1994
Certas datas nos marcam para a vida toda. Lembro bem de quando estava na 6ª série e dei meu primeiro beijo. O nome dela era Érica, a menina mais linda da turma. Já andávamos de paquera fazia um tempão, mas nunca tínhamos encontrado um momento a sós para ver o que ia rolar.
Dois dias antes, estávamos na casa dela com nosso grupo da escola montando uma maquete do sistema solar com planetas de isopor ligados por arames, náilon e outros trecos, e que apresentaríamos na feira de ciências na segunda-feira. Éramos em cinco e os pais dos outros já os haviam buscado. Enquanto os pais dela preparavam um lanche, Érica me mostrou o resto da casa.
— Esse é meu quarto. Não repara a bagunça.
Estava curioso para saber como seria o quarto de uma menina da escola, ainda mais da Érica. Logo de cara, vi um casaco xadrez de flanela pendurado na cadeira da escrivaninha – eu também tinha um, porque parecia que agora todo mundo era grunge só porque Kurt Cobain tinha morrido. Sobre a escrivaninha havia vários clipes coloridos de vários tamanhos e cores, pulseirinhas de borracha, um livro do Paulo Coelho e um Tamagotchi – eu também tinha esse brinquedo, mas só para ver se havia um jeito de fazer o boneco morrer. Em cima da cama estavam espalhadas umas revistas Capricho. Na estante, um velho Aquaplay dividia espaço com uma coleção de bonecas da Moranguinho que deixavam no quarto um cheiro doce.
— Lembro que você dizia ter um pôster do New Kids on The Block na parede – eu disse.
— Tirei, não curto mais – corou. – É uma das coisas de que a gente tem vergonha quando cresce. Ah, agora você tem que me contar uma coisa que te deixe constrangido também, para ficarmos quites, seu chato! – e, rindo, pegou um urso de pelúcia de cima da cama e o lançou em mim.
— Bem, no jardim de infância – lembrei, enquanto segurava o urso e o jogava para cima – eu erguia a manga do uniforme para parecer uma regata e cantava “Não se reprima” fingindo que era um Menudo.
— Lances do jardim de infância não contam – ela pegou o urso de volta e o colocou na cama. – Isso foi há quase dez anos. Tem que ser uma coisa recente. Um mico que me faça rir, poxa.
— Tem uma coisa, mas isso tem que ficar entre nós. Quando eu era criança, era mais dentuço e tinha um cabelo de palha, então meus primos me deram um apelido do qual me chamam até hoje quando querem me irritar.
— Qual é? – ela perguntou, sentando-se na cama.
— Bem, eles me chamavam – sentei ao lado dela – de Topo Gigio.
— O ratinho? – gargalhou. – Minha mãe guarda um boneco dele até hoje. Ai, que maldade. Você não parece o Topo Gigio – consolou, empurrando meu ombro – Você me lembra mais, deixa eu ver, o Tom Hamilton!
— O baixista do Aerosmith? Tá bom. E você parece a Alicia Silverstone! – disse de supetão, assustando-me comigo mesmo por ter revelado o que eu realmente achava. Mas ela achou graça, e ficou me olhando de lado. — Principalmente quando você sorri desse jeito, Érica. É sério.
E ficamos nos encarando por um longo segundo.
— Quer ouvir umas fitas que meu irmão me emprestou? – ela disse, e puxou debaixo da cama um velho microsystem e uma caixa de sapatos com várias fitas K7.
Ela colocou uma fita pra tocar e me surpreendi com uma batida de estilo europeu que eu nunca tinha ouvido antes. Peguei a capa e li que o nome da banda era Ace of Base.
— É uma banda sueca – ela explicou.
Ouvimos um pouco e então ela trocou por outra fita. A capa era de uns caras sentados no sofá e um no chão. A mulher do grupo estava de cabeça baixa, uma expressão triste. Em letras minúsculas estava escrito o nome da banda: “the cramberries”. A primeira música começava com um solo de guitarra que não fazia meu estilo e disse que estava achando aquelas músicas deprimentes pra caramba. Então ela retirou a fita, colocou o outro lado, rebobinou e colocou para tocar.
— Você vai gostar dessa aqui.
Quando o novo solo de guitarra começou, Érica se levantou, pegou minhas mãos e começamos a dançar um tanto desajeitados de mãos dadas.
— Tá. Essa canção é bonita. Qual o nome?
— Linger.
Agora estávamos abraçados, a cabeça dela recostada em meu ombro.
— Quem é a cantora?
— Dolores Alguma Coisa.
Inclinei meu rosto para o dela e nossos olhos se cruzaram.
— Descobri que gosto de dançar com você ouvindo Dolores Alguma Coisa.
— Gosta de mim ou da Dolores?
— Gosto de você, Alicia.
— E eu de você, Tom.
Fomos chegando mais perto um do outro em mais um longo segundo, quando a mãe de Érica nos chamou para lanchar, cortando o clima.
A família dela era bem legal e ficamos discutindo sobre como a nova garrafa de plástico deixava a Coca-Cola com gosto diferente da Coca-Cola da garrafa de vidro. O pai da Érica era vidrado em Fórmula 1, que nem meu pai, e dizia que Ayrton Senna tinha tudo para fazer uma ótima temporada aquele ano. Também gostava de futebol e dizia que tinha certeza de que nossa seleção seria tetracampeã no mundial.
Meus pais logo chegaram e nem tive tempo de conversar mais com Érica direito, e só a veria depois do final de semana, sem saber que aquele final de semana não só me marcaria, mas marcaria aquela geração. Naquele domingo de Fórmula 1, um acidente doido tirou a vida do piloto Ayrton Senna.
Poucas datas marcaram minha adolescência como aquela data. Quando chegamos à escola, soubemos que a feira de ciências havia sido adiada para o dia seguinte. Os professores levaram os alunos ao auditório para assistirem na televisão as notícias que saíam a todo momento sobre a morte do Ayrton Senna e tudo mais. Parecia que todo o país tinha amanhecido de luto, ainda sem acreditar que o grande ídolo havia morrido. Uma porção de meninas estava chorando. Os meninos estavam mudos e cabisbaixos, muitos porque seus pais também estavam chocados e nunca tinham visto seus pais assim.
Vi Érica assistindo às reprises do acidente e percebi que ela não queria estar ali. Chamei-a para fora e ficamos no corredor conversando sobre tudo aquilo. Estávamos um de frente para o outro. Ela, recostada na parede, apertou minha mão. Vi que estava chorando.
— Não faz nem um mês que o Cobain morreu e agora o Senna. Por que as pessoas legais morrem jovens? Por que tanta gente que deveria morrer vive e tanta gente boa que merecia viver morre? – Ela olhou em meus olhos, as mechas loiras sobre o rosto, querendo de mim uma resposta. – A vida é assim? É tudo tão frágil. Me diz, me mostra, o que a vida é?
Fomos aproximando o rosto um do outro e fechando os olhos até nossos rostos se tocarem. Quando nossas bocas finalmente se encontraram e se provaram, ela apertou minha mão com mais força e me puxou para perto. Foi um longo, longo segundo. Assim era a vida.
Um longo segundo.