Em contacto
Luna sentia-se mal naquela tarde e não tinha ninguém para desabafar. Não quis acreditar, mas o destino escolheu-me a mim. Não me lembro de já termos conversado tanto para tornar-me naquele a quem ela pudesse confiar conselhos. Não sabia como aconteceu, mas justificou que fui eu a primeira pessoa que lhe apareceu em mente para pedir apoio moral. Eu acabava de acordar quando visualizei a primeira mensagem, que dizia:
- Assumo que sou anti-social, Dralin.
Minha primeira reacção foi dizer-lhe que isso é normal. Incrédula, escreveu de volta:
- Sinto-me mal com isso. Ainda é normal?
Quase deixei-a meio que revoltada ao proferir palavras que revelavam minha falta de interesse em relação ao assunto, porque para mim era apenas a Luna, uma jovem com quem troquei saudações básicas algumas vezes e mais nada. Lembrava-me no instante que, nessas pequenas conversas esteve ela muitas vezes a querer saber mais sobre mim, mais sobre eu estar vivo e ter dormido bem. Então, comecei por juntar essas peças para vir a entender o porquê de ela ter dito:
- Desculpe se lhe incomodei. Só achei que poderia contar contigo, és livre de reclamar.
Primeiro é que não me havia dado conta do quê que o anti-socialismo dela tem a ver comigo, e depois, que raio de mensagem era aquela?
Ainda estava ensonado, e a primeira coisa que planeara fazer após abrir os olhos era massacrar alguns pratos de feijoada. Não sei quem me mandou mexer o telefone antes de invadir a cozinha! Bem, como dizem, força do hábito.
Senti-me tocado por aquelas palavras, que vinham duma jovem tão sensata e inteligente, um génio com seios apesar de olhos muito grossos, mas eu gosto. Percebi que, ao pedir-me socorro, ela já tinha visto em mim um rapaz que lhe entenderia, embora fosse alguém com que nunca tivesse convivido. Mais uma vez eu tinha que solucionar um problema alheio, enquanto continuo sem saber o que fazer com os meus. Afinal, a estranheza que ela conheceu em mim pareceu-lhe o remédio precioso para o seu mal-estar, acredito eu.
Algumas vezes já tentou ser boazona comigo e não teve um bom feedback da minha parte. Eu respondia às suas perguntas com tal seriedade que certamente comichões ganhavam os seus olhos ao lerem o que eu escrevia. Acusou-me de ser amargo e disse que não é para tanto... Através de pontos como este, fiz-lhe perceber que não sou necessariamente um portador de inverno no coração. Sou apenas um homem treinado em relações humanas, já não posso mais ser meigo a qualquer custo para ter que sentir-me prezado. O problema dela era sentir-se incompreendida, perdida em todos os lugares onde põe os pés. Pedi-lhe apenas para se habituar a isso, pois estava na cara que ela esforçava demais a sua integração no mundo alheio. Disse-lhe ainda que era especial e que deveria parar de se preocupar com o facto de quase não conhecer ninguém da sua laia. É próprio de pessoas criativas, e sim, é normal.
- Com o tempo serás tu a procura, serás tu a busca de muita gente. Apenas deixa-te estar mesmo assim. Aprenda só a amar a tua sombra por enquanto e, embora pese no início, vais ganhar o jeito, concluí.
- Obrigado pelas palavras. Já me sinto melhor... Disse, tendo se mostrado mais motivada e eufórica.
Pouco depois tive que despedir-me dela para ir ter com a cozinha, mas antes disso pedi-lhe os contactos. Ela enviou-mos sem hesitar, mas avançou que me daria um toque quando então pudéssemos falar.
Eram quase 23:00 quando liguei-lhe e ela declarou que não esperava mais por isso. Refresquei-lhe a memória com a dica de que faço sempre as pessoas pensarem uma coisa e fazer totalmente o contrário. Ao telefone, Luanda e Lubango pareciam o mesmo sítio. Era como se tivéssemos marcado o nosso primeiro encontro num bar, ao som de Sara Tavares e Gabriel Tchiema. A rede não ajudou muito e a minha voz moribunda também não, porém nada disso matou-lhe a vontade de saber até que ponto sou fácil de lidar.
Como não poderia deixar de ser, apregoava-me dos meus defeitos, para que ela emtedesse que somos todos falhos, que a imperfeição não é um bicho de sete cabeças, algo com que tenhamos que nos preocupar tanto. Por quê? O perfeccionismo frustra mais do que um marido alcoólatra ou um professor iletrado. Estava mesmo a ser um belo telefonema. Ela disse que há semanas em que ficam dois ou três dias incomunicáveis por causa da rede, mas não tinha que se preocupar, disse eu, porque era o seu dia de sorte. O nosso dia de sorte, pois minutos mais tarde, era e cujo alento já estava mesmo a perder os travões.
- O que fazes? Perguntou-me.
- Falava comigo mesmo enquanto matava mosquitos.
- Além disso, mais nada? E já agora, ouço-te muito baixo. Falas sempre assim?
- Não sei. Aliás, não sei de quase nada nessa vida. Sou um completo inocente.
Estava já eu a ser burro. O bom é que na perfeição para fazer-lhe sorrir. Quis saber se por acaso sou fácil de lidar. Ela, mesmo não querendo aceitar isso, tem muitas curiosidades sobre mim. Eu bem que estava disposto a responder-lhe tudo, só que me parecia que ela, assim como as mulheres são armadas em cautelosas, mostrava não ter mais nada a dizer. Passei-lhe algumas das minhas visões sobre a vida, facto que lhe fez dizer que tenho razão, quando ando ainda à procura da mesma e, já no limão, disse que precisava de acordar cedo e que algo que fizera na tarde do mesmo dia lhe matara que chega.
Tive que pedir que ela desligasse, pois eu, confesso, estava a receber um bom alimento para os ouvidos. A voz dela é comestível. Aguardo pela segunda ronda, quem sabe um telefonema ainda mais demorado, ansioso.