certeza, para um bastardo.

Muito luxo é verdade, um palácio sua morada, joias caras, roupas luxuosas, festa de gala com a alta sociedade, mas não tinha um filho. O marido a culpava. A culpa é sempre da mulher. Como saber? A medicina era ainda carente de grandes pesquisas.

Ela deitara-se duas vezes com o cunhado, quando o marido viajava. Perdão, Senhor, está em família, a causa é justa, creio que o pecado é muito pequeno. Na quaresma confesso-me, Deus me perdoa, dá castigo de 100 terços e fica tudo resolvido.

Chegou à igreja. As mulheres lá, todas contritas, véu na cabeça, olhar furtivo para se inteirar da clientela religiosa rogando a Deus pela família, com certeza, e pelo acúmulo de pecados. Chega o sacerdote. Um galã de cinema, jovem, perfumado, simpático, sorridente, mostrando a alvura e alinhamento da dentadura. Entrou no confessionário. Ela foi a última a entrar para a confissão.

 Senhor padre, estou pecando terrivelmente. Preciso de um filho. Há cinco anos casada e nada. Por justa causa deitei-me duas vezes com meu cunhado. A consciência me pesa menos do que a vontade de ser mãe. Meu marido me culpa. Os homens nunca são culpados! O que devo fazer? Continuar traindo meu marido ou me afogar na infelicidade e perder a fabulosa herança que tanto me agrada? Sei que é luxúria, mas somos seres fracos e pobreza não me atrai nem um pouco, muito menos o fogo da santa inquisição interior.

Durante o período da quaresma, rezar cem terços para apagar seus pecados, jejuar todos os dias, está muito gordinha, a gula, a traição e a luxúria são pecados recuperáveis, é só querer!

Todos os dias, ela chegava à igreja, rezava cinco terços mais que o castigo estipulado, no final a soma daria cento e cinquenta terços. Nunca chorou. A causa do pecado seria entendida por Deus. Não sou uma mulher infiel, igual a algumas que conheço por aí. Quero, apenas, sustentar meu casamento e herança!

Três semanas se passaram, uma semana faltava para alcançar a graça de gestação. O milionário marido prometera a Deus que, caso a esposa ficasse grávida, construiria a mais bela igreja que o mundo já teve.
Esta semana, concentre-se na sacristia para melhor recolhimento á oração, disse o sacerdote. Uma mão forte roçou seus ombros na penumbra da noite, e foram cinco noites de amor eterno, com direito a perdão por uma justa causa. E o mesmo perfume!

Estou grávida, marido, Deus me concedeu a graça que você tanto almejava.
  Eu sabia que Deus não ia dispensar uma igreja que ficará para a posteridade, exultou o ricaço por tamanho merecimento.
O pecado duplicou. Quem seria o pai? O dono do ouro, o parente ou o homem misterioso da igreja? Não havia DNA. Mesmo se houvesse, ciência não pode competir com graça divina. Recolhimento e oração eram constantes na vida do casal.

No livro de contos, Por Justa Causa.
 


 
Sonia Nogueira
Enviado por Sonia Nogueira em 06/05/2018
Reeditado em 06/05/2018
Código do texto: T6328640
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