Naquela noite
Naquela noite, Arnaldo estava fritando peixes na cozinha quando o filho entrou, todo perfumado e sorrindo. O menino abriu a geladeira pegou umas das garrafas de água, destampou e levou a boca. Por um instante Arnaldo pensou em chamar a atenção e mandá-lo pegar um copo, mas desistiu. A mulher tinha saído para visitar uma amiga que estava de aniversário, então fez de conta que não viu e deixou passar.
Arnaldo ainda avistou pela janela da cozinha quando o filho entrou no carro e foi embora. Sentiu-se nostálgico ao ver o filho já criado saindo para alguma festa e dirigindo o carro que ele mesmo estava pagando com o salário de seu primeiro trabalho. Lembrou de quando o menino nasceu. Era outra época. Tudo era mais difícil. Como as coisas mudaram em apenas 19 anos?
A maior briga que teve com a mulher nestes mais de 20 anos de casado foi o nome que deveria dar para o primeiro filho, que hoje ele entendia foi importante, afinal o primeiro foi o único filho que teve. Ela queria registrá-lo como Valentin, por causa de algum personagem de uma dessas novelas que ela assistia. Ele queria Elias, por causa do maior craque da história do Internacional. No final, depois de muitas discussões, ficou Elias Valentin. O tempo lhe deu uma vitoria, já que todo mundo aprendeu a chamar o menino apenas pelo primeiro nome: Elias.
Arnaldo tirou mais uma fritada de filé de tilápia da frigideira, pôs em um prato coberto por papel toalha, pois, sua esposa, Helena, dizia que era bom para deixar sem gordura, depois cortou dois limões ao meio e colocou os quatro pedaços num cantinho do prato, pegou uma cerveja de latinha na geladeira, colocou tranquilamente no isopor e com o prato em uma mão e a cerveja em outra foi para sala.
Ligou a televisão, procurou na lista de programas gravados e encontrou o jogo daquela tarde do seu Inter contra o Palmeiras, sentou-se no sofá e colocou a bola para rolar. Ele já sabia do placar, mas como estava no trabalho de tarde não pode assistir a partida e queria ver o desempenho do colorado.
A mulher chegou no início do segundo tempo. Sentou um pouco ao seu lado. Fez alguns comentários sobre a festa, reclamou da lentidão do meio-campo do Inter e foi para cama. Ele sorria cada vez que assitia futebol com ela, pois, quando ele a conheceu ela não sabia nem quantos jogadores faziam parte de cada time, agora, vinte e poucos anos depois, criticava esquema tático e até gritava palavrões que deixavam ele assustado.
O jogo terminou por volta da meia-noite, e como ele já tinha previsto, o placar não se alterou daquilo que ele ouviu durante a tarde pelo rádio. Levou as quatro latas de cerveja que estavam vazias sobre a guarda do sofá para o lixo da cozinha. Demorou uns 30 segundos para lembrar em qual das três lixeiras devia colocar as latas e em qual iria os papéis toalha sujo de gordura e os limões. Sempre esquecia qual era a ordem. No final jogou todos dentro da mesma lixeira e riu ao pensar que teria que ouvir Helena reclamando no dia seguinte.
Lavou as louças. Foi para o quarto e antes de deitar passou no banheiro e tomou uma ducha fria, hábito que ganhou ao longo da vida e que não abre mão, e depois vagarosamente deitou ao lado da esposa com muito cuidado para não acorda-lá.
Enquanto esperava o sono chegar, lembrou do filho mais uma vez. Como aquele era parecido com ele quando jovem. Ele até se divertia com a semelhança e brincava que se não fosse pelo cabelo espalhafatoso e as roupas coloridas eles seriam iguaizinhos. Cabelo dele e roupa dele, não do filho. O filho era um menino comum. Um brilhante e bonito menino comum. Riu da comparação ao passo em que o sono chegou e ele adormeceu.
Eram 4 horas da manhã quando o tocar do telefone fixo, que fica na sala, o fez despertar. Levantou praguejando e foi até a sala. Ainda meio sonolento disse um “alô” mau humorado. “ Tio Arnaldo?” disse a voz no outro lado da linha. Ele de imediato reconheceu a voz de Márcia, sua sobrinha. Imaginou que Beto, seu irmão caçula e alcoólatra, tinha aprontado de novo. “Sim sou eu, filha! O que foi?”. Ele perguntou. Houve um momento de silêncio antes de Márcia continuar. “Ocorreu um acidente meu tio”. Um acidente, foi o que ouviu. “Você está bem minha filha?.” Ele sentiu que a outra começou a chorar no outro lado da linha. “Não foi comigo tio, foi com o Elias.” O coração de Arnaldo disparou imediatamente. “Meu Deus. Ele está bem?” Ela agora chorava copiosamente. No seu intimo ele sabia que resposta receberia, mas, no fundo mantinha um fio de esperança de que ela diria um sonoro sim. “Sinto muito meu tio.” Foi o que ela respondeu antes de ele derrubar o telefone e cair de joelho sobre o tapete da sala com as duas mãos no rosto.