Fragmentos de um amor
Estava ali, na sala, Dona Marieta, com uma caneta da mão, um caderno velho, amaçado, onde se via orelhas de papel. Em sua mesinha tosca, uma cadeira de madeira forrada com um pano de cor vermelha, não era chitão, nem mesmo seda, mas um tecido um pouco mais duro que servia de almofada para repousar seu lindo corpo, pois já se passavam dos setenta anos de idade.
Sobre a mesa e no centro dela, uma imagem da Senhora Aparecida ainda enrolada no plástico, porque fora presenteada há pouco tempo. Dentro da embalagem, poderia ler a seguinte frase: Estive em Aparecida e lembrei-me de você. Do lado direito encontrava-se uma jarra de louça branca, com uma pintura de várias flores ou talvez de porcelana pintada na cor vermelha, um buquê de flores vermelhas mais parecidas com rosas ou margaridas. Sentia-se que aquela jarra era muito antiga, porque o desenho dela e a forma de pintura deveriam ter uns cinquenta anos. Ao lado esquerdo, ainda descolorida com tempo, nas cores preta e branca, uma linda fotografia de um casal. Ela, toda bonita, com seu vestido branco, com rendas e bordados nas laterais. As mangas eram meio cumpridas, mas poderia ver vários desenhos de crivos. Estes desenhos mais assemelhavam-se às flores brancas. Poderiam ser rosas, hortênsias, mas eram lindas as flores que foram bordadas por mãos genuínas, por mãos de mestres na arte das agulhas.
Em seu rosto brilhavam as esperanças, mas uma pequena lágrima corria em seus olhos já desgastados pelo tempo. Usando óculos bifocal, suas mãos trêmulas ajeitavam aquela fotografia com um sentimento tão lindo, que os pássaros poderiam compor e cantar a mais linda canção, de lembranças do passado em que se dançava a linda valsa tocada pela mais sublime orquestra: Valsa Danúbio Azul. Por um momento, segurava firme a fotografia como se estivesse conversando com alguém, contemplava-a de maneira tão simples que em seu sentimento existia algo tão importante congelado ali através de cores. Poderia sentir o forte calor de suas mãos quando passou o pequeno forro da mesinha sobre a fotografia. Por um bom momento, sua contemplação deixava ver que aquele momento foi o mais marcante de sua vida. Pelo olhar e pelas lágrimas saídas de seus olhos, aquela fotografia representou a mais linda e mais sublime marca de sua vida.
Agora com as duas mãos, fitava seu lindo vestido congelado pelas cores do tempo. Naquela fotografia, seu cabelo estava bem preto. O penteado foi feito por sua mãe, aquela de todos os momentos. Com um pente da época, fio por fio, foi escovado, lavado, passado um selante, resultando no mais alto brilho. Seus cabelos estavam partidos ao meio, mas um lindo caracol, no alto da cabeça, dava a impressão de um lindo totó, que estava preso por uma fita branca, toda fabricada de bordados da mais alta finura.
Seu rosto era a pura felicidade. O semblante alegre, como se estivesse rindo a todo tempo. As sobrancelhas estavam bem-feitas, cerradas, pareciam que os pelos foram tirados, lavados e depois implantados naquele local. Por algum momento, poderia sentir o pequeno desenho nas sobrancelhas, mas era um desvio de luz na fotografia. Para ela, foram feitas mágicas para que elas ficassem daquela forma.
Os seus olhos estavam bem abertos. No contraste, seus olhos eram verdes, porém a fotografia os colocou um pouco claros pela forma de ter sido feita em preta e branca. Estavam eles bem focados na posição da lente. Em uma observação bem detalhada, via-se uma pequena pinta no canto esquerdo de seu rosto.
O rosto meio redondo, no dizer da palavra, via-se que ainda existiam algumas espinhas ou cravos, mas bem leves que mal davam realces naquela linda fotografia. Mais uma pintinha era vista no canto direito de sua boca. Bem pequena, muito simples e meiga, que o destino lhe trouxe e era seu encanto em mostrar para suas amigas. Dizia ela ser a pintinha da sorte. Muitos amores foram interessados somente por causa na pintinha, mas o seu amor eterno, ela o guardou ali para sempre.
Parecia ser um batom bem vermelho, que foi aglutinado a seus lindos lábios carnudos. A boca bem fechada, com um tom de seriedade bem distinta para a época. Lembrou que aquele batom foi presente de sua querida e linda mãe que lhe vestiu. Comprou em uma feira, na cidade de São Paulo somente para este momento.
No pescoço, estava um lindo colar de pérolas brancas. O colar foi um presente de seu querido pai, viajante do comércio de selaria para cavalos, foi comprado no norte das Minas Gerais. Dizem que ele ficou esperando sete dias para que o dono da joalheria fizesse por encomenda. Era especial, porque entre as pérolas tinha uma pequena camada de ouro. Foi também colocada uma fina marca de suas iniciais: MM, que eram decifradas como Marieta Maria.
Outra vez sua mão direita eleva-se a altura do olho direito. Uma lágrima, ou seja, uma, acompanhada de outra lágrima, saiam de seus olhos. Foi preciso que seus óculos fossem retirados porque o momento era de angústia, de tristeza, de emoção. Não se sabia o que se passava dentro daquele singelo coração. Será que ele suportaria tamanha punhalada do doce e triste momento.
Ao passar a mão sobre a fotografia de seu único, só, somente seu amor da vida. Um jovem forte, de mais ou menos uns vinte e oito anos, que com ele teve seus filhos. Um total de três: Dois homens e uma mulher, mas que o tempo os separou, nem mesmo notícias deles ela sabe. Da última vez, informou-lhe que eles estavam muito bem de vida. Muito ricos e que moravam fora o Brasil, talvez na Europa, no Japão ou em Portugal.
O seu olhar era fixo nas lembranças da fotografia. Aquele jovem forte, cabelos penteados para o lado de traz, um bigode grande sobre a boca. Usava óculos redondos e presos a uma correntinha branca, presente de Marieta quando ele completou seus vinte e oito anos de idade.
Seu terno era de cor preta. Trajava-se uma camisa branca com algumas listinhas no tom azul, também bordadas com os mínimos detalhes. A gravata era preta, com um lindo nó, pois era o símbolo da grandeza e da realeza.
O rosto longo, de olhos bem grandes, nas cores pretas, também uma pequena pinta do lado direito de sua boca. Dona Marieta dizia para suas amigas, de total confiança, que Mário era a sua alma gêmea pelo fato de ter a mesma pintinha no rosto, tal qual como ela. Era a sua paixão.
Com suas mãos trêmulas, abriu seu caderno amaçado pelo tempo, já em letras trêmulas, mais uma página escrevia de sua vida. Era o seu diário. Passava horas e horas ali olhando, lendo, para dizer, sem muita visão a seguinte frase: “ Mário, eu te amo”. Venha me buscar, porque estou neste triste e sombrio asilo. Nossos filhos esqueceram de mim. Foram ingratos e partiram. Neste quarto, eu, minha jarra de casamento, nossa foto, são as únicas esperanças que me deixam viver.